Oswald de Andrade muito além do Modernismo: Lira Neto lança biografia com passagens pouco conhecidas da vida do escritor

Obra ganhará lançamento em Fortaleza e deve jogar luz na trajetória controversa, autêntica e incendiária de um dos maiores nomes da Literatura Brasileira

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: De ironia ferina e humor agressivo, Oswald de Andrade é cristalizado por Lira Neto em biografia que contempla vida e obra do escritor
Foto: Coleção Marília de Andrade

Era um rapaz tímido e gordo, ridicularizado na escola devido aos dois atributos. Sofria, mas tratou de contornar: tornou-se incendiário, desses de ironia ferina e humor agressivo. Na faculdade, foi anarquista implacável e, tão logo descobriu-se vocacionado às letras, fez com que um pensamento muito próprio influenciasse todo um grupo. Um louco. Um gênio.

Oswald de Andrade, se visto para além da lente abreviada do Modernismo, é personagem complexo e repleto de momentos pouco iluminados. Lira Neto apodera-se dessas pontas e reúne tudo em “Oswald de Andrade: Mau Selvagem”, biografia lançada nesta terça-feira (11) pela Companhia das Letras. Após São Paulo, Fortaleza deve receber evento sobre a obra.

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Da infância aos instantes finais da vida, o texto contempla sobretudo os pormenores da trajetória andradiana, figura das mais controversas da Literatura Brasileira. A começar pelo subtítulo do trabalho: ao evocar o termo “Mau Selvagem”, Lira faz questão de enfatizar a oposição de ideias e identidade do biografado com a teoria do Bom Selvagem, de Rousseau. 

“O próprio Oswald dizia que não deveríamos nos inspirar na figura mitológica do Bom Selvagem – base para o Indianismo de José de Alencar e Gonçalves Dias. O Mau Selvagem, assim, seria o antropófago, aquilo que dava, na visão dele, a chave para a compreensão de uma cultura genuinamente nacional”, explica o escritor e jornalista cearense.

Legenda: Longe de pregar bondade e parcimônia, Oswald de Andrade defendia sobretudo a inclusão pela devoração
Foto: Coleção Marília de Andrade

Diferentemente do canibal – puramente um comedor de gente – o antropófago seria aquele que, num processo ritualístico, devora a carne do inimigo não para se alimentar, mas para incorporar as virtudes do morto. O processo, assim, é metáfora para compreensão de Oswald de como a cultura nacional deveria se comportar em relação à cultura estrangeira: devorando o que nos é estranho para absorver as virtudes do alheio.

É como também pode ser encarado o próprio homem: longe de pregar bondade e parcimônia, Oswald defendia sobretudo a inclusão pela devoração. “O ‘Mau Selvagem’, portanto, remete à teoria antropofágica desenvolvida por ele, mas também dá algumas pistas sobre o personagem que o leitor encontrará no livro”, adianta Lira.

Detalhes públicos e privados

Episódios ligados à Semana de Arte Moderna, não à toa – motivo pelo qual geralmente o grande público chega à obra de Oswald – abarcam apenas dois capítulos da obra. Lira está mais interessado no que revelam os mais de 4.800 documentos a respeito do biografado, sob guarda do Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio (Cedae), da Universidade Estadual de Campinas.

Eles mostram, por exemplo, como se deu a conversão de Andrade ao Modernismo, uma vez que até 1918 nada parecia indicar a sina transgressora dele frente ao cânone literário. “Tudo o que ele escrevia tinha um sabor meio passadista. Era, inclusive, entusiasta de Coelho Neto e Olavo Bilac, dois nomes que depois viria a atacar de forma muito agressiva”.

Legenda: Segundo Lira, Oswald é referência porque, na história da Literatura Brasileira, foi o primeiro a romper com certa solenidade do fazer poético e literário
Foto: Coleção Marília de Andrade

Em outros instantes pouco conhecidos, tem-se os efeitos da crise econômica produzida pelo crash da Bolsa de Nova York, em 1930 – cujas áreas mais afetadas no Brasil foram os mercados imobiliário e de café. À época casado com Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade possuía fortuna baseada em terrenos, algo equivalente a toda a zona oeste de São Paulo hoje, e passou por maus bocados devido ao período. Resultado: entra num processo de bancarrota.

