Novos museus orgânicos do Cariri valorizam a sabedoria dos mestres da tradição
O Museu Casa de Mestre Raimundo Aniceto, no Crato, o Museu Casa de Mestre Nena, em Juazeiro do Norte, e o Museu Oficina de Dona Dinha, em Nova Olinda, abriram as portas neste mês de agosto
Ô de casa! Posso entrar? É basicamente com essa pergunta que se inicia qualquer visita aos museus orgânicos situados na região do Cariri, no Sul do Ceará. As portas e janelas dos lares e oficinas dos mestres da cultura guardam mundos ainda desconhecidos, mas em flerte com todos que direcionam olhos e ouvidos para lá.
Feito namoro, como diria Alemberg Quindins, idealizador do projeto por meio de uma parceria entre a Fundação Casa Grande e o Serviço Social do Comércio no Ceará (Sesc-Ceará), o encontro se dá entre visitantes e anfitriões apaixonados pelo que veem e vivem. E tem sido assim desde as iniciativas primeiras até as três mais recentes inaugurações: o Museu Casa de Mestre Raimundo Aniceto (6/08), no Crato, o Museu Casa de Mestre Nena (7/08),em Juazeiro do Norte, e o Museu Oficina de Dona Dinha (9/08), em Nova Olinda.
O potencial turístico desses lugares também é ressaltado pela gerente operacional da Unidade Sesc Juazeiro do Norte, Elane Lavor, que prevê uma articulação mais concreta nesse sentido para o próximo ano, em parceria com os guias da região.
"A proposta inicial era que seriam 16 museus aqui no Cariri, mas o presidente da Fecomércio no Ceará, Maurício Filizola, abraçou muito carinhosamente esse projeto e ele já sinalizou o desejo de expandi-lo para todo o Estado", adianta.
Só tem um jeito de entender isso tudo. Vamos "namorar"?
Casa do Mestre Nena
Foi com duas xícaras na mão e um largo sorriso estampado no rosto que Francisco Gomes Novaes, o Mestre Nena, me deu as boas-vindas. Há pouco menos de um ano, nos encontrávamos na mesma calçada, no bairro João Cabral, em Juazeiro do Norte, para falar das expectativas dele em transformar a própria casa em museu. O que outrora era angústia e ansiedade, virou certeza e satisfação. A nova fachada do lar em azul e branco, com as duas imagens do "Padim Ciço" de sua devoção, ajuda a confirmar isso.
Como para exibir um trunfo, ele logo me conduz até a sala, onde o acervo de fotos, instrumentos, acessórios e documentos se espalhou. Aponta para cada peça com orgulho: "aqui estão as roupas que eu brincava de Mateu; aqui um facão que era minha espada de reisado; essa espingarda foi a primeira do grupo Bacamarteiros da Paz", introduz.
Enquanto fala, os netos engatinham pelo chão do museu e a esposa, dona Gorete, prepara o café na cozinha. O cheiro que vem de lá nos inunda, feito a história de brava resistência de Nena como "homem de agricultura e cultura".
Prestes a fazer o aniversário de 68 anos, no dia 30 de agosto, Mestre Nena está certo de que seu presente chegou antes. "Ave maria, não tem preço! É uma honra, é sério. Esse pessoal maravilhoso que trabalhou aqui nunca vai ter um não da minha boca. É amor pro resto da vida!", assinala, encaminhando a visita para o fim, sem saber exatamente onde nem como acabar. "Todo dia chega uma coisa nova para mostrar aqui", diz, apontando para uma pintura ainda emplastificada na parede. "Cada vez mais, a história vai aumentar", acredita, sonhando que um dia, mesmo que já tenha partido daqui, sua casa-museu se torne um patrimônio público para a cidade.
Casa do Mestre Raimundo Aniceto
Lá do fundo do corredor, via-se a silhueta de Mestre Raimundo Aniceto caminhando em minha direção. Ele, que gosta de se sentar na cadeira de balanço sob a sombra da árvore do quintal, fez questão de levantar do descanso pós-almoço para me receber na porta de sua casa-museu. Mesmo com a dicção prejudicada por um acidente vascular cerebral que o acometeu há três anos, desata a falar. Sabe que, por menos compreensível que sejam as palavras, a emoção que emana delas é suficiente para comunicar sua satisfação.
