Crochê também é cura e pode ser inclusive processo terapêutico

Arte manual tem sido aliada até para reduzir tempo diante de telas.

Escrito por
Diego Barbosa diego.barbosa@svm.com.br
Na imagem, mãos de uma artesã mais velha segurando uma agulha de crochê rosa e um fio branco, trabalhando em um círculo ou peça de crochê em tom bege com um padrão rendado e texturizado. A artesã veste uma camiseta branca e usa um anel no dedo anelar direito.
Legenda: Crochê pode produzir estado semelhante à meditação e promover relaxamento, paciência e regulação da respiração.
Foto: Fabiane de Paula.

A linha atravessa a agulha, a agulha dança nos dedos, os dedos movimentam mãos e histórias. Também trazem paz. Não à toa, crochê terapêutico tem sido expressão com alcance animador na internet e em círculos especializados. Sinônimo de silêncio e cura interior, é reverberação do que essa arte manual oportuniza na saúde mental e na emoção das pessoas.

“Porque o crochê faz isso, essa transformação, é que podemos canalizá-lo para a função terapêutica”, explica Alexandre Santiago, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará. 

Segundo ele, nossa corporeidade está atrelada à saúde mental. Quando há uma técnica que requer concentração, atenção, beleza, ritmo e criatividade, temos oportunidade ímpar de entrar em contato com as mais incríveis potencialidades que nossas mãos podem fazer. Os benefícios, claro, são vários e vão muito além de maior tempo consigo, por exemplo.

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Em termos de funções cognitivas, atividades manuais com fins terapêuticos demandam uso de dedicação, funções executivas e habilidades visomotoras e construtivas. Ao utilizá-las, ocorre uma espécie de treinamento cognitivo. Ou seja, à medida que usamos essas funções na execução de determinada tarefa, também as treinamos e exercitamos, fortalecendo-as. 

Por sua vez, no âmbito da saúde mental, o crochê pode produzir estado semelhante à meditação e ao mindfulness – termo em inglês para designar a prática de focar a atenção no momento presente – e pode promover relaxamento, paciência e regulação da respiração. Resultado: sensação de bem-estar emocional a quem pratica. 

Na imagem, close-up sobre o ombro de uma mulher mais velha, com o foco em suas mãos trabalhando em uma peça de crochê vibrante na cor vermelha com um gancho de crochê rosa claro. Ela está vestindo uma camiseta branca e a peça de crochê possui pontos abertos.
Legenda: Busca por atividades manuais no hoje parece surgir como contraponto ao uso excessivo de redes sociais.
Foto: Fabiane de Paula.

“Pode-se dizer que a prática ainda pode ter efeitos ansiolíticos, no sentido etimológico do termo, ou seja, consegue aliviar a ansiedade”, situa Rodrigo Maia, doutor em Psicologia e professor da Universidade Federal do Ceará. 

Conforme observa, a busca por atividades manuais hoje parece surgir como contraponto ao uso excessivo de redes sociais e smartphones. Enquanto estes exigem performance, processos manuais pedem presença, zelo e tempo. 

“Pessoas adeptas desses ofícios relatam desfechos favoráveis, como menos ansiedade e estresse, mais paciência e persistência, maior tolerância à frustração, entre outros desdobramentos. Consequentemente, incentivam outras pessoas à realização dessas atividades. Fazem o tal do ‘marketing boca a boca’”.

Crochê entre gerações

No caso de Cinara Eufrásio, a transmissão do conhecimento no crochê veio da melhor modalidade de marketing boca a boca: a convivência. Desde muito jovem, a médica obstetra observava a mãe entre linhas e agulhas, e gostava do que via. 

A imersão nesse universo, contudo, aconteceu há cerca de um ano, quando uma professora da escola onde os filhos estudam lançou a ideia de criar um grupo com várias mães. O objetivo: aprender a fazer crochê. “Primeiro coloquei no YouTube, ‘Pontos básicos’; depois, essa professora começou uma peça para mim, e disse para eu continuar”. Não parou mais.

