Neste Dia da Mulher, conheça histórias de quem encontra no corpo uma maneira de dar vazão à sua voz

"Não aceito mais as coisas que não posso mudar, estou mudando as coisas que não posso aceitar", disse Angela Davis. Aqui quatro mulheres reforçam que, se a sociedade insiste em não aceitar seus corpos, elas o colocarão ainda mais em evidência

Escrito por Ana Beatriz Farias e Gabriela Dourado , gabriela.dourado@diariodonordeste.com.br e beatriz.farias@tvdiario.tv.br

Qando Naomi Wolf diz que o mito da beleza determina comportamento, não aparência, entendemos que o controle pelos corpos femininos interfere na maneira como a sociedade enxerga a mulher e, por consequência, a forma como nos colocamos no mundo. "Estamos em meio a uma violenta reação contra o feminismo que emprega imagens da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da mulher: o mito da beleza", diz a escritora.

Se há um padrão corporal a ser buscado, outros corpos são postos à margem. Invisibilizar o corpo feminino que não se adequa ao que o patriarcado busca esconde também a mulher que ali reside, impossibilitando o seu papel social e reforçando estereótipos e preconceitos. Porém, há mulheres que encontram justamente em seus corpos a maneira de dar vazão à sua voz e luta. Mulheres que vivem em corpos negros, gordos, com alguma deficiência ou ainda que fogem de construções limitantes de gênero expõem a sua imagem como forma de militância.

"Meu corpo pode dar voz a tantos outros corpos como o meu", diz Luiza Nobel. "A estratégia que encontrei foi mostrar aquilo que não querem ver, mas que vão precisar engolir", reforça Jessica Teixeira. "Todo dia a gente tem que se olhar no espelho e falar que nada me atinge", complementa Carol Zaca. "Ser mulher é uma vivência", contempla Candy Mel. Quatro mulheres que escolheram escancarar a sua imagem para expor ao mundo que quem contará a verdade sobre seus próprios corpos serão elas mesmas.

Enquanto disserem às mulheres qual corpo é o "ideal" para existir no mundo e elas depositarem tempo, dinheiro e energia para adequar-se, eles continuarão no controle. Virgínia Woolf escreveu que ainda se passariam décadas até as mulheres poderem contar a verdade sobre seus corpos.

O que mulheres como Carol, Candy, Luiza, Jessica, Naomi e tantas outras fazem é ultrapassar as barreiras para comunicar, em alto e bom som: meu corpo, minhas regras.

"Quanto mais numerosos foram os obstáculos legais e materiais vencidos pelas mulheres, mais rígidas, pesadas e cruéis foram as imagens da beleza feminina a nós impostas. (...) O mito da beleza na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência"

Naomi Wolf
Escritora

(Cor)po e  identidade no palco

Legenda: Luiza dá voz a tantos outros corpos igual ao seu por meio do canto, da composição e do teatro
Foto: FOTO: CAMILA LIMA

O nome dela significa lutadora gloriosa e não poderia definir melhor a mulher com quem conversei. Luiza Nobel estampa confiança, mas confidencia que por muitos anos sofreu com o preconceito relacionado ao corpo. Negra e gorda, era o "alvo principal" na escola particular. Ninguém conseguia entender porque ela se incomodava com as piadas, ninguém conseguia entender porque ela ficou chateada quando arrancaram o lenço colorido de sua cabeça. Foi nas artes que encontrou, primeiro, o refúgio, depois o alto-falante. Um dia, enquanto se apresentava pensou: "nunca mais eu quero ser invisível". E não é. Hoje, ela "pode dar voz a tantos outros corpos iguais ao seu", por meio do canto, da composição e do teatro.

Entrar no provador de uma loja e não encontrar no espelho as formas descritas como belas pela TV. Para Luiza, a experiência era corriqueira e massacrante, até uma amiga lhe apresentar o universo plus size. No curso para modelos, descobriu que mulheres assim como ela podiam "se divertir, transar e trabalhar a autoestima".

Quase como uma "autopesquisa", ter referências também é importante para construir uma "identidade forte". Quando adolescente considerava a norte-americana Beyoncé uma rainha, único ícone feminino negro que conhecia. Para a mulher de 25 anos, Elza Soares, Nina Simone, Preta Rara e muitas outras passaram a fazer parte da lista. "Você precisa conhecer para se conhecer".

Força que vem de família

Legenda: Carol vê o "autoamor" e a compreensão do próprio corpo como um processo
Foto: FOTO: NATINHO RODRIGUES

Sentada no sofá de casa, com voz doce e postura firme, Carol Zacarias, 28 anos, toca com uma leveza peculiar até em assuntos duros por natureza. De tão à vontade, faz com que eu me sinta livre para divagar sobre o íntimo feminino, tão complexo quanto profundo, realidade que começou a encarar como o universo dela desde cedo.

