Novo livro de Itamar Vieira Junior tem conexão com ‘Torto Arado’ e será lançado em Fortaleza
“Salvar o fogo” é ambientado em lugares reais da Bahia e reflete sobre questões ligadas à terra, religião, família e o feminino no Brasil profundo
Destruir e edificar. Transformar e seduzir. Sufocar e acender. Das muitas acepções possíveis para o fogo, Itamar Vieira Junior escolheu todas para o novo romance. “Salvar o fogo” chegou às livrarias no último mês de abril e deve percorrer o mesmo trajeto de reflexões, alcance e interesse despertado pelo fenômeno “Torto Arado”, também assinado por ele.
Pudera: a mais recente trama foi gestada no momento em que o autor desenvolvia aquela, no ano de 2017. “Mas percebi que não conseguiria escrever tudo o que queria no livro”, explica ao Verso por telefone diretamente da própria casa, na Região Metropolitana de Salvador.
Veja também
O presente enredo, assim, exigiu ocupar outras páginas, embora sem reduzir importância e com textura particular. No centro da história, a rotina e as pessoas de Tapera do Paraguaçu, localizada às margens do rio homônimo no interior baiano. Moisés vive com o pai, Mundinho, e a irmã, Luzia. Os outros irmãos estão espalhados pelo Brasil.
Tapera é uma comunidade de pescadores, agricultores e ceramistas de origens afro-indígenas. Todos estão à sombra do poder da igreja católica, dona de um mosteiro construído no século XVII. Os humores e sentimentos questionáveis dos membros religiosos pautam a vivência no lugar, mas não apenas. Questões relacionadas à terra, família, educação, o feminino, entre outras, cercam os moradores de modo implacável, definindo ações e comportamentos.
Por sinal, um dos corações de “Salvar o fogo” está exatamente nessas entrelinhas. A relação entre Moisés, órfão de mãe, e Luzia – estigmatizada pela população por supostamente possuir poderes sobrenaturais – é bonita e complexa de ver. Envolve atenção e cuidado, mas nunca de modo previsível. Além disso, a teia de conexões, simples ou intensas, entre todos os personagens, não deixa de espelhar as próprias experiências de Itamar.
“O rio Paraguaçu é um lugar muito familiar para mim. Guarda a origem dos meus avós paternos e bisavós. Meu pai, embora tenha nascido na Capital, foi criado até os 15 anos às margens do rio. Então, muitas coisas que são narradas ali têm esse fundo pessoal”.
Contatos e divergências
O material íntimo deu estofo para a artesania textual. Não à toa, o que lemos neste segundo romance de Itamar é tudo aquilo que esperamos da visão penetrante do baiano sobre o Brasil profundo. O caldo cultural, encorpado e atento às ancestralidades, combina misticismo, costumes, tradições, forças e fragilidades.
Paisagens ainda pouco exploradas na literatura e riquíssimas simbologias completam o panorama, gerando um efeito curioso: ao mesmo tempo que inauguramos determinados horizontes, também recordamos e fazemos memória de pessoas e espaços nossos. Poderíamos ser Moisés ou Mundinho, ou ao menos conhecê-los. Poderíamos ser Luzia.
“À medida que escrevo, vou conhecendo a mim mesmo, meu papel na sociedade. Então parto de personagens para tentar entender uma história que é coletiva. Por isso, acredito que essa narrativa é atravessada por inúmeras questões: pelo lugar que as pessoas ocupam no tecido social; pela força paradoxal que é dada a essas personagens num contexto que é profundamente patriarcal”, analisa Itamar.
Ele também provoca: se pensarmos, por exemplo, que o colonialismo foi gestado e executado por homens, e que os saberes das mulheres foram relegados a segundo plano, tentar descolonizar uma narrativa seria devolver às mulheres o protagonismo matricial que talvez existisse antes da chegada dos invasores.
“Acho que tudo isso, de alguma maneira, compõe o que escrevo. Não sou um ser apolítico; sou um ser político, e tenho profunda consciência disso. Não tenho nenhum problema de pensar que minha narrativa também é dotada desse sentido político. Até porque vejo que, mesmo os que se dizem neutros, no fundo assumem uma posição política: a da neutralidade”.
