Ainda é tempo de falar de Gilberto Gil e sua generosidade na despedida
Gil vai se despedindo devagar, deixando os palcos deste país aos poucos, num gerúndio que já dura mais de um ano em respeito ao público que o aclama a cada cidade.
No final dos anos 2000, estive com Gilberto Gil pela primeira vez. Eu era estagiária de comunicação em uma ONG e ele era aquela força conhecida da música popular brasileira encabeçando o Ministério da Cultura. Estava ali por conta de sua política dos pontos de cultura.
Eu tentava espaço num grupo de jornalistas que se engalfinhava para fazer perguntas ao ministro. Queria também uma declaração dele para a revista da ONG, chamada “Dextá”. Ele parou tudo, me olhou e disse: “Faça sua pergunta”. Nunca esqueci dessa cena e do pocket show que ele fez no evento — era uma Campus Party — falando de gigabytes e da força da internet.
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Costumo dizer que minha admiração por Gilberto Gil passa pela música, pela poesia, pela política e pela forma sóbria e generosa com a qual enxerga o nosso mundo. É por isso que suas canções estão sempre nas minhas playlists e nas mais diversas fases da vida.
O longo nome do meu filho, com cinco palavras, vem de um argumento dele: “As famílias precisam ter o direito de carregar seus sobrenomes. É poesia”. Concordo.
Quando a última turnê de Gilberto Gil foi anunciada, há mais de um ano, eu sabia que iria. Por conta de uma cirurgia na coluna, precisei acompanhar o show sentada num espaço reservado (e seguro), não sem antes o borracheiro Dinho trocar o pneu da cadeira de rodas que viabilizou minha presença no evento. E tudo valeu a pena.
Em um domingo de calor, Gilberto Gil saudou a plateia fortalezense. Disse que já havia cantado para nossos avós e nossos pais, e agradecia a nossa presença. Aos 83 anos, cantou, dançou e inspirou. Apresentou a família dele como quem compartilha um espólio artístico incomparável, destacando também cada músico com generosidade.
“O show do Gil é como uma oração”, me disse uma amiga que acompanhava o show. Gil vai se despedindo devagar, deixando os palcos deste país aos poucos, num gerúndio que já dura mais de um ano em respeito ao público que o aclama a cada cidade.
É que Gil não sabe desanimar, não aprendeu a passar batido pelo mundo. Mesmo nos momentos em que o público clamava por Preta – sua filha que partiu recentemente —, o olhar sobre tudo vinha sóbrio: “Ela já foi. Um dia partiremos também”. E seguia.
Gil continuará se despedindo por outras cidades do país até março de 2026. Deve voltar ainda ao palco do Rock in Rio. Vai seguir sempre imortal na Academia Brasileira de Letras e, mesmo que deixe as turnês, certamente continuará presente na vida dos brasileiros. A generosidade com a qual vê e compartilha o mundo pela música está logo ali, a uma playlist de distância que merece ser ouvida.