Coincidentemente ou não, é nesse mesmo período que conhece Pagu, poeta ativista política e militante comunista, e dá uma guinada ideológica, convertendo-se ao Marxismo, ao Comunismo e se aproximando do Partido Comunista, sendo perseguido implacavelmente pela polícia política do Estado Novo

“Outro aspecto pouco explorado é o momento em que ele, ao fim da vida – início da década de 1950 – passa por um processo de esquecimento público. Os livros dele saem de catálogo, e ele passa a viver uma espécie de ostracismo, uma vez que brigou com muitos amigos. Envelhece e morre completamente sem dinheiro, sem prestígio e sem fama”, resume Lira.

Essa montanha-russa de fatos atraiu a atenção do biógrafo desde muito cedo, ainda na adolescência. Andrade foi um dos heróis da juventude de Lira, outrora integrante da chamada Geração Mimeógrafo – caracterizada por escrever e publicar poesia em folhetos xerocados e mimeografados, geralmente vendidos em ruas e bares da cidade.

Oswald era referência porque, na história da Literatura Brasileira, foi o primeiro, conforme Lira, a romper com certa solenidade do fazer poético e literário, introduzindo o coloquialismo e formas muito curtas – a exemplo do poema “Pílula”, muitíssimo sintético. “Isso nos fascinava. Mas passou, eu amadureci e Oswald continuava me interessando por essa característica insubmissa com relação ao cânone”.

A ideia da escrita da biografia nasceu quando, há seis anos, ao morar no exterior, o cearense começou a perceber que Oswald era fundamental para a compreensão do Brasil enquanto nação e cultura. “A proposta antropofágica dele continua atualíssima para entender o país. Então liguei para meu editor, Luiz Schwarcz, e propus a ele a biografia. Eu já tinha dito em algum momento antes que ele estava nos meus planos, mas ali veio a certeza”.

Surpresas e outros trajetos

Nesse caminho, Lira ainda travou contato com a última filha de Oswald, Marília de Andrade. A mulher forneceu informações sobretudo a respeito da infância dela, baseada em memória afetiva e familiar. Ela também tinha as primeiras edições dos livros dele. “Morreu poucas semanas antes do lançamento do livro, ansiosíssima para ler, uma vez que havia entre nós um acordo tácito, nada combinado, de que só veria o livro depois de publicado”.

Agora em mãos, a obra mergulha, entre outros aspectos, também na intrincada teia de relacionamentos afetivos de Oswald; no teatro desenvolvido por ele, cuja dramaturgia era revolucionária tanto do ponto de vista do conteúdo quanto da forma – chegou a propor um incêndio no palco em uma das montagens; e o ofício jornalístico dele, o que motivou a Companhia das Letras a lançar recentemente “Ponta de lança”, compilado desses escritos.

Legenda: Oswald de Andrade foi um dos heróis da juventude de Lira, outrora integrante da chamada Geração Mimeógrafo
Foto: Renato Parada

“Jamais me interessei por biografados de trajetórias suaves. Todos os meus biografados, de maneira ou de outra, são muito controversos. Todos despertaram paixões extremas. O que me encanta na trajetória de um indivíduo é exatamente esse solavanco, essas asperezas, essas ambivalências típicas de um ser humano cheio de defeitos e de virtudes, de qualidades e de vícios. Eu jamais biografaria um homem bom”, gargalha. 

Nesse sentido, o próximo biografado de Lira – confirmado na XV Bienal Internacional do Livro do Ceará – será Luiz Gonzaga. Um sudestino, outro nordestino. Um da literatura, outro da música. Duas visões complementares do Brasil. “O que me interessa realmente são os abismos, essa coisa dionisíaca – e, às vezes, no caso de Oswald de Andrade, quase demoníaca”. 

 

Oswald de Andrade: Mau Selvagem
Lira Neto

Companhia das Letras
2025, 528 páginas
R$ 129,90/ R$ 49,90 (e-book)

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