Na imagem, mulher sentada, Cinara Eufrásio, com cabelos castanhos presos, vestindo uma blusa branca e shorts pretos, concentrada em fazer crochê com um fio azul escuro e um gancho laranja. Ao seu lado direito, um menino de camisa cinza e preta olha para a peça de crochê. Ao fundo, uma segunda mulher de vestido roxo está sentada. Eles estão em uma área externa, possivelmente uma varanda ou quadra, com uma tela de proteção e edifícios ao fundo à noite.
Legenda: Enquanto os filhos brincam, Cinara Eufrásio investe na arte do crochê.
Foto: Arquivo pessoal.

Entre tutoriais gratuitos e pagos, e envio de vídeos para a mestra orientadora, Cinara pegou gosto pela coisa e encorajou a si mesma a levar a arte adiante. O que começou com a produção de tapetes – “brincava dizendo que era porque tinha que ser algo para estar longe dos olhos, porque ainda tinham muitas imperfeições”, gargalha – evoluiu para sousplats e bolsas, estas as criações preferidas da médica hoje.

O tipo de linha para a prática também mudou. Passou de uma mais fina – e, portanto, mais tradicional – até uma de cinco a oito milímetros de espessura, portanto mais grossa, denominada fio náutico ou fio de malha. Com ela, ainda não faz e nem sabe se deseja trabalhar por encomenda. Dedica-se mais a realizações afetivas, para presentear quem ama.

Na imagem, dois meninos estão ajoelhados perto de uma cama e uma cômoda azul, engajados em um projeto de artesanato. O menino em primeiro plano, que veste uma blusa do Mickey, manipula um fio de cor creme que vem de um grande rolo no colchão. O segundo menino, no fundo, também segura um fio vermelho de um carretel vermelho sobre a cômoda.
Legenda: Filhos de Cinara seguem mesmos passos da mãe no crochê.
Foto: Arquivo pessoal.

E, de quebra, estica outro fio: o do repasse da arte. Não à toa, os três filhos de Cinara vez ou outra já passeiam pelos instrumentos de sossego da mãe. Porque é isso que o crochê também faz com a obstetra: proporciona respiro. “O mundo está caindo e eu não tô nem aí”, ri. “Meus filhos acabam respeitando esse momento, acho que percebem que estou criando alguma coisa. Outro benefício grande é sair do mundo do celular”.

E completa: “Minha mãe teve lesão por movimentos de repetição e por isso parou de fazer crochê. Mas acho que é algo que vai ficar em mim, essa arte. Fico atenta pra alongar, cuidar dessa parte – pra que eu não precise abandonar –, e vejo como sempre fico buscando ideias novas, consumindo mais crochês, ir mais em lojas específicas… Recomendo demais”.

Tão milenar quanto atual

Historicamente, o crochê não tem origem datada. O que se sabe é que essa técnica manual realizada com linhas de várias texturas remonta às mais antigas civilizações e povos. Ou seja, milenar. “É uma técnica que vai se adaptando a materialidades culturais e geográficas”, situa o professor Alexandre Santiago.

Ele explica que essa arte chegou ao Brasil pelas mãos dos europeus, herdadas principalmente por manuais franceses cujas páginas continham o detalhamento da técnica, a fim de ser utilizada em roupas e acessórios.

Na imagem, close-up sobre o ombro de uma mulher com cabelos escuros presos, vestindo uma camisa xadrez em tons de vermelho e branco. Ela está usando um gancho de crochê para bordar ou fazer crochê com fio azul brilhante em uma tela de plástico branca com malha aberta. Há uma peça de crochê azul já feita e pequenos objetos de decoração de madeira e flores falsas sobre uma toalha xadrez vermelha e branca ao fundo.
Legenda: Crochê representa cultura rica em tradições, beleza e criatividade.
Foto: Fabiane de Paula.

Inclusive, vale um contraponto: se, na trajetória do mundo, as ditas artes manuais sempre foram algo mais associado à cultura popular – em contraposição às artes plásticas, voltadas para um público elitizado – há tempos essa barreira se diluiu.

“Na contemporaneidade, esses valores se complexificam, principalmente pela ampliação da cultura digital e do que essa cultura dita na moda. Uma marca famosa ou uma influencer usa o crochê, e tal técnica ganha outro status. É preciso entender que isso é importante, essa visibilidade para o artesão ou artesã, mas a valorização deve ser também pela beleza e pelo simbolismo de uma cultura rica em tradições, beleza e criatividade”.

