Crochê também é cura e pode ser inclusive processo terapêutico
Arte manual tem sido aliada até para reduzir tempo diante de telas.
A linha atravessa a agulha, a agulha dança nos dedos, os dedos movimentam mãos e histórias. Também trazem paz. Não à toa, crochê terapêutico tem sido expressão com alcance animador na internet e em círculos especializados. Sinônimo de silêncio e cura interior, é reverberação do que essa arte manual oportuniza na saúde mental e na emoção das pessoas.
“Porque o crochê faz isso, essa transformação, é que podemos canalizá-lo para a função terapêutica”, explica Alexandre Santiago, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará.
Segundo ele, nossa corporeidade está atrelada à saúde mental. Quando há uma técnica que requer concentração, atenção, beleza, ritmo e criatividade, temos oportunidade ímpar de entrar em contato com as mais incríveis potencialidades que nossas mãos podem fazer. Os benefícios, claro, são vários e vão muito além de maior tempo consigo, por exemplo.
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Em termos de funções cognitivas, atividades manuais com fins terapêuticos demandam uso de dedicação, funções executivas e habilidades visomotoras e construtivas. Ao utilizá-las, ocorre uma espécie de treinamento cognitivo. Ou seja, à medida que usamos essas funções na execução de determinada tarefa, também as treinamos e exercitamos, fortalecendo-as.
Por sua vez, no âmbito da saúde mental, o crochê pode produzir estado semelhante à meditação e ao mindfulness – termo em inglês para designar a prática de focar a atenção no momento presente – e pode promover relaxamento, paciência e regulação da respiração. Resultado: sensação de bem-estar emocional a quem pratica.
“Pode-se dizer que a prática ainda pode ter efeitos ansiolíticos, no sentido etimológico do termo, ou seja, consegue aliviar a ansiedade”, situa Rodrigo Maia, doutor em Psicologia e professor da Universidade Federal do Ceará.
Conforme observa, a busca por atividades manuais hoje parece surgir como contraponto ao uso excessivo de redes sociais e smartphones. Enquanto estes exigem performance, processos manuais pedem presença, zelo e tempo.
“Pessoas adeptas desses ofícios relatam desfechos favoráveis, como menos ansiedade e estresse, mais paciência e persistência, maior tolerância à frustração, entre outros desdobramentos. Consequentemente, incentivam outras pessoas à realização dessas atividades. Fazem o tal do ‘marketing boca a boca’”.
Crochê entre gerações
No caso de Cinara Eufrásio, a transmissão do conhecimento no crochê veio da melhor modalidade de marketing boca a boca: a convivência. Desde muito jovem, a médica obstetra observava a mãe entre linhas e agulhas, e gostava do que via.
A imersão nesse universo, contudo, aconteceu há cerca de um ano, quando uma professora da escola onde os filhos estudam lançou a ideia de criar um grupo com várias mães. O objetivo: aprender a fazer crochê. “Primeiro coloquei no YouTube, ‘Pontos básicos’; depois, essa professora começou uma peça para mim, e disse para eu continuar”. Não parou mais.
Entre tutoriais gratuitos e pagos, e envio de vídeos para a mestra orientadora, Cinara pegou gosto pela coisa e encorajou a si mesma a levar a arte adiante. O que começou com a produção de tapetes – “brincava dizendo que era porque tinha que ser algo para estar longe dos olhos, porque ainda tinham muitas imperfeições”, gargalha – evoluiu para sousplats e bolsas, estas as criações preferidas da médica hoje.
O tipo de linha para a prática também mudou. Passou de uma mais fina – e, portanto, mais tradicional – até uma de cinco a oito milímetros de espessura, portanto mais grossa, denominada fio náutico ou fio de malha. Com ela, ainda não faz e nem sabe se deseja trabalhar por encomenda. Dedica-se mais a realizações afetivas, para presentear quem ama.
E, de quebra, estica outro fio: o do repasse da arte. Não à toa, os três filhos de Cinara vez ou outra já passeiam pelos instrumentos de sossego da mãe. Porque é isso que o crochê também faz com a obstetra: proporciona respiro. “O mundo está caindo e eu não tô nem aí”, ri. “Meus filhos acabam respeitando esse momento, acho que percebem que estou criando alguma coisa. Outro benefício grande é sair do mundo do celular”.
