Rua dos Tabajaras: história, design e vida noturna em uma das ruas mais charmosas de Fortaleza

Estreitinho e colorido, com moradas centenárias e trajetória de mudanças, o endereço traduz a pluralidade criativa da cidade, bem como as diferentes fases dela

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Tão colorida quanto viva, a Rua dos Tabajaras é feito um portal aberto no meio da cidade para adentrarmos a Fortaleza da criatividade e do aconchego
Foto: Ismael Soares
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O fato de estar entre o mar e a avenida já faz da Rua dos Tabajaras um dos endereços mais queridos de Fortaleza. Soma-se a isso o colorido das paredes e uma história em sintonia com as mudanças da cidade, e temos um tesouro para chamar de nosso. Encravada na Praia de Iracema, a via chama para mais perto e reserva experiência múltipla ao visitante.

Nativo ou turista, é fácil se encantar do início da manhã ao fim de noite por lá. O logradouro é de fases. Comecinho do dia, o fluxo é calmo, gente passando depois de um banho na água. Princípio da tarde, quase tudo fechado, aquele silêncio. Quando o sol desce, a magia passa a acontecer: lojas se avivam, bares se acendem e a energia flui.

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Um charme em todos os sentidos. No panorama geral da quinta capital do País, é um luxo ainda poder colocar cadeiras na calçada para dividir uma boa prosa. E sentir a brisa oceânica, vento que traz calmaria. O próprio nome do logradouro traz inspiração também. Herda da lógica interna do bairro, no qual várias ruas são denominadas conforme tribos indígenas, a exemplo de Tremembés e Pacajus.

“A Rua dos Tabajaras é a principal artéria do bairro Praia de Iracema, atualmente transformada em via compartilhada. Representa algo do bucolismo do lugar, antigamente conhecido como Praia do Peixe, o primeiro com instalações praianas na cidade – bangalôs de famílias abastadas – quando ir à praia tornou-se opção de lazer”, situa Romeu Duarte, arquiteto e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará.

Legenda: A Rua dos Tabajaras é a principal artéria do bairro Praia de Iracema, atualmente transformada em via compartilhada
Foto: Ismael Soares

Segundo ele, uma vez a convivência entre pedestres e veículos ter sido facilitada no espaço nos últimos anos, o lugar se tornou muito procurado para a instalação de bares, restaurantes, cafés e bistrôs, além de lojas cujo foco reside no design, na moda e no artesanato – peças-chave para que diferentes públicos transitem e façam morada afetiva ali.

Entre memória e modernidade

Tem outro bônus nesse combo: o endereço conserva a sensação de adentrarmos numa espécie de portal sem sairmos da metrópole, reflexo da arquitetura diferenciada das casas e estabelecimentos – coisa de outras épocas, da Fortaleza Antiga. Apesar de ter perdido praticamente todos os imóveis originais, é um alento ainda avistar essa realidade por lá.

Vice-prefeito da Capital e superintendente do Instituto de Planejamento (Iplanfor), Élcio Batista reforça o componente histórico da Rua dos Tabajaras. “Ela é patrimônio imaterial, digamos assim, de nossa cidade, ao mesmo tempo que um patrimônio material. Uma rua que materializa fisicamente essa identidade e a história cultural de Fortaleza”.

Isso principalmente nos aspectos relacionados à música, ao encontro e à nossa forma de convivência, sempre baseada no acolhimento. Nessa conta – por estar na Praia de Iracema, simbolizando alguns valores que carregamos, a exemplo da liberdade, dada a questão da proximidade com o antigo porto da cidade – é importante frisar como ela chegou até o presente. O que foi e o que é a Rua dos Tabajaras?

Legenda: Um trecho da Praia de Iracema e, bem ao centro, a Rua dos Tabajaras: endereço em constante transformação
Foto: Thiago Gadelha

Tudo começa quando a Praia de Iracema tornou-se um bairro residencial luxuoso, após o ano de 1926. À época, a colunista social pernambucana Adília de Albuquerque, em campanha nos jornais, trocou o primitivo nome – Praia do Peixe – para o atual. 

