Como é o tempo integral no CE, que começou há quase 20 anos em uma escola centenária
Cursar o Ensino Médio e passar entre 7h e 9h horas por dia na escola. No local ter três alimentações, acesso a laboratórios, a clubes estudantis, a atividades esportivas e culturais. Além, claro, da formação geral com português, matemática, geografia, biologia, dentre outras disciplinas, e do currículo flexível, conforme cada contexto. Em alguns casos, fazer também o ensino técnico, com estágio no 3º ano. O que parece uma idealização, no Ceará, é experiência concreta na rede pública estadual em 166 cidades das 184.
O tempo integral existe e gera mudanças. Não sem obstáculos. A complexidade da educação evidencia: é preciso expandir e monitorar permanentemente a qualidade. No Estado, a proposta é a universalização do modelo até 2026. Agora, como é a oferta e para onde caminha?
Esta matéria integra a segunda edição da série de reportagens especiais, "Terra de Sabidos - escola de todos os tempos", que conta a história de estudantes, professores e gestores de unidades estaduais do tempo integral, discutindo o impacto desse modelo de ensino na vida dos alunos e de toda a comunidade escolar, assim como de cidades inteiras.
A rede pública estadual tem 751 escolas de Ensino Médio no Ceará. Destas, segundo a Secretaria da Educação (Seduc), 672 podem ofertar tempo integral, e 472 já o fazem. Com isso, o modelo que deu os primeiros passos no Estado em 2006, com o pioneirismo do Colégio Justiniano de Serpa, em Fortaleza, e seguiu em 2008 com a implementação da jornada ampliada vinculada ao ensino técnico, tem avançado. Em 2023, a oferta já alcança 71% das unidades.
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A conta ganha sentido e forma no dia a dia de quem se depara com a experiência, sejam os estudantes de Fortaleza onde há a maior concentração da demanda e 89 escolas estaduais têm a jornada ampliada, ou aqueles no sertão, no litoral e nas cidades serranas do Ceará.
Nessas áreas da Região Metropolitana e do interior, em muitos casos, o formato chegou há mais de 10 anos e, em boa parte das cidades, é referência de oportunidades onde vigora.
Na rede estadual do Ceará dois formatos compõem a oferta do tempo integral:
- 341 escolas são de Ensino Médio em Tempo Integral, chamadas de EEMTI; nelas, em geral, os estudantes passam 9h por dia na unidade (com exceção de Fortaleza na qual algumas instituições têm carga horária diária de 7h) e têm o currículo dividido em formação geral (com disciplinas como português, matemática, química, história..) e formação diversificada (o que inclui o projeto de vida e a formação cidadã);
- 131 escolas de Educação Profissional, conhecidas como as EEEP. Nestas, a jornada também é ampliada, há currículo geral e diversificado, mas o Ensino Médio é integrado à educação técnica (com disciplinas relacionadas à formação profissional ). Nelas, os estudantes na 1ª série optam por um curso técnico e nos 3 anos aprendem uma profissão em paralelo aos estudos. No segundo semestre da 3ª série, eles cursam estágios curriculares obrigatórios e remunerados.
“Nunca tinha estudado em tempo integral. No começo tive que me acostumar. A escola é referência e eu queria muito fazer o curso de enfermagem. É algo que eu gosto. O curso técnico é o grande diferencial da minha escola e também a qualidade de ensino, não só da base técnica, mas também da base comum”, argumenta Cibele Ferreira de Araújo, 14 anos, estudante do 1º ano de uma EEEP da redes estadual e moradora de Aurora, no Cariri.
A quilômetros dali, na zona Norte do estado, em Granja, Jéssica Maria Fontenele, de 17 anos, aluna do 2º ano de uma EEMTI destaca outras características: “no tempo integral, a maioria das pessoas tem vínculos fortes porque passamos o dia todo juntos. Temos também professores extremamente qualificados, que a gente fica encantado escutando falar. Acho que o ensino médio da minha escola é o melhor da nossa cidade”.
Além desses modelos, a rede estadual tem ainda as escolas regulares, as quilombolas, as militares, as indígenas, as do campo e a de Jovens e Adultos (EJA). As 18 cidades em que não há nem EEMTI, nem EEEP no Ceará, contam somente como modelos regulares. A exceção é o município de Madalena, que não tem tempo integral no Ensino Médio, mas conta tanto o modelo regular, como uma do campo.
Início com a educação profissionalizante
A ampliação do tempo integral é uma demanda histórica na educação brasileira. O projeto, cuja expansão está previsto no atual Plano Nacional de Educação (PNE), em vigor de 2014 a 2024, ganhou evidência nos últimos anos no Brasil e há esforços para ampliar a oferta tanto no Ensino Fundamental como no Médio. Na área federal, o Governo instituiu recentemente o Programa Escola em Tempo Integral, via Lei Federal 14.640/2023.