Na imagem, modelo masculino com cabelo escuro e camisa listrada (branca, azul e cinza) desfila em uma passarela, vestindo um conjunto de calças listradas verticais e um sobretudo longo de tricô ou crochê em blocos de cores vibrantes: amarelo, vermelho e laranja. A plateia está sentada em duas fileiras escuras, observando e tirando fotos.
Legenda: Peça de crochê assinada por David Lee no DFB Festival 2019.
Foto: Camila Lima.

Professora do curso de Design de Moda da UFC, Cyntia Tavares complementa ao afirmar que o crochê dialoga com algumas macro tendências atuais. Ele resgata a autenticidade e o artesanal através da aura de “feito à mão”. Essa característica de unicidade, valorizada hoje em um mundo saturado pelo fast-fashion, deve continuar com força no styling de 2026.

“Há vários sinais – nas passarelas, nas ruas, na cultura de moda – de que essa arte está cada vez mais integrada à moda contemporânea. Vejo que essa busca por autenticidade e individualidade faz com que as peças de crochê, e de outras manualidades, se destaquem”.

Há também a pauta da sustentabilidade a partir da valorização do uso de fibras naturais, e, assim, uma produção mais sustentável e consciente, reforçando o apelo do crochê. Muitos designers e marcas já utilizam algodão orgânico, linho, fios reciclados ou biodegradáveis. 

Na imagem, uma rede de dormir (hamaca) artesanal está pendurada em um ambiente interno rústico. A rede é feita predominantemente de crochê em cor creme ou bege claro, com uma faixa horizontal mais larga em blocos de cor verde-petróleo. A borda inferior da rede possui um acabamento de crochê com pontas em formato de bicos, e os punhos são feitos com macramê ou trançado. O fundo é de uma parede clara e um piso escuro.
Legenda: Ceará é farto em produções com crochê, nas mais diferentes vertentes.
Foto: Marília Camelo.

“O crochê deixou de ser restrito a peças de praia ou ‘estilo vovó’, integrando a moda em diferentes estilos – boho, minimalista, casual, urbano, festa”. A força do crochê resulta ainda do fato de ele representar um retorno às raízes, como uma nostalgia reinterpretada. 

Essa arte carrega memória afetiva de algo que era feito no passado – tanto que muitas peças contemporâneas misturam estética retrô com cortes modernos, o que dá frescor ao crochê e evita que pareça datado. 

“Em síntese, pelo caráter de nostalgia, de revalorização do feito à mão, por dialogar com os ideais de sustentabilidade e também pela adoção por marcas e passarelas, o crochê se manterá com força em 2026”, prevê Cyntia Tavares.

A arte manual para o Ceará

Não apenas o crochê, mas também rendas, labirintos e tantas outras artes tradicionais simbolizam a cultura ancestral do trabalho estético a partir de mãos criativas e sensíveis. Desenham o Ceará.

Um dos trabalhos mais emblemáticos já publicados no país sobre o tema é o livro “Mãos que fazem história”, publicado pelo Diário do Nordeste em 2012, de autoria das jornalistas Cristina Pioner e Germana Cabral.

A obra retrata vida e trabalho de mulheres artesãs do Ceará nas tipologias Barro, Rendas, Linhas, Fibras, Tecidos, Miscelânea, Indígena e Redes. Cada forma de artesanato é abordada em um dos oito capítulos da publicação. Pelo projeto, as jornalistas ficaram em terceiro lugar na 55ª edição do Prêmio Jabuti de 2013.

Na imagem, detalhes do estande
Legenda: Livro 'Mãos que fazem história' reúne histórias de artesãs cearenses.
Foto: Lucas de Menezes.

Na visão do professor Alexandre Santiago, muitas vezes as pessoas que praticam esse tipo de ofício vêm de uma vida dura. Mas, ao sentar para fazer crochê ou renda, encontram ali momento de suspensão de duras realidades e imergem em sensibilidade e beleza. 

Nossa arte ganha o mundo levando nossa cultura artesanal e simbolismo para inspirar a todos. É uma importante contribuição para a economia do Estado, mas principalmente para muitas mulheres que têm nessa arte manual a própria subsistência. O crochê do Ceará e a beleza dele levam para o mundo uma técnica adaptada com nossa criatividade e cara”.

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