Assim, os moradores originais, pescadores e jangadeiros, foram alvo de uma “expulsão branca” e o novo espaço foi esquadrinhado com quarteirões compridos e estreitos, ocupados pelos bangalôs de famílias ricas, que lá poderiam passar férias e feriados. 

“A Praia de Iracema sofreu muito nos anos de 1940 com a construção do porto do Mucuripe, quando a força das marés destruiu quarteirões inteiros fronteiros ao mar, o que lhe valeu até um samba composto por Luís Assunção, ‘Adeus, Praia de Iracema’”, detalha Romeu Duarte. 

O interesse turístico foi reforçado com a construção, em 1951, do Edifício São Pedro, que abrigou o Iracema Plaza, primeiro hotel praiano da cidade. Por essa época, a Praia de Iracema já era frequentada por uma boemia artística, que batia ponto todo dia nos bares, tais como o Estoril e a Vila Morena, antigo chalé da família Porto. 

Nomes incontornáveis – de Belchior a Fagner, passando por Amelinha, Ednardo e tantos outros – ocuparam a via com poesia fina e presença marcante, traduzindo a atmosfera do que encontraram e do que encontraríamos, futuramente, ao passear pelo chão de paralelepípedos e banquinhos multicor. E ainda viria mais.

Tantas mudanças

Recentemente, a Rua dos Tabajaras recebeu a placa “Fortaleza, cidade mundial do Design”, em alusão à economia do conhecimento produzida na região. A chancela da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) identifica lugares da Capital nos quais podemos visualizar trabalhos e ações em que a criatividade e possibilidades de elaboração falam mais alto.

Não à toa, o logradouro ocupa o distrito de inovação, cultura e design da cidade – uma vez reunir tantos aspectos dessa natureza, tendo no já mencionado Estoril um dos maiores símbolos. Após ter passado bastante tempo abandonado, o prédio foi recuperado e hoje abriga a Secretaria da Cultura do município, bem como o Observatório do Turismo de Fortaleza. 

Legenda: Reportagem de junho de 2002 testemunhava que transformar a Rua dos Tabajaras em calçadão era a intenção de um grupo de donos de estabelecimentos da Praia de Iracema
Foto: CEDOC/Sistema Verdes Mares

“Há uma preocupação da Prefeitura de fazer com que esse sítio arqueológico, histórico e geográfico possa se manter, ao mesmo tempo agregando as necessárias transformações urbanas que a cidade precisa passar. É isso que a gente tem buscado realizar: combinar regeneração urbana com valorização do patrimônio”, destaca Élcio.

O Centro de Documentação do Sistema Verdes Mares (Cedoc) registrou outras mudanças e acontecimentos na rua ao longo dos tempos. Reportagem de 20 de abril de 1995 mostrou que o entupimento das bocas-de-lobo no cruzamento das ruas dos Tabajaras e Cariris vinha causando transtorno a moradores, estudantes e funcionários de órgãos públicos. 

O problema acontecia desde a inauguração das obras de reforma da Ponte dos Ingleses (Ponte Metálica) e, se durasse por mais dias, a comunidade correria o risco de se contaminar com a leptospirose. Naquela época, conforme o texto, eram “muitos os roedores na área da Praia de Iracema”.

Legenda: Em 2002, a rua passou por uma lavagem simbólica, marcando o lançamento oficial do Condomínio da Praia de Iracema
Foto: CEDOC/Sistema Verdes Mares

Por sua vez, reportagem de 25 de junho de 2002 testemunhava que transformar o endereço em calçadão, com acesso somente para pedestres no trecho onde se localiza o Estoril, era a intenção de um grupo de donos de estabelecimentos da Praia de Iracema no intuito de deixar a área mais confortável para visitantes a pé.

Na mesma matéria, é evidenciado que, apesar de ser o reduto preferido dos turistas, a Rua dos Tabajaras era alvo de “desrespeito”. “Quem passa por lá  percebe facilmente mesas e  cadeiras de alguns restaurantes e bares ocupando calçadas, sem deixar outra opção para o pedestre a não ser dividir os espaços da via  pública com os veículos”.