Nosso encontro tem a mediação de dona Raimunda, com a qual o mestre é casado há 60 anos, mesmo tempo em que residem na moradia localizada no Crato. É ela quem o carrega pelo braço, apontando para os retratos familiares da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto, fundada no século XIX, estampados nas paredes do museu. "Aqui, ele ficou com os olhos tão brilhosos", aponta para uma das imagens, descrevendo-o provavelmente com o mesmo encantamento de quando o conheceu. Vê-se também em destaque as fotografias em preto e branco da mãe, do pai e dos irmãos do homenageado. E, essas, é ele quem observa com carinho e evidente saudade.
Após o percurso por todo o corredor e pela cozinha, os dois me conduzem de volta à sala, onde estão prêmios, certificados, a simbólica roupa azul e chapéu preto, um pífano e uma zabumba antiga, e o livro de assinatura, para onde o Mestre Raimundo Aniceto dirige o meu olhar. Para ele, muito importa o registro de que estive ali. Para mim também. A despedida, porém, só vem depois da "aula de dança". Aos 85 anos, o anfitrião levanta-se de qualquer cadeira para dizer que o sangue ancestral que corre em suas veias, circulará ainda por muitas outras gerações da família.
Casa-Oficina de Dona Dinha
Ela fala com os olhos, foi o que eu ouvi sobre Raimunda Ana da Silva, a dona Dinha. E arriscaria dizer mais: a mestra de 68 anos também conversa a partir de seu abraço. As mesmas mãos que entrega ao tear, na produção artesanal de redes que iniciou aos 12, também enlaçam a quem visita sua casa-oficina no bairro de Vila Alta, em Nova Olinda. Chegando lá, ouve-se logo que a residência nas cores verde e amarela "está de portas abertas e é melhor ir entrando porque o sol tá muito quente".
O convite para sentar no sofá é automático, característica de quem busca dar conforto às visitas antes de qualquer coisa. As paredes, que hoje guardam fotografias coloridas e em preto branco da anfitriã, há 13 anos eram levantadas com a força de trabalho dela.
"Carregava água na cabeça, emprestada dos vizinhos, para construir o meu lar", conta, antes de levantar para me mostrar toda a instalação. Da sala, vamos para o quarto de visitas, onde exibe orgulhosa uma coleção de redes. "Nem sei ler nem escrever, o dom que Deus me deu foi esse e eu amo meu trabalho, se não eu nem fazia", destaca.
Passa rápido pela cozinha e demais cômodos, porque o ouro fica escondido no quintal. Lá estão dois grandes teares de madeira, que apresenta como se fossem membros da família. "Caneleiro, pente, lançadeira, carretel, canela, queixa, braço, 'orgo'", enumera cada peça, enquanto aponta de uma a uma. Parece até que dona Dinha está numa sala de aula, e ela mesma não nega. "Ensino a quem quiser aprender. É só olhar. Eu aprendi olhando", diz com simplicidade. Assume o lugar que lhe cabe e, ao passo que trabalha, é como se também dançasse. "Na verdade, dizem que é como andar de bicicleta, mas isso eu não sei. Meu negócio é o tear".
Serviço
Museu Casa do Mestre Nena
Endereço: Rua Senhor do Bonfim, 524, Bairro João Cabral
Juazeiro do Norte (491 km de Fortaleza)
Contato: (88) 9 8133.4488
Museu Casa do Mestre Raimundo Aniceto
Endereço: Rua Dr. Manuel Macêdo, 301, Bairro Seminário
Crato (510 km de Fortaleza)
Contato: (88) 99268.6216
Museu Casa-Oficina de Dona Dinha
Endereço: Rua São Francisco, Nº 9, Bairro Vila Alta
Nova Olinda (520 km de Fortaleza)
Contato: (88) 98847.2875 (agendar com Vera)
*A repórter viajou ao Cariri a convite do Sesc-ce