‘Nada mais ilusório’ passeia pelo onírico e pelos limites da ficção
Romance de estreia da espanhola Marta Pérez-Carbonell deixa um eco naqueles que leem.
Imagina só: você está em um trem noturno de longas horas, esqueceu seu livro de bolso, e a paisagem que vê ao olhar para a janela é seu próprio reflexo. Surgem outros dois passageiros, que discutem um último escândalo que abalou o mundo literário. Não há outra opção que não escutar e entender aquela história. É a partir desse princípio que tem início o livro “Nada mais ilusório”, da espanhola Marta Pérez-Carbonell.
Sendo o romance de estreia da escritora, a obra é um mergulho no onírico e nos limites da ficção. A autora, que é professora de literatura espanhola contemporânea na Universidade de Colgate, em Nova York, não esconde seu repertório literário, que atravessa toda a dimensão da narrativa.
Há um véu de melancolia e saudosismo na construção das imagens, em uma atmosfera que remete às cenas lúgubres dos filmes de Andrei Tarkovski. Em uma das digressões do livro, um dos personagens percebe: "guardo imagens como fotografias instantâneas daquelas madrugadas. Só podem ter sido inventadas pela minha memória".
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Camadas narrativas no livro
Adélia Prado já tinha dito que o trem atravessa tudo. A noite, a madrugada, o dia, a vida. Em "Nada mais ilusório", os leitores confirmam essa máxima. Em uma viagem embebida por um espaço que é lugar nenhum, há um mistério que conduz a narrativa, como se o corpo desse texto fosse feito de uma substância muito maleável e sensível.
A obra, publicada no Brasil pela Amarcord, acompanha três personagens no trem de Londres a Edimburgo: Alice, uma tradutora; Terrence Milton, um professor de literatura e Mick Boulder, seu aluno de doutorado. Compartilhando uma cabine, o trio fala sobre Hans Haig, uma figura do passado de Terry, que inspirou seu polêmico livro.
Ainda que o círculo de personagens seja limitado, a obra se constrói a partir de camadas. Diversas histórias se cruzam:
- As conversas entre os três estranhos no trem, que debatem os limites da ficção;
- O relacionamento de Alice com o ex-namorado Daniel;
- Os trechos do polêmico livro escrito por Terry.
A relação de Terry com Hans, inclusive, aparece em detalhes no livro do professor de literatura. Pegando partes do real, Terrence cria o personagem Rocco, figura envolta em uma áurea de mistério à la Jay Gatsby. Porém, com a publicação do livro, recebe diversas críticas por ultrapassar os limites da ficção e expôr informações privadas da vida de Hans.
Em meio à confusão sobre o que é real, o livro apresenta trechos carregados de profunda beleza e simplicidade, como quando Marta escreve: “as coisas tendem a permanecer onde as deixamos, e anos podem se passar e vidas acabar, mas elas persistem, teimosas, no lugar onde foram depositadas”.
Entre o real e o imaginado
As camadas se sobrepõem. Não existe ordem de prioridade. À medida que a narrativa avança, como o trem a caminho de Edimburgo, fica cada vez mais difícil definir o real do imaginado, a vigília e sonho.
O leitor é tragado para a história, mergulhado na penumbra de uma madrugada silenciosa e sacolejante. “Que noite longa, quantas palavras haviam cruzado a ilha e sua escuridão…Mas logo ficariam para trás todas as confissões, as farpas e as revelações”, declara Alice, personagem do livro.
“As noites sempre acabam, mesmo as passadas em um trem que nunca chega ao seu destino - mesmo essas, que parecem a invenção ou o sonho de um louco, também chegam ao fim”
Ao chegar aos últimos capítulos, o leitor tem a sensação de familiaridade. A viagem de trem de Alice, Terry e Bo parece uma daquelas histórias em que tudo aquilo já havia acontecido e que, independente das intempéries, voltaria a acontecer. Uma imutabilidade cruzando o passado e o futuro dos envolvidos.