Naquele mesmo ano, a rua passou por uma lavagem simbólica, marcando o lançamento oficial do Condomínio da Praia de Iracema. O ato foi realizado por empresários, funcionários e a população em geral. Quatorze empresas que atuavam no bairro se uniram com o objetivo de valorizar os prédios do “tradicional bairro boêmio de Fortaleza”.

Preservar o que é nosso

Esse mesmo DNA percorre os movimentos de Chico Gualbernei na atualidade. Empresário e militante pela Praia de Iracema, ele realizou um processo de manutenção das características volumétricas das casas da Rua dos Tabajaras, redesenhando o estilo da época em que foi criada. Não houve recursos públicos nesse trabalho.

“Começou com a casa onde morei, aqui na Tabajaras, há uns 10 anos. No total, foram quatro casas e um prédio, a Vila Morena (@vivavilamorena), um ‘open mall’ de uso misto com salas e lojas que podem receber cafés, restaurantes, varejistas e prestadores de serviço em geral, bem como escritórios empresariais ou de autônomos”, diz.

Legenda: Sede da Vila Morena, antigo chalé da família Porto, fica na esquina da Rua dos Tabajaras com a dos Tremebvés
Foto: Kid Júnior

“Minha história com a Praia de Iracema é antiga. Iniciei como frequentador do Estoril, depois como um dos proprietários do Alambique, a primeira cachaçaria de Fortaleza”.

O investimento dependeu do valor de aquisição e do estado físico dos imóveis. Em média, cada um custou R$2 milhões. No princípio do projeto, lembra Chico, as edificações estavam em péssimo estado de conservação. Entre licenças legais e construção, passou-se por volta de um ano. Foram feitas reformas e adequação às novas exigências construtivas, de segurança e das necessidades dos negócios que se instalaram na rua.

“As fachadas com estilo de época e cores alegres marcantes, juntamente com o calçamento do piso intertravado, deixaram a rua ainda mais bonita e atraente aos novos ocupantes e usuários. A Praia de Iracema tem resistido na nossa Beira-mar. É o único bairro que mantém sua história, seus moradores e que atrai um público jovem de frequentadores e empreendedores. Já foi um bairro boêmio, hoje é um distrito criativo e gastronômico”.

Legenda: No Pirata Bar, a Segunda-Feira Mais Louca do Mundo é evento conhecido até internacionalmente
Foto: Ismael Soares

Mundialmente conhecido, diga-se de passagem, sobretudo devido a lugares como o Pirata Bar (@piratabaroficial). O negócio já foi notícia no jornal americano The New York Times devido à Segunda-feira Mais Louca do Mundo, ativa desde janeiro de 1987 – “onde se consuma o mais alegre e devastador motim contra as tristezas e frustrações”, apontou o periódico gringo.

Passadas quase quatro décadas, a belíssima casa integra o Complexo Pirata, composto pelo Restaurante Arupemba, com culinária regional e música ao vivo; o Forró com Tapioca, todas as sextas com aulão de forró; Café Ilha, com café da manhã, almoço e lanche, de segunda a domingo; o Pirata Eventos, responsável pela produção artística e pelos shows das bandas realizados dentro ou fora do Pirata Bar; e a Loja Mapa, responsável pela confecção e comercialização de diversos produtos (roupas, moda praia e souvenirs).

O comandante desse império, Rodolphe Trindade, é francês radicado no Ceará e atento observador da Rua dos Tabajaras. “Quando a gente chegou aqui, em 1986, tinha o Estoril – na época um botecão com vários problemas estruturais; mais à frente, o Cais Bar e, depois, o La Trattoria. Eram basicamente esses três espaços. Logo, a Rua dos Tabajaras era, de maneira geral, residencial, embora sem os casarios coloridos e tudo o que tem hoje”.

Legenda: O Pratim Padim Ciço é iguaria cobiçada no Pirata Bar
Foto: Ismael Soares

A Ponte Metálica também não havia ainda passado por reforma e, entre outros prédios, havia a sede do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). “Acho que a grande transformação foi quando o Pirata se instalou. Começou a vir mais barzinhos. Depois, com a grande transformação da Praia de Iracema, houve outro boom. A ponte era tão cheia que tinha que sair um número de pessoas para outras entrar. Era entre 1990 e 2000”.

