Livro de estreia de autor cearense reúne contos sobre o cotidiano de Fortaleza e vivências pessoais
Lançado nesta quarentena e publicado de forma independente, “O primeiro parágrafo das memórias de um louco”, de Thiago Noronha, compila histórias tecidas de forma crítica, cômica e afetiva
À boca miúda, dizem que as melhores histórias são aquelas contadas em mesas de bar, envoltas pelo desprendimento típico dos domingos. Entre um gracejo e outro, com bebida e tira-gosto à mesa, a vida vai desfilando aventuras e desafetos, costurando memórias e confissões. Thiago Noronha sabe bem disso. Não à toa, descreve-se como um prosador afeito à essa prática da conversa livre, do relato sem amarras. Papo direito e direto.
“Amo criar cenários, personagens e situações, e gosto de brincar com arcos narrativos. Acho que meu gosto por histórias vem muito de eu ter sido uma criança ‘rato de videolocadora’, daquelas dos tempos das fitas K7, que você balançava a caixa para descobrir se a ficha de disponível estava dentro”, conta.
Felizmente, essas minúcias nunca passaram despercebidas, ganhando maior corpo à medida que o escritor cearense se viu abraçado pela literatura, lançando-se, com cada vez mais profundidade, no fazer narrativo. A culminância inicial de anos de observação, escutas e vivências acontece agora no seu livro de estreia, “O primeiro parágrafo das memórias de um louco”.
Lançada virtualmente nesta quarentena, por meio de transmissão ao vivo com mediação de Taciana Oliveira – editora-chefe do Mirada Janela Cultural – a obra surge da organização dos textos de Thiago, escritos durante os últimos cinco anos.
“Tem muito da história da minha família, ouvidas por mim pelos anciãos que a compõem. O ciclo da borracha, o sertão. Fortaleza e o Ceará. O Rio de Janeiro, onde vivi quatro anos. Muitas geografias, tempos e viagens e inspirações na literatura que consumo, como Gabriel García Márquez, Douglas Adams, dentre tantos outros”, detalha.
De caráter independente, o livro parte, assim, de fatos ordinários da existência, numa aparente simplicidade, para evocar afetos, críticas e comicidades. Um poderoso labirinto de referências e situações em que se constata, de forma proeminente, o talento do jovem autor.
Mergulho
Esse aspecto, inclusive, é o que deve chamar mais atenção da audiência: o total controle de Thiago Noronha sobre as histórias, numa tessitura madura e inteligente de causos, verbos e acontecimentos. O caso raro de um escritor que já nasceu pronto, instigado a contar, com bastante leveza, humor e criatividade, experiências das mais inventivas e confessionais, com pitadas de fantasia e um apurado senso de verossimilhança.
No exemplar, os contos são divididos em seis partes, abusando da polifonia – ora narrados em primeira pessoa, ora em terceira – e abrangendo distintas versões do mosaico de referências que o literato abarca, de Eduardo Galeano (1940-2015) a Belchior (1946-2017), passando por Simone de Beauvoir (1908-1986) e Rincon Sapiência. São elas: “Quase ficções”, “Naquele tempo”, “Sobre eles e elas”, “Um lugar de vento doce”, “Do que vi do mundo” e “Devaneios”.
“Acho que minhas histórias deveriam ser contadas porque são muito ricas em referências à geração e à geografia as quais pertenço, além de passear em territórios e tempos alheios, memórias familiares, sempre numa tentativa de se aproximar de situações atuais”, explica Thiago. Ao mesmo tempo, o desejo de narrar sob a égide do conto dialoga com o fato de esse gênero oferecer uma literatura de consumo e escrita mais rápidos.
“Assim, tanto atendo os leitores de redes sociais, que prezam essa narrativa mais curta e direta, quanto consigo encaixar o fazer literário na minha rotina de trabalho e estudo. Então, meus melhores trabalhos de escrita, para juntar e lançar, estavam em formato de conto”, justifica, afirmando que as principais inspirações nacionais nessa seara de criação são os renomados escritores Rubem Fonseca (1925-2020), Moacir Scliar (1937-2011), Luís Fernando Veríssimo, Fernando Sabino (1923-2004) e Angela Gutiérrez.