No cenário nacional, Pernambuco, Paraíba e Ceará com 62,5%, 57,8% e 42,1%, ocupam, respectivamente, a 1ª, 2ª e a 3ª posição na proporção de alunos da rede pública matriculados em tempo integral no Ensino Médio, conforme o Censo Escolar de 2022. No Ceará, o processo na rede pública estadual começou em 2006 no Colégio Justiniano de Serpa, à época, no final da gestão do ex-governador Lúcio Alcântara, inspirado nas práticas de Pernambuco. Desde esse tempo, a escola segue com o modelo de jornada ampliada.
Em 2008, na gestão do ex-governador Cid Gomes, o Estado iniciou a experiência de tempo integral conectada ao ensino técnico, com a criação das Escolas Estaduais de Educação Profissional, via Lei Estadual 14.273, em dezembro. Já, em 2016, no governo de Camilo Santana, o Estado implantou oficialmente as chamadas Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Nessas, conforme a Lei Estadual 16.287, de julho de 2017, a carga horária é de 45 horas semanais, o que equivale a 9 horas diárias na escola.
Com o início da modalidade profissionalizante, o Governo adaptou 25 escolas que eram de ensino regular em 20 cidades diferentes, incluindo Fortaleza e o interior. Na época, a proposta era receber 4 mil alunos que buscavam uma formação técnica já no Ensino Médio.
Participei da implantação das escolas de educação profissional. Foi visto como seria a jornada ampliada com o curso profissional. Quando começamos a pensar nas regiões, tudo era muito novo. Causou susto nas famílias e teve, de certa forma, uma rejeição. Quando começaram a compreender, saber o que eram essas escolas, elas passaram a ser muito procuradas.
A secretária de Educação do Ceará, Eliana Estrela, destaca que nesse modelo, os estudantes são preparados para o mercado de trabalho e os cursos ofertados são definidos a partir da demanda em cada cidade. “Isso não significa que na escola que tem curso técnico o aluno não se prepare para a universidade. Pelo contrário. Há um incentivo direto. O Enem é muito importante e desde o primeiro dia de aula em toda a rede há essa preparação”, completa Eliana.
Nesse caso, afirma Eliana, para que uma escola passe a ser de ensino profissionalizante, as CREDES “fazem um estudo de demanda que olha para o tamanho das cidades, a quantidade de alunos e de escolas e também para o mercado”.
No processo, o Ministério da Educação (MEC) fornece o catálogo de cursos técnicos. Quando teve início em 2008, a oferta no Ceará era de apenas 4 cursos profissionalizantes (Informática, Enfermagem, Guia de Turismo e Segurança do Trabalho), hoje já agrega 53 formações diferentes oferecidas em 101 cidades cearenses.
Expansão do tempo integral
Com o passar dos anos, veio a implementação do tempo integral. Em 2016, o Governo incluiu 26 escolas de Ensino Médio no modelo. Hoje são 341 unidades nesse formato. O foco com esse novo processo, diz Eliana, é olhar para “os itinerários formativos”.
Nesse caso, os estudantes permanecem na escola na jornada estendida e a oferta é de um projeto pedagógico que inclui, além dos conteúdos gerais, a parte flexível com cultura, a arte e o esporte. Nessas unidades, não há um padrão único para seguir os itinerários formativos.
De acordo com a secretária, as escolas de tempo integral foram implementadas no Ceará após a existência do formato profissionalizante na rede estadual, então, em muitas cidades as famílias e os estudantes já tinham a referência do sistema integral.
Eu costumo dizer que não é só estar mais tempo na escola. É a questão do currículo. Um currículo mais aberto, amplo, flexível, que olha para os projetos de vida. Quando os alunos chegam, eles constroem com os professores os seus projetos. Falam quais são os sonhos. Além do currículo básico, eles têm eletivas e a interação com colegas. Vão de uma sala para outra. Além do contato com professores e professoras que fazem essa orientação, trabalhando também as questões socioemocionais.
Na ampliação da oferta, explica ela, as escolas são escolhidas levando em conta e naquelas nas quais é possível adaptar a estrutura, ocorrem reformas para garantir a ambiência adequada. Nessas, as aulas permanecem no local enquanto as obras ocorrem.
Em outras, é preciso refazer completamente a estrutura física, logo é preciso encontrar outros prédios que possam servir de escola enquanto a obra ocorre para que assim haja a implementação do tempo integral. E há os casos em que terrenos são adquiridos para garantir a construção do zero.
A questão física desafia a expansão do modelo no Estado, pondera Eliana. “Tem escola que tem um número muito grande de alunos, então, esses alunos precisam ir para outro prédio. Em alguns municípios não tem como fazer isso de imediato”, completa. Hoje, na ampliação da rede são considerados tantos os territórios em condições mais vulneráveis, como os locais que tenham condições de expandir a jornada com a estrutura física já existente.
O que precisa ser considerado na garantia do ensino integral?
“A ampliação da carga horária para o Ensino Médio é, sem dúvida, importante para os alunos, mas é necessário levar em conta nessa decisão duas perspectivas: que proposta, em termos de currículo, contempla essa ampliação de carga horária e que condições de infraestrutura dos espaços escolares e materiais pedagógicos estão disponíveis para uso pelos alunos e docentes”, pondera doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Eloisa Vidal.