E completa: “Minha mãe teve lesão por movimentos de repetição e por isso parou de fazer crochê. Mas acho que é algo que vai ficar em mim, essa arte. Fico atenta pra alongar, cuidar dessa parte – pra que eu não precise abandonar –, e vejo como sempre fico buscando ideias novas, consumindo mais crochês, ir mais em lojas específicas… Recomendo demais”.
Tão milenar quanto atual
Historicamente, o crochê não tem origem datada. O que se sabe é que essa técnica manual realizada com linhas de várias texturas remonta às mais antigas civilizações e povos. Ou seja, milenar. “É uma técnica que vai se adaptando a materialidades culturais e geográficas”, situa o professor Alexandre Santiago.
Ele explica que essa arte chegou ao Brasil pelas mãos dos europeus, herdadas principalmente por manuais franceses cujas páginas continham o detalhamento da técnica, a fim de ser utilizada em roupas e acessórios.
Inclusive, vale um contraponto: se, na trajetória do mundo, as ditas artes manuais sempre foram algo mais associado à cultura popular – em contraposição às artes plásticas, voltadas para um público elitizado – há tempos essa barreira se diluiu.
“Na contemporaneidade, esses valores se complexificam, principalmente pela ampliação da cultura digital e do que essa cultura dita na moda. Uma marca famosa ou uma influencer usa o crochê, e tal técnica ganha outro status. É preciso entender que isso é importante, essa visibilidade para o artesão ou artesã, mas a valorização deve ser também pela beleza e pelo simbolismo de uma cultura rica em tradições, beleza e criatividade”.
Professora do curso de Design de Moda da UFC, Cyntia Tavares complementa ao afirmar que o crochê dialoga com algumas macro tendências atuais. Ele resgata a autenticidade e o artesanal através da aura de “feito à mão”. Essa característica de unicidade, valorizada hoje em um mundo saturado pelo fast-fashion, deve continuar com força no styling de 2026.
“Há vários sinais – nas passarelas, nas ruas, na cultura de moda – de que essa arte está cada vez mais integrada à moda contemporânea. Vejo que essa busca por autenticidade e individualidade faz com que as peças de crochê, e de outras manualidades, se destaquem”.
Há também a pauta da sustentabilidade a partir da valorização do uso de fibras naturais, e, assim, uma produção mais sustentável e consciente, reforçando o apelo do crochê. Muitos designers e marcas já utilizam algodão orgânico, linho, fios reciclados ou biodegradáveis.
“O crochê deixou de ser restrito a peças de praia ou ‘estilo vovó’, integrando a moda em diferentes estilos – boho, minimalista, casual, urbano, festa”. A força do crochê resulta ainda do fato de ele representar um retorno às raízes, como uma nostalgia reinterpretada.
Essa arte carrega memória afetiva de algo que era feito no passado – tanto que muitas peças contemporâneas misturam estética retrô com cortes modernos, o que dá frescor ao crochê e evita que pareça datado.
“Em síntese, pelo caráter de nostalgia, de revalorização do feito à mão, por dialogar com os ideais de sustentabilidade e também pela adoção por marcas e passarelas, o crochê se manterá com força em 2026”, prevê Cyntia Tavares.
A arte manual para o Ceará
Não apenas o crochê, mas também rendas, labirintos e tantas outras artes tradicionais simbolizam a cultura ancestral do trabalho estético a partir de mãos criativas e sensíveis. Desenham o Ceará.
Um dos trabalhos mais emblemáticos já publicados no país sobre o tema é o livro “Mãos que fazem história”, publicado pelo Diário do Nordeste em 2012, de autoria das jornalistas Cristina Pioner e Germana Cabral.
A obra retrata vida e trabalho de mulheres artesãs do Ceará nas tipologias Barro, Rendas, Linhas, Fibras, Tecidos, Miscelânea, Indígena e Redes. Cada forma de artesanato é abordada em um dos oito capítulos da publicação. Pelo projeto, as jornalistas ficaram em terceiro lugar na 55ª edição do Prêmio Jabuti de 2013.
Na visão do professor Alexandre Santiago, muitas vezes as pessoas que praticam esse tipo de ofício vêm de uma vida dura. Mas, ao sentar para fazer crochê ou renda, encontram ali momento de suspensão de duras realidades e imergem em sensibilidade e beleza.
“Nossa arte ganha o mundo levando nossa cultura artesanal e simbolismo para inspirar a todos. É uma importante contribuição para a economia do Estado, mas principalmente para muitas mulheres que têm nessa arte manual a própria subsistência. O crochê do Ceará e a beleza dele levam para o mundo uma técnica adaptada com nossa criatividade e cara”.