Isso explica a intrínseca relação de “Salvar o fogo” com outros escritos de Itamar, numa dança de contatos e divergências. Se levarmos em conta pelo menos o mais famoso livro dele até aqui, há vários pontos a considerar. Em “Torto Arado”, a força da família e da comunidade estava em primeiro plano; neste mais recente, explora-se outra face.
O povoado de Tapera do Paraguaçu é desagregado e se hostiliza entre si, sobretudo a já citada Luzia, alvo fácil de olhares e comentários. Ou seja, o sentido de clã é modificado, vai se perdendo devido aos obstáculos. Por outro lado, a fina observação sobre o interior brasileiro – dos ritos e formalidades às lendas e dificuldades – dialoga com ambos os projetos.
São itinerários que se aproximam e se afastam na mesma medida. Logo, talvez não cause espanto quando uma personagem já muito conhecida do público surja nessas novas páginas. É quando sentimos que a trilogia da terra, anunciada pelo autor, está firmando solo denso. “Torto Arado” e “Salvar o fogo”, terrenos próprios e entrelaçados de algo ainda maior.
Memória e imaginação
Tomando uma das frases do novo livro como referência – “Na teia do esquecimento, a memória se faz das doses iguais de verdade e de imaginação” – Itamar ainda reflete sobre reconstrução e imaginação de fatos e situações na literatura.
Para ele, ao mirarmos o Brasil contemporâneo, pensamos que nosso presente ainda está impregnado de passado, seja devido às desigualdades, seja pelas intrincadas relações de poder. Então, quando propomos uma narrativa de íntima ligação com a história indígena ou a diáspora africana, propomos também considerar histórias que nos foram negadas por tudo.
“Documentos foram destruídos, muita coisa foi silenciada. Nesse sentido, a ficção pode ser uma fonte poderosa, que concilia memória e imaginação. Ela nos dá uma medida da vida e da subjetividade de personagens implicados nessa trama maior, a qual chamamos História”.
Esses e outros pontos devem ser discutidos pelo autor com a escritora cearense Socorro Acioli durante o lançamento de “Salvar o fogo” em Fortaleza. O evento ocorrerá em 12 de maio, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.
“É uma cidade pela qual tenho um carinho enorme”, expressa Itamar. “O Dragão do Mar é um lugar muito especial e simbólico por homenagear um grande abolicionista. Minhas expectativas são altas”.
É afirmação de esperança. E o escritor está esperançoso. Desde o começo de 2023, após quatro anos nebulosos para o Brasil, deseja encarar a História ainda mais de frente. O movimento, avalia, é necessário.
“É claro que os desafios postos são imensos, alguns parecem até intransponíveis, então não resolveremos nossos problemas em quatro ou em oito anos. Mas vejo boa intenção nas pessoas que estão nessa linha de frente, e também da sociedade, de fazer algo que realmente semeie mudanças”.
Por sua vez, quando encara a própria trajetória literária, Itamar considera o novo romance “a melhor coisa que escreveu até hoje”. E ressalta a intenção de sempre ao narrar: trazer à luz personagens invisibilizados pela História e pela sociedade. Em suma, mostrar que todos nós, independentemente de qual lugar ocupamos, contamos juntos a travessia da nação.
“É nessa medida que imagino que o que a Luzia, o Mundinho e o Moisés têm a dizer sobre suas vidas está nos contando também um pouco da História do Brasil: a presença da religião, de como o empreendimento colonial escravista não teria tido o mesmo êxito se não tivesse tido o apoio tácito da Igreja em todo esse percurso; e de como vidas foram modificadas por esses eventos históricos e violentos”.
A ideia, contudo, é que não fiquemos apenas no lamento sobre o que já ocorreu. É preciso considerar cada coisa para projetar uma vida diferente, um mundo diferente. Salvar o fogo.
Serviço
Lançamento do livro “Salvar o fogo”, de Itamar Vieira Junior, em Fortaleza
Dia 12 de maio, às 19h, no cinema do Dragão do Mar (Rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema), às 19h
Salvar o fogo
Itamar Vieira Junior
Todavia
2023, 320 páginas
R$76,90/ R$44,91