Nelson Gonçalves chega ao centenário e resiste como uma das principais vozes do Brasil

Centenário de nascimento do Nelson Gonçalves é comemorado neste sexta-feira (21), duas décadas após a morte do artista

Escrito por Rômulo Costa , romulo.costa@verdesmares.com.br
Legenda: Passados 21 anos da própria morte, o cantor permanece no rol dos grandes cantores da música brasileira
Foto: FOTO: ARI SARAIVA

Foram muitos os fins de Nelson Gonçalves. Nenhum deles, no entanto, impediram os recomeços do cantor que atravessou gerações de plateias, dramas pessoais e mudanças de rumos na música popular brasileira. Representante convicto da boemia e tipo encarnado do homem galanteador, Nelson superou o que nem mesmo acreditava: o esquecimento.

Último intérprete da Era de Ouro, o gaúcho de Santana de Livramento figurou entre os icônicos cantores do estilo romântico que marcaram época entre as décadas de 1930 e 1940. Ao lado dele, só cabiam nomes como Vicente Celestino, Francisco Alves, Sílvio Caldas e Orlando Silva. Ainda assim, e justamente por ter consciência da própria dimensão artística, queixava-se do que previa para o seu futuro.

Veja homenagem do colunista Tom Barros, acompanhado do músico Manoel Guerreiro


 

"O Brasil é um país sem memória". A frase soava quase como um pedido de preservação da própria história, ainda que com certo conformismo sobre o amanhã. "Alguém se lembra do Francisco Alves?", emendava.

Ironicamente, 21 anos depois da própria morte, o cantor permanece em cena, desta vez ainda mais presente em razão do seu centenário de nascimento, comemorado nesta sexta-feira (21).

Nelson, antes de ser cantor, atendia por Antônio e se virava como engraxate, barbeiro, mecânico, sapateiro, jornaleiro, garçom na Lapa e até meio-médio de boxe. Cantou pela primeira vez em praça pública, em cima de um caixote de sabão com o pai que se fazia de cego para receber dinheiro para o menino. Cantou por 60 anos.

Legenda: O cantor foi boxeador e chegou a lutar com Éder Jofre

Conheceu o sucesso quando Orlando Silva entrou em baixa. Nelson, então, experimentou a fama e a riqueza no auge da carreira. Esteve na miséria, porém acumulou pelo menos 19 apartamentos e duas fazendas. Mas também enfrentou a decadência quando viu surgir, no fim da década de 1950, a Bossa Nova e suas vozes miúdas. Perdeu espaço, contudo se recuperou, anos mais tarde, para se firmar como referência.

"Ele foi uma espécie de resistência, juntamente a Luiz Gonzaga. Um defendendo a música nordestina e outro, a música romântica, eles foram resistência na época da Bossa Nova e do ritmo americano trazido pela Jovem Guarda. Nelson alcançou os anos 1990 com grande cartaz nacional", considera Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez.

O pesquisador entende que a principal marca do cantor é versatilidade. Ao longo da carreira, gravou sambas-canções, tangos, boleros, valsa, seresta, marchinhas de carnaval, jazz e, vejam só, até bossa nova.

Resistente

A permanência no cenário musical do País é, por si, um dos retornos que o boêmio acumula na trajetória artística. Como aquela depois de ter a carreira interrompida após ser preso com 200 gramas de cocaína e ver o vício escancarado para o Brasil que o idolatrava naquele 1966.

Dois anos depois, quando talvez nem ele mesmo acreditasse, viu-se livre da própria angústia e dizia orgulhoso: "Homem não é quem fica viciado, homem é quem larga o vício". A frase é autêntica de um Nelson que se firmava o quanto podia como "machão" convicto. Assim como nas canções, o espírito de boêmio e sedutor de quem até os últimos anos gabava-se do vigor sexual.

"Na verdade, ele era fascinante. As mulheres queriam tê-lo e os homens queriam sê-lo. Quem não queria ser boêmio e um cantor com aquele vozeirão?", diz Lilian Gonçalves, fruto de um relacionamento entre o cantor e uma cozinheira de Juscelino Kubitschek.

Empresária da noite paulistana, Lilian montou um bar em São Paulo para homenagear e preservar a memória do pai, com quem pouco conviveu. O Bar do Nelson, localizado em Santa Cecília, é ponto de encontro dos saudosistas do cantor e uma forma de a filha manter aquecida a memória do pai. "Ele estava desaparecendo do cenário da noite e eu não poderia deixar isso acontecer", comenta.

Legenda: Nelson Gonçalves em entrevista ao Diário do Nordeste em setembro de 1985
Foto: FOTO: ARI SARAIVA

Ele permanece. Uma das provas é que o espetáculo "Uma saudade chamada Nelson Gonçalves", em que a cantora pernambucana Cristina Amaral interpreta clássicos do artista, lotou em abril o Teatro Santa Isabel, em Recife. O espetáculo - que vai virar DVD - será apresentado no Teatro Via Sul, em Fortaleza, no próximo dia 9 de agosto.

O desafio de Cristina foi dar uma interpretação feminina para as canções marcadas na voz inconfundível de Nelson. "Cantá-lo não é fácil. Foi uma ousadia, mas eu gosto de ousar", alinha.

O cantor também. No último álbum gravado - "Ainda é Cedo"(1997) -, ele deu interpretação própria a clássicos do rock e do pop nacional, ao gravar composições de Renato Russo, Herbert Viana e Rita Lee.

A ideia foi de Margareth Gonçalves, filha que atuou também como empresária artística do cantor nos últimos anos de vida de Nelson. Dos herdeiros do intérprete, ela foi a mais próxima e quem esteve ao lado dele até os últimos dias de vida.

Como marca do pai, além da saudade, carrega a lucidez e o gosto pelos palcos. "Ele sempre teve noção de que era grande. Tanto que, quando estava perdendo a voz, atestou que iria morrer. Virou pra mim e disse: 'Margareth, passarinho quando para de cantar, morre'", relembra. Nelson talvez não soubesse, mas ainda resiste cantando e no rol dos maiores nomes da música brasileira.