Maria Bethânia canta alegrias e dores do Brasil em live histórica

Com banda liderada pelo cearense Jorge Helder, a diva baiana interpretou clássicos, pérolas pouco conhecidas, cantou de "Evidências" à tragédia do menino pernambucano Miguel Otávio Santana

Escrito por Dellano Rios , dellano.rios@svm.com.br
Legenda: Maria Bethânia, em sua live, apresentada na Globoplay
Foto: Reprodução

"Vim comemorar com vocês o dia 13 de fevereiro, dia mágico para mim", anunciou Maria Bethânia, na live transmitida neste sábado (13), pelo Globoplay. Magia é uma palavra apropriada para o que se viu. Afinal, o que se esperava dela estava lá: excelência sobre o palco, na performance dela, dos músicos e na escolha do repertório. Não é assim sempre? Mas, como acontece com frequência quando Bethânia está em cena. Há algo além, que surpreende, que arrebata. E havia na apresentação do sábado. 

O mote era marcar os 56 anos da estreia profissional de Bethânia, em São Paulo, no show "Opinião", dirigido por Augusto Boal. Era uma estreia em que a artista encarnava mais a cantora de protesto do que a interprete de um repertório intensamente emocional. A Bethânia que se viu na Live é aquela consagrada pelo público, da fossa e dos amores, mas o espírito crítico de sua estreia foi revivido em momentos marcadamente políticos da apresentação.

"2 de junho", composição de Adriana Calcanhotto, foi o momento mais duro do espetáculo, que lembrava o momento trágico que se atravessa já pela imagem dos músicos tocando com máscaras. Nessa música, Bethânia cantou a violenta morte de Miguel Otávio Santana, ocorrida no Recife (PE), num caso de vergonhosa negligência por parte da patroa da mãe do menino, uma mulher negra, empregada doméstica.

"Miguel cinco anos, nome de anjo. 35 metros de voo... do nono andar", diz a canção, antes de escancarar, em outros versos, que tudo aconteceu "num país negro e racista, no coração da América Latina".

A canção foi seguida por "Calice", de Chico Buarque, um clássico do cancioneiro anti-Ditadura Militar. Uma lembrança de que os artistas não hão de se calar diante desmandos do poder.

Poesia e festa

Bethânia é uma artista de palco, da performance viva dos shows. Em sua discografia, há 22 trabalhos ao vivo. Não são souvenirs para fãs, mas trabalhos que têm peso em sua carreira. São obrigatórios, por exemplo, o disco com os Doces Bárbaros, aquele que dividiu com Chico Buarque e outro, com o irmão Caetano, e sua estreia no formado, "Recital na Boite Barroco" (1968). Não havia razões para esperar algo menor de sua primeira live.

O show de Bethânia não é convencional, com uma sucessão de canções. Mais se assemelha a encarnação de um longo poema, com movimentos diversos e cantos temáticos. Letra cantada, poema recitado, palavra falada: por vezes é difícil distinguir os limites que os separam.

A banda está ali, afiada, sob condução do contrabaixista cearense Jorge Helder (que, além de Bethânia, acompanha Chico e Marisa Monte). O acompanhamento, por vezes, é mesmo silencioso, quando a cantora domina inteira o palco e a tela.

Legenda: O cearense Jorge Helder conduziu a banda afiada que acompanhou a baiana
Foto: Reprodução

O Carnaval - em suas raízes negras, seu espírito festivo e suas ligações com o sagrado - se fez presente nas canções da primeira parte do repertório. "Velho Chico" (Roque Ferreira), "Onde estará o meu amor" (Chico César) e "Gostoso demais" (Dominguinhos) foram os destaques, assim como as bênçãos da anfitriã: "Ano que vem, se Deus quiser, brincaremos dobrado". 

Clássico e popular

Houve, claro, espaço garantido para o repertório mais doído, quem têm em Maria Bethânia sua principal intérprete brasileira há mais de meio século. Aí entraram "Olhos nos olhos", de Chico, mais uma vez; "Sem fantasia" (dele, de novo), belíssima ao violão; e "Evidências". A canção, que explodiu na interpretação de Chitãozinho & Xororó, ganhou uma interpretação discreta. Aliás, apesar de seu apelo popular, foi momento até pálido frente a tantos de robusta intensidade vistos na live.

Um destes foi "Reconvexo", mais carregada de samba do que em outras versões de Bethânia para a canção do irmão, Caetano Veloso. Outro aconteceu em "Sonho impossível", de Chico Buarque e Ruy Guerra.

Legenda: Bethânia fechou a live com uma canção de Gonzaguinha: alegria e protesto pelos mesmos versos
Foto: Reprodução

Ela encerra o show numa síntese do que tinha para dizer e cantar. "O que é, o que é?", de Gonzaguinha, poderia soar clichê. Mas o dia, prometeu a cantora, era de magia.

"Ah meu Deus!/ Eu sei, eu sei/ Que a vida devia ser/ Bem melhor e será/ Mas isso não impede/ Que eu repita/ É bonita, é bonita/ E é bonita", ela canta, fazendo tudo caber nesses versos: o Carnaval, o amor, o sagrado da vida e o sentimento de crítica, indignação e tenacidade de quem entende que, para vida ser bem melhor, é preciso ação.

E ela está lá, no punho erguido da Bethânia ao fim da canção