No Dia Internacional do Bordado, cearenses compartilham o bem-estar proporcionado pelo fazer manual
Celebrada nesta quinta-feira (30), data evoca prática que tem crescido em meio a uma quarentena extensa, na qual atividades artísticas e artesanais despontam com finalidade terapêutica e de ocupar o tempo
Ainda criança, Fernanda Maia recebeu da avó os conhecimentos básicos para bordar. Agora, as memórias daquela época de férias escolares se conectaram com o presente da publicitária para aplacar a vontade de cessar a distância física e de se entender diante da realidade imposta pela pandemia. No isolamento, ela conta, bordar se tornou uma das "primeiras atividades para acalmar" ou, no meio das incertezas, lutas internas e da necessidade de lidar com o novo, "pauta o pensamento em um outro ritmo".
Assim como para Fernanda, as amigas Wilma Farias e Laura Moreira mantêm a atividade como aliada ao dia a dia e difundem o saber por meio do Coletivo Avesso. Psicóloga, Laura enxerga na experiência própria a capacidade terapêutica encontrada no ato de transpassar linhas e conceder formas à imaginação. No período de isolamento social elas passaram a disponibilizar virtualmente um pouco do que sabem e viram a procura crescer bastante por meio dos novos seguidores e das mensagens curiosas.
"Recebi depoimentos de pessoas que enxergaram no bordado uma forma de se reconectar com o trabalho manual e de se afastar ou manter uma relação mais saudável com a tecnologia, que tem sido o principal meio de comunicação nesses dias", comenta a psicóloga.
A empolgação das amigas com o reretorno virtual motivou a pensar formas de juntar as pessoas nesse período. Para comemorar o Dia Internacional do Bordado, celebrado hoje (30), neste ano atípico, o Coletivo Avesso lançou uma campanha para receber imagens de bordados vindos de todos os cantos para desenvolver um Manto Virtual.
"Ficamos muito felizes com a receptividade e o interesse de todos. Recebemos mais de 100 propostas em menos de 15 dias", conta Wilma.
No processo de escolher linhas, cores, desenhos e tecidos, o bordado exige a atenção plena. "Os afazeres manuais têm também essa possibilidade de bem-estar ou esse senso de trazer uma maior conexão com o real. Então, quando a gente lida com coisas bem abstratas dentro de um escritório, coisas que muitas vezes não são tangíveis, ou dentro de casa também como foi agora, isso pode acabar afastando a gente do que é real. O bordado, por ser tão objetivo, ter esses passos para alcançar o todo, pode ter essa função de aproximar uma pessoa da realidade", pontua a psicóloca Laura Moreira.
Sensação de conexão celebrada por Fernanda Maia. Trabalhando de casa, a publicitária chegou a gastar um tempo muito maior nas redes sociais e aplicativos de mensagem e se percebeu muito mais ansiosa. "De uma forma bem objetiva, bordar me manteve afastada do celular e, consequentemente, me ajudou a consumir menos notícias e informações. O tempo do bordado realmente ajuda a pautar seu dia e o seu pensamento em um outro ritmo".
Aprender e ressignificar
Chegar nesse estado de ligação com a arte de bordar, no entanto, passou por etapas para todas as três praticantes. Fernanda começou com a avó e, mais na frente, aprendeu mais com amigas. Laura recorreu à técnica na faculdade de psicologia, quando os momentos difíceis da vida exigiram coragem.
Wilma, também desde criança entre tecidos e linhas, precisou do contato com uma obra de arte para ver despertar o interesse por bordar. Para cada uma, relatam, o início na prática foi diferente, mas veio cercado de significados que se mantêm e dão vazão à vontade de produzir algo com a técnica, até mesmo neste período de distanciamento social.
Nesse sentido, a psicóloga e especialista em psicologia e arte Lisiane Forte conta que expressões como o bordado podem facilmente entrar no campo da terapia para auxiliar no processo de entendimento do ser.