O maior problema associado ao desinteresse dos jovens pela escola diz respeito às metodologias de ensino usadas, cujas abordagens ainda estão muito moldadas na pedagogia da transmissão-recepção.
De acordo com a pesquisadora, a construção de uma proposta curricular interessante para as juventudes, não significa sacrificar conteúdos historicamente produzidos e que servirão de passaporte para que avancem na trajetória escolar.
Eloísa também reforça que é preciso observar as condições de infraestrutura das escolas cearenses, visto que, as escolas de tempo integral, diferentemente de grande parte das escolas com educação profissional, diz ela, “estão sendo viabilizadas nos mesmos prédios em que funcionavam as escolas de turno único”.
Sobre o impacto na vida dos alunos, a professora explica que o modelo de tempo integral vigente no Ceará “ainda não passou por uma avaliação de resultados, nem de impacto” e indica alguns pontos que podem ser objeto de análise, como:
- Se a diversidade de eletivas tem algum tipo de repercussão na sua vida futura;
- Se a satisfação dos jovens com a escola melhorou;
- Se as motivações para o estudo aumentaram
- Se o modelo favorece ou dificulta o acesso a níveis superiores de escolaridade
Por outro lado, num estado pobre e com a maioria da população submetida a situações de vulnerabilidades, às vezes, agudas, a permanência dos jovens durante pelo menos sete horas na escola, com três refeições balanceadas, representa um suporte importante em termos de segurança alimentar e permanência desses jovens num espaço seguro.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ruy de Deus e Mello Neto, ressalta que expandir a oferta de ensino integral para todos os municípios têm se mostrado experiências bem-sucedidas. “Os resultados obtidos em avaliações externas, especialmente no caso de Pernambuco, sustentam a ideia de que é vantajoso considerar uma abordagem mais abrangente, estendendo-a a todos os estados”, afirma.
Porém, destaca que é importante ter uma preocupação maior e um debate aprofundado sobre “as políticas que serão necessárias para lidar com os desafios decorrentes dessa universalização. Por exemplo, como planejamos apoiar os estudantes que trabalham? Quais são as exigências físicas das escolas? Como vamos desenvolver os itinerários formativos? Será viável oferecer todos os itinerários formativos em todas as escolas integrais?”
O professor ressalta a complexidade das decisões sobre os temas em debate, e reforça que a reforma do Ensino Médio, está completamente entrelaçada a essa discussão. Sobre o ensino integral, diz ele, sobretudo, associado a nova visão da escola com a reforma do Ensino Médio, no qual há um papel na preparação dos alunos para o mercado de trabalho, “há um grande potencial de transformação”.
“Seja na redefinição do conteúdo a ser abordado ao longo dos anos, seja na formação desse novo tipo de aluno. É inegável que estamos presenciando o surgimento de uma nova dinâmica educacional”, acrescenta ele.
Enfrentar as desigualdades
Em relação às desigualdades dentro da própria rede, visto os distintos modelos de oferta (regular, de tempo integral, profissionalizante, dentre outras), a professora Eloísa pondera que “o tempo integral universal para os estudantes do Ensino Médio se coloca como uma utopia num país tão desigual como o Brasil”. Ela destaca que é preciso criar políticas de apoio aos estudantes para que eles possam se dedicar integralmente aos estudos.
“Essa é a realidade de muitas famílias do interior do estado do Ceará, cujos filhos começam a ajudar na renda doméstica muito cedo, com trabalhos sazonais ou esporádicos. As famílias não podem dispensar essa ajuda e certamente, programas de bolsas, de auxílios ou que nome tiver, precisam ser implementados como suporte para assegurar a permanência do jovem na escola de tempo integral”.
Outro desafio que precisa ser equacionado são os jovens que optam pelo estudo noturno, logo, não há como incluí-los no tempo integral e os que abandonaram a escola por algum motivo e o retorno ao estudo se dá na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A escola deve se esforçar para oferecer uma ampla gama de itinerários formativos, acompanhados por uma variedade de disciplinas eletivas que sejam pedagogicamente adequadas ao nível de formação dos alunos. Tudo isso, é claro, deve ser desenvolvido em estreita colaboração com o corpo docente, pois o sucesso dessa nova abordagem educacional depende da sua participação ativa.
O professor Ruy também reitera que “a simples expansão da carga horária não é a solução definitiva para todos os desafios educacionais”.
Ele também pondera que é um desafio substancial a ser enfrentado são os estudantes que precisam trabalhar. “Em uma rede educacional diversificada, existe o risco de que as escolas integrais se transformem em uma espécie de sub rede de excelência interna, o que pode ser problemático em uma rede de ensino tão extensa e desigual. Estabelecer estratégias para garantir uma educação adequada para aqueles que não podem ou não desejam estudar em escolas integrais se torna uma tarefa complexa”, argumenta.
Essa questão, diz ele, representa um desafio significativo que “exige uma abordagem cuidadosa e adaptativa ao contexto local. Mas, claro, como já reforçado, isso vai passar muito pelo desenho final da reforma.”