Aguardando, com entusiasmo, a conclusão da nova reforma da Ponte dos Ingleses, Rodolphe celebra a segurança e tranquilidade da rua, ao mesmo tempo que reflete: “Aqui já tivemos o auge, a decadência, o abandono, e agora estamos voltando ao auge. O desafio é criar um mix de comércios e de movimentação boa e permanente, além de um ordenamento urbano”.

Belezas à mão

Outra pessoa com visão apurada sobre o local é Silvânia de Deus. Moradora da Praia de Iracema e proprietária do Ateliê da Sil (@ateliesilvaniadedeus) – graciosa boutique no comecinho da Rua dos Tabajaras, próximo à Igreja de São Pedro, há 30 anos – ela também recorda avistar outra paisagem quando ali se estabeleceu.

O primeiro destaque vai para os estabelecimentos comerciais: não existia quase nenhum. “A gente abriu como Ateliê-bar Odisseia. Era um bar muito lindo, muito ‘na boa’. Naquela época, as pessoas que faziam a cena cultural da cidade eram os frequentadores do Ateliê-bar. Fátima Araújo, Dodô Amaral, Damiana… Era uma cena bem marcante, efervescente, que propunha e trazia mesmo frescor e novidade”.

Segundo ela, ao tecer uma análise profunda sobre a rua e a Praia de Iracema, “é como se o bairro tivesse muitos donos”. “Eu sinto isso. São muitas bocas para comer a mesma fatia de bolo. E a divisão dessa fatia nem sempre é tão igual, tão democrática”. De igual modo, celebra o presente de ocupar o perímetro. Para Sil, estar na Rua dos Tabajaras é um luxo.

Legenda: Para Silvânia de Deus, moradora e empreendedora na Rua dos Tabajaras, esse conversar na calçada é um dos luxos do lugar
Foto: Ismael Soares

“Aqui tem uma sofisticação que poucos lugares dessa cidade têm. A gente conserva um jeito de ser e estar que o cearense está perdendo, infelizmente. É talvez nossa maior elegância: saber se relacionar com o vento, com a calçada, com estar nessa ponta do mapa e tudo o que isso quer dizer. E ainda andar a pé, ter muro baixo nas casas. Como nós somos uma cidade com uma relação difícil com o charme, né?”.

Envolta por agulhas, tecidos e texturas, Silvânia é uma grande militante da Praia de Iracema e espera que o ordenamento daquele pedaço seja cada vez maior. “Que tudo aconteça diferente, com mais responsabilidade. Pode ser uma grande ilusão minha, mas a gente torce”.

Energia depositada para que mais gente possa somar. Caso da artesã, figurinista e designer de moda Lariça Lopes e a sua “Tropicana” (@soutropicanaa). Embora tenha nascido há mais tempo, a loja está há um ano na Rua dos Tabajaras. Especializado em acessórios autorais e sustentáveis, o recanto é um espaço colaborativo que recebe outros artistas a partir de uma curadoria de marcas. 

Escolher estar no endereço é resultado de observações de Lariça. “Sempre foi um lugar que me encheu muito os olhos. E, com o apoio da Silvânia de Deus, assim que existiu uma oportunidade de espaço na rua, eu abracei”.

Ela descreve a Rua dos Tabajaras como um lugar de afetos e memórias. Uma vez o endereço conter, no próprio nome, uma alusão aos povos indígenas moradores do litoral, a identificação vem fácil: Lariça também se considera uma mulher afro-indígena. CEP e CPF em comunhão. “Habitar esse território é uma herança mesmo – ancestral, de pertencimento”.

“Os desafios são os desafios de qualquer empreendedor. Empreender é difícil. É você estar ali todo dia batalhando pra que tudo dê certo. Mas eu acredito que, quando você faz com o coração, os desafios fazem parte da história. É como a nossa rua que, com o passar do tempo, foi ficando mais colorida, mais linda, mais florida”.

Esta é a segunda matéria da série de reportagens Viva o Verão, que explora o potencial turístico, gastronômico e de lazer em Fortaleza.

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