Filmes produzidos por cearenses revelam a importância das políticas públicas para o audiovisual
Filmes “Canto dos Ossos” e “Cabeça de Nêgo” foram destaque na última Mostra de Cinema de Tiradentes
A 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, realizada entre os dias 24 de janeiro e 1º de fevereiro, foi considerada histórica pelos organizadores. Em 2020, o festival abraçou o tema “A imaginação como potência” e exibiu uma plural agenda de produções audiovisuais brasileiras. Diante do cenário ameaçador para os trabalhadores do cinema no País, os nove dias de evento consolidaram intensas trocas de conversas e debates. Tal comprometimento explica a relevância social do projeto tocado no interior de Minas Gerais. Uma força que demarca a atuação de outros olhares, identificados com a discussão de raça, gênero, orientação sexual e classe.
“Tiradentes é espaço de um cinema novo, pulsante e inclusivo, que reflete, analisa e problematiza os rumos do que tem mobilizado cineastas, coletivos e artistas dentro das possibilidades de expressão e linguagem”, diz o texto de encerramento do festival, denominado “Disrupções de um novo mundo marcaram filmes e debates em edição histórica da Mostra de Cinema de Tiradentes”.
O Ceará consolidou presença nos 113 filmes (com 31 longas, 1 média e 81 curtas-metragens) participantes. Entre os representantes locais, “Canto dos Ossos”, da dupla Petrus de Bairros e Jorge Polo, venceu como melhor longa-metragem da “Mostra Aurora”. Dedicada a produções inéditas, guiadas por cineastas em início de carreira, a sessão competitiva também contou com a participação de “Cabeça de Nêgo”, do diretor Déo Cardoso.
Poucos dias depois da cerimônia de encerramento e entrega das premiações, a repercussão do festival mineiro ainda era bem vívida na memória de Petrus de Bairros, Jorge Polo e Déo Cardoso.
A conversa com cada uma desta mentes criativas evidencia a importância de um festival comprometido com a diversidade.
A sinopse de “Canto dos Ossos” entrega pouco da trama e o clima de mistério colabora para o mergulho do trabalho no gênero horror. “Duas amigas monstras decidem seguir rumos diferentes. Décadas depois da despedida, Naiana é professora do ensino médio em uma pequena cidade litorânea, onde um hotel em reforma emana estranha presença. A três mil quilômetros dali, a noite devoradora envolve Diego”, explica o texto de divulgação da obra.
Coletividade
“Ficamos surpresos com a premiação. Desde que o filme foi exibido na quarta-feira (29/01), acho que ele foi crescendo, conversando com as pessoas, nos debates. Esse tempo até o dia do encerramento foi importante. Acompanhei os trabalhos da mesma mostra e tem uma produção interessante. É também presente nas mostras de outros curtas e longas, em outras sessões. O filme do Déo gostei bastante”, divide Petrus de Bairros acerca da participação no festival.
A atual política federal guiada por censura e cortes em editais para o setor audiovisual foi assunto de discussão entre convidados, artistas e público. “As mesas de debate contaram com questões de sustentação e produção via editais. Estava sempre no diálogo. Não tem como essa discussão deixar de estar presente. Talvez agora estejamos vendo o quanto forte ficou essa produção. Um cinema cada vez mais diverso. Estamos ainda um pouco no efeito do que foi gerado em termos de política pública”, aponta o diretor Petrus.
Roteirista e montador, graduado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o cearense explica que “Canto dos Ossos” envolve os esforços de um trabalho coletivo. Filmado em dois anos e meio por Fortaleza, Canindé e Búzios (Rio de Janeiro), o título evidencia um momento no qual ele, elenco e outros integrantes da equipe passaram a trabalhar com o parte de um edital.