"Eu acho que eu nasci num meio em que fui muito privilegiada. Minha mãe foi um grande exemplo de mulher. Eu sempre me inspirei nela, então sempre me senti mulher porque me sentia pedaço dela", conta a designer de moda que, desde 2017, tem uma marca de moda plus size. O negócio foi concebido com o objetivo de fortalecer mulheres que, assim como ela, são gordas: "Naquela época, da criação da marca, eu não sabia direito a palavra, mas eu queria empoderá-la, sabe? Eu queria chegar e falar que não é porque ela é gorda que ela não pode usar uma saia de listra. Ela pode usar o que ela quiser".

Apesar de se considerar excepcionalmente favorecida por não ter tido grandes problemas de aceitação - com exceção do período em que sofreu por os seios não terem crescido como os das amigas, ainda na adolescência -, ela vê o "autoamor" e a compreensão do próprio corpo como um processo. "A gente é 24h por dia bombardeada por rede social, por televisão, sobre a forma perfeita ser a forma magra? É uma desconstrução diária. Todo dia a gente tem que se olhar no espelho e falar 'nada me atinge, porque eu sou muito forte".

"Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre"

Simone de Beauvoir
Filósofa

Existir e resistir  em cena

Legenda: Jéssica descobriu seu corpo como forma de "reexistir"
Foto: FOTO:JOÃO MARCELO GOMES

Foi no palco que se viu mulher. Quando se soube artista, mesmo com 17 anos, Jéssica Teixeira notou que a atriz em que se transformara não era mais menina. Por dentro, muitas inquietações serviram como combustível para o movimento que desaguou na arte: "quando eu consegui colocar minha voz em cena, comecei a sentir que aquela adolescente já estava ficando para trás, dando vez a uma força que talvez seja essa força feminina. E eu só pude descobrir com o teatro".

Dona de um corpo "bem diferente dos que estão nos livros de anatomia", como ela mesma define, houve momentos em que encarou crises. Aos 12, não queria usar biquíni na praia. Hoje, com 26, vê no nu artístico uma potência transformadora. "Eu acredito que meu corpo não é aquilo que as pessoas queriam ver, mas eu faço questão de mostrar hoje em dia. Acho que por isso que é uma força política". A mudança de perspectiva veio, segundo a atriz, de uma vontade de "reexistir".

Hoje, faz disso expressão de resistência e matéria-prima para a labuta. Em cartaz com o espetáculo "E.L.A.", discute os próprios limites corpóreos. Apesar da pungência do tema na vida da atriz, a ideia é também ultrapassar as barreiras de um relato pessoal: "convido as pessoas a me olharem de diversas formas, mas na verdade eu só faço devolver o olhar para elas, aí elas saem inquietas consigo mesmas. Os comentários são de pessoas que, por exemplo, vão e conseguem vestir um biquíni depois. Elas repensam a vida inteira".

Feminina além das  "regras"

Legenda: Candy foi a primeira transexual brasileira a estrelar uma campanha publicitária do Outubro Rosa
Foto: FOTO: NEURO PROD

Criada em uma família matriarcal, em Goiânia, Mel Gonçalves de Oliveira "sempre foi ela mesma", herança desse feminismo ancestral. Antes de aparecer na mídia como integrante da ex-Banda Uó, Mel esteve em contato com a arte desde cedo. Um tanto artesã quando criança, lembra que gostava de pequenas invenções e que começou a cantar na igreja aos três anos. Hoje, aos 27, continua utilizando o corpo para fins artísticos.

Em 2015, ela se tornou a primeira transexual brasileira a estrelar uma campanha publicitária do Outubro Rosa, visibilidade necessária em uma "sociedade transfóbica". Porém, seja cis ou trans, a vivência do ser mulher é uma eterna descoberta, segundo ela. "Todas nós vivemos um processo de aceitação do próprio corpo. Existem paradigmas que regem o que se espera de uma mulher". A cantora afirma que semelhantes a ela quebram duplamente esses modelos e aconselha: "devemos fazer a manutenção da autoestima para nos sentirmos bem dentro da nossa própria pele. Não existe um tipo de mulher, o padrão é uma mentira e a regra não existe".

Mel é transparente e natural, nunca deixou de ser. Quando abordo a importância de referências LGBT, ela pontua que o discurso deve ir além disso. "Nem só de representatividade viverão as transexuais do Brasil. Elas precisam de trabalho, de estruturas afetivas e sociais". A cantora enfatiza a relevância da luta por políticas públicas, pelo direito ao corpo amado e livre de preconceitos.

(Colaborou: Tainã Maciel)

"A vergonha que atribuímos à sexualidade feminina se refere a uma questão de controle. Muitas culturas e religiões controlam o corpo feminino de uma ou de outra forma. Se a justificativa para controlar o corpo das mulheres se referisse a elas mesmas, seria compreensível"

Chimamanda Ngozi Adichie
Escritora

 

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