Fortalezas e ademais
Diante desse robusto panorama de perspectivas, o Ceará e sua capital são os maiores homenageados na obra. Thiago sai como que com uma lupa, caçando tanto os tipos mais emblemáticos do chão alencarino quanto aqueles que, pela correria do cotidiano, podem facilmente passar despercebidos (uma pena, inclusive).
São pescadores, moradores do interior, freiras administradoras de escolas, influencers, entre vários outros. Apresentados de maneira sagaz pelo contista, cada personagem imprime características que marcam por vezes pelo absurdo, por vezes pela ternura, numa boa dosagem de crítica e belas delicadezas.
“Amo Fortaleza e o Ceará. Sou devoto do meu povo, da cultura e da cultura para além da óbvia e prestigiada. Exalto no meu texto muitas Fortalezas: o João XXIII, onde nasci e me criei; o sagrado e o profano que dividem essa cidade; a Fortaleza da década de 1990, as casas de vó tão iguais e únicas”, explica o autor. “Essa cidade sempre me fortaleceu e inspirou. São os personagens, os cheiros e as ruas dela que me fazem escritor, ter vontade de contar sobre o que vejo”.
É algo que o jornalista e dramaturgo Renato Abê já deixa claro no prefácio da obra, quando evoca algumas das passagens mais emblemáticas narradas por Thiago.“O delírio com as experiências reais está presente mesmo quando a pauta é um encontro intergaláctico – tudo converge ao ordinário. Estamos numa mesa de bar, lembram? E, assim, partindo dos impropérios de uma cidade litorânea onde os gatos agem como cãos, ‘O primeiro parágrafo das memórias de um louco’ esgarça os limites entre o palpável e o inimaginável”, conclama no texto.
Recepção
O retorno que Thiago Noronha tem recebido dos leitores entra em sintonia com a opinião de Renato. Segundo o literato, muitos acham o trabalho divertido, mas também se sensibilizam em diversos momentos. “Acho que o texto consegue trazer muitas emoções e sentimentos diferentes: compaixão, nostalgia, constrangimento. Mas, a meu ver, prevalece o cômico-sarcástico”.
Isso porque o espírito do escritor é bastante político, e a política, por meio de críticas sociais óbvias – sem, contudo, penderem para o simplismo – está presente em todos os contos. A injustiça social, assim, é denunciada em prosa: o impacto ambiental, a exploração do trabalhador, as mazelas nordestinas, os preconceitos. Sobram reflexões a respeito de como a rotina se descortina ao olhar e sobre a própria situação do País.
Além disso, por se lançar de forma independente no mercado editorial – o próprio Thiago fez a capa do livro, contando com a ilustração de um amigo, Mauro Reis, e também diagramou toda a obra, enviando-a aos amigos – o autor destaca como encara o ramo de autopublicação no Estado. “É muito desgastante o processo de envio de manuscritos a editoras. E é um mercado muito complexo para emergir, mesmo os escritores talentosos. No Ceará, ser escritor e ser publicado é um desafio, inclusive o consumo da literatura pelas novas gerações, tão focadas nas redes sociais e limitações de caracteres”, situa.
Projetos
Ainda assim, não é tempo de esmorecer. O autor segue criando, com vários projetos em mente. Um deles é um romance, já com 240 páginas escritas, que se valerá do realismo fantástico para acompanhar duas gerações de uma importante família em um sertão cearense fictício, inspirado no Maciço de Baturité, lugar que o escritor frequenta até hoje.
Também pretende trazer a público um segundo livro de contos, cuja narrativa encontra-se esboçada, sobre três homens gays com histórias entrelaçadas. “Já tenho algumas partes escritas, inclusive. Tô aguardando o momento”, afirma.
Independentemente do que vier, as prerrogativas, a julgar por este primeiro trabalho, são as melhores. Será quando retornaremos à mesa de um bar literário afoito em graça e força.
O primeiro parágrafo das memórias de um louco
Thiago Noronha
Independente
2020, 200 páginas
R$ 30