Escritora equatoriana explora mitos, ancestralidade e terror em rave nos Andes
Em entrevista ao Diário do Nordeste, Mónica Ojeda compartilhou as referências para criação da obra “Xamãs elétricos na festa do sol”
Uma literatura que assombra pela contemplação. Muito depois de fechar “Xamás Elétricos na Festa do Sol”, o livro de Mónica Ojeda segue ecoando em seus leitores. A obra, último lançamento da escritora equatoriana no Brasil, tece uma narrativa sobre mitos, ancestralidade e terror durante o festival do Ruído Solar, uma rave nos Andes.
Costurada com muitas vozes, a escritora avalia que seu romance é uma sinergia de todas elas. “Não há uma mais importante que outra: juntas formam um caleidoscópio", explicou Mónica em entrevista ao Diário do Nordeste.
Tudo é atravessado por um vulcão, um tremor profundo. As músicas carregam ecos de tempos longínquos, de histórias que estavam ali antes das caravanas, das pestes, dos extermínios. Antes mesmo das gangues da obra de Ojeda.
Os primeiros capítulos acompanham um grupo de jovens na rave: Pamela, Pedro, Mario, Nicole e Noa. Em uma escrita sinestésica, os personagens olham o quente, escutam o palpitar de pedras e tateiam os sons.
Na tradução do espanhol para o português, Silvia Massimini Felix priorizou uma escolha lexical mais crua e sensorial para reproduzir a cadência vertiginosa da escrita nos trechos que se passam durante o festival.
“(São) vários narradores, cada qual com sua forma de narrar específica, mas todos eles revelando uma linguagem acelerada, fragmentada, quase febril — acompanhando o transe coletivo, a atmosfera caótica da rave e os estados alterados de consciência”.
Conexão com o mundo pela música
Aqueles atraídos ao festival do Ruído Solar, são os perdidos no mundo. Os personagens anseiam formas de conexão em meio a um cenário de violência. Tempestades, trovões e erupções atravessam a narrativa. A terra parece instável, tudo prestes a ebulir.
No páramo que carrega vozes antigas, as canções tocadas sublimam a violência que os personagens vivem e refundem o mundo. A travessia no deserto evidencia o que está por trás da névoa.
“A música revigora o corpo e, ao mesmo tempo, acolhe emoções complicadas como o medo e a perda. A música cuida dos nossos corações. A linguagem da música é uma que não precisa de palavras, uma que também abraça o silêncio”.
O livro de Ojeda pede calma e paciência. Como um café árabe, é preciso de tempo para decantar. Descobrimos, com o tempo, a beleza do árido e do pedregoso.
Variação rítmica do texto
Uma das potências do livro reside na variação rítmica do texto de Mónica, que integra a tradição do gótico latino-americano feminino. A equatoriana cria imagens sensoriais, quase alucinógenas, e garante uma imersão profunda aos estados emocionais e psicológicos dos personagens.
Mónica tem uma escrita visceral, quase tátil, conseguindo equilibrar o caótico e lírico, destacou Silvia. Ainda que as frases por vezes surjam de modo quase abrupto, ela também consegue inserir longos fluxos de consciência.
"Acho que Xamãs é um livro de musicalidade intensa, uma espécie de partitura emocional que vai se transformando ao longo do livro — e meu trabalho como tradutora, neste caso, foi também o de uma intérprete que precisa sentir a mudança do compasso e acompanhar o movimento sem quebrar a harmonia original", disse Silvia, uma das principais tradutoras do espanhol no Brasil.
Mitos e ancestralidade
Paralelo às experiências dos personagens no páramo, uma trama familiar vai surgindo. A história é atravessada sobretudo pela figura da avó de Noa (ou sua ausência). Como o personagem Seymour que assombra os outros membros da família Glass, ela consolida sua presença invisível e incapturável.
A avó aprendia cantos com pássaros e com vozes que lhe apareciam em sonhos. Entoava canções incompreensíveis de cura — uma linguagem que parecia vir da caixa torácica da floresta — e lia as mensagens trazidas nas nuvens de pássaros.
Mais que a relação entre um pai e filha, a trama desdobra esse fio invisível e ancestral que interliga uma avó e sua neta. A neta carrega o mesmo mistério da avó. A dança e o canto despertam imagens adormecidas em sua cabeça. As imagens que permeiam a fronteira do real.
E na busca por conexão, Noa descobre algo que Ernesto não sabe. O segredo? Foi compartilhado por Ojeda durante a entrevista: “A festa e o prazer sempre se constroem sobre o luto, ou apesar do luto, ou porque há um luto”.
Noa e Ernesto não escapam de seus mortos.
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Referências de Mónica Ojeda
Revisitar outros autores é ter um olhar atento à forma da própria escrita. Ao Diário do Nordeste, Mónica contou suas principais referências ao longo da escrita do livro.
Para a estrutura coral, revisou “O som e a fúria”, de Faulkner, e “As ondas”, de Virginia Woolf. Para pensar a música e seu vínculo com a perda, as lendas e o sobrenatural, leu livros de:
- Pascal Quignard;
- Kodwo Eshun;
- David Toop;
- Ramón Andrés;
- Ted Gioia.
Já para criar o personagem do Poeta, leu vários poetas e escritores andinos (especialmente para escrever seus versos), como Galamiel Churata, Alan Poma, Samay Cañamar, Agustín Guambo, e Yana Lucila Lema.
No livro, também aparecem fragmentos de poemas de Ernesto Cardenal, Jorge Enrique Adoum e Jorge Eduardo Eielson.
Quais os livros de Mónica Ojeda publicados no Brasil?
A obra “Xamãs Elétricos na Festa do Sol” foi publicada pela editora Autêntica. Além dela, também já foram lançados os livros “Mandíbula” e “Voladoras”.
Serviço
Livro “Xamãs Elétricos na Festa do Sol”
Quanto: R$ 79,80
Onde comprar: Editora Autêntica