"Tem demandas internas nossas que não conseguem ser ditas por palavras. A arte vem para trazer do real para o campo imaginário e para termos mais informações dessa questão interna", explica.
Levando o contexto das reflexões em consideração, Fernanda conta, por exemplo, ter visto o bordado como algo em comum com pessoas próximas, com as quais saía para comprar material, discutir novidades e trocar referências diversas.
"O bordado tem me trazido reflexões sobre processos. Existe dentro de mim uma pressão pelo resultado final 'perfeito' e esse mexer com linhas, tecido e agulha trouxe uma necessidade de paciência. Existem pontos mais difíceis de aprender, existem dias que você não tá com paciência para os nós que as linhas criam e tem a comparação com os resultados alheios. Sendo que tudo é processo e tenho buscado lembrar que o mais legal do bordado tem sido o idealizar, o planejar, o prazer de aprender algo novo. Não é sobre o resultado final, necessariamente", diz.
Já para Wilma, o novo momento foi de disponibilizar o conhecimento que possui de formas diferentes. "No início do isolamento social, ofereci encontros online e gratuitos para ensinar as pessoas a bordar ou para praticarmos, chamado #vamosbordarjuntos. Os encontros aconteceram de forma individual mesmo, por meio de videochamada. Foi bem interessante, bordei junto com pessoas de outros estados como Recife e Salvador".
Dentro do coletivo com Laura, ela explica que ciclos de conversas foram realizados com artistas e pesquisadores convidados para mapear formas de proximidade, ainda que distantes.
Enquanto isso, Laura faz questão de ressaltar como enxerga coletivamente e dentro de si o cuidado ao bordar. "É um fazer terapêutico e uso para mim, inclusive. As pessoas comentam muito comigo sobre essa condição meditativa e existem pesquisas disso na verdade, na qual se diz que quando se ultrapassa a curva de aprendizado é possível alcançar essa condição de meditação, de tranquilidade vinda desse trabalho manual", finaliza.
Exatamente nesse ponto, ao citar as sensações causadas por esse processo iniciado, Lisiane Forte diz estar o principal da ligação entre a arte e o psicológico, principalmente na Gestalt-Terapia, usada por ela em abordagens clínicas.
"Estar presente é uma condição de estar em ação todo o tempo e ressignificando também o presente. Então o bordado, nesse sentido, faz parte de uma rotina de saúde porque traz a pausa na atividade mental, retira os pensamentos sobre as preocupações ou sobre esse vírus, por exemplo".
Em todos os casos, quem já pratica faz questão de deixar um convite despretensioso para os que admiram ainda de longe a arte com linhas, tecidos, bastidores e agulhas. Wilma deixa bem claro o recado:
"É só começar e não se cobrar por um ideal de perfeição. Perceber o bordado como experimentação. Além disso, tem muitos tutoriais na internet e professoras particulares".
No fim das contas, quase como o entrelaçar da linha formando os pontos e as formas mais coesas, o pensamento das três se encaixa de alguma forma e deixa bem claro que, na verdade, o importante é entender como essas sensações podem se encaixar para cada um que escolher se redescobrir ao bordar.
>> CELEBRAÇÃO
Criado por Wilma e Laura, o Coletivo Avesso comemora o Dia Internacional do Bordado desde 2018 em espaços públicos de Fortaleza com a confecção de manto a muitas mãos. Este ano, por conta das limitações da pandemia e das recomendações de distanciamento social foi necessário se readaptar. A proposta de um manto virtual feito a partir de fotografias de trabalhos autorais proporcionou a participação de pessoas de outros estados, como Minas Gerais e São Paulo, e até de outros países, como Canadá e Portugal. "Isso mostrou uma adesão muito grande e também nos fez ver a dimensão grande da nossa proposta agora", comemora Laura. Nesta quinta, o resultado da ação vai ser divulgado nas redes sociais do Coletivo Avesso e do Festival Borda, que promoveu encontros virtuais neste mês. Todos os trabalhos enviados para o projeto serão divulgados, exceto aqueles que não cumpriram os requisitos necessários.