Desse conjunto de apaixonados pelo cinema e as artes, moradores de uma casa coletiva, nasceram, entre outros projetos, o curta “Boca de Loba” (2018), de Bárbara Cabeça; e Tremor Iê (2019), de Lívia de Paiva e Elena Meirelles (o longa esteve em Tiradentes no ano de 2019).
Jorge Polo divide o quanto a possibilidade de criar a partir da colaboração conjunta, cuidadosa quanto a escuta das figuras envolvidas, foi essencial para o resultado na tela. Partindo das experimentações no horror, os nomes envolvidos na criação de “Canto dos Ossos” puderam adicionar às pesquisas, vivências e trajetórias individuais. Dança, teatro, cinema, artes plásticas, entre outras expressões motivaram esse universo fílmico.
As abruptas mudanças políticas no Brasil acompanharam esse processo criativo.
“Começamos o filme em 2017. Ainda tinha uma certa empolgação no ar, amigos nossos tinham ganho editais, tinham como começar seus filmes. A coisa no País foi se ambientando de uma forma muito cruel. Tentamos trazer algumas coisas do que observamos” diz Jorge.
A escolha pelo horror também foi conjunta. Para quem está curioso pela narrativa de “Canto dos Ossos”, o coautor explica que o gênero foi explorado, porém, sem o padrão estático de alguns filmes identificados com o nicho. Experimentar juntos, enquanto equipe criativa é uma das potências da obra.
“Não fizemos o filme pensando especificamente em Tiradentes, porém a reta final da montagem coincidiu com a época da inscrição. Pensamos, ‘Vamos inscrever, deve valer a pena’. Foi ótimo, o festival acolhe muito bem essa expressão, coloca em dialogo, é um intensivão com outros filmes, outras pesquisas. Essa estrutura de Tiradentes é bastante interessante”, assevera Jorge.
Aplaudido
“Cabeça de Nêgo” concluiu a participação cearense no festival no dia 31/01. No fim da projeção, a reação da plateia foi das mais emocionantes. Assim como os realizadores de “Canto dos Ossos”, Déo Cardoso sentia a vibração de uma estreia nacional. “Eu fui posto à prova em Tiradentes. Não esperava a reação do público logo na primeira vez que o filme foi exibido. Me emocionei. Aplaudiram e até disseram que iríamos ganhar. Mas, minha única resposta era: ‘meu festival já tá ganho brother, só em ver essa galera aplaudindo”, divide.
Na trama, o introvertido Saulo Chuvisco (Lucas Limeira) tenta impor mudanças em sua escola, após ser inspirado por um livro dos Panteras Negras. Após reagir a um insulto racista em sala de aula, Saulo é expulso, mas recusa-se a deixar as dependências da escola por tempo indeterminado. A luta solitária do personagem desafia não só a direção como todo o sistema educacional local. Temas como educação, racismo e corrupção, pontos nevrálgicos dos atuais debates políticos no Brasil, circundam o universo da obra.
Somado ao carinho do público, importava para Déo saber as impressões dos negros presentes na exibição realizada na histórica cidade mineira.
“Queria saber o que meu povo tinha achado. Quando fui abraçado por pessoas negras, tanto as que eu já conhecia como outras que nunca tinha ouvido falar, e vieram me dizer o quanto o filme era importante, que queriam exibir em escolas, aí eu senti que realmente valeu muito estar em Tiradentes”, desabafa.
Nascido nos Estados Unidos e naturalizado brasileiro, Déo tem especialização em Dramaturgia pelo Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura e Mestrado em Cinema pela Universidade de Ohio (EUA). Após roteirizar e dirigir cinco curtas e dois documentários, o diretor entrega outra obra marcada pelo foco nas discussões da negritude brasileira.
“Cabeça de Nêgo” é fruto de uma importante política pública e foi contemplado com nota máxima no “edital baixo orçamento afirmativo de longa-metragens da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Os outros dois filmes selecionados foram “Um Dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira e “Marte Um” de Gabriel Martins. Déo cita o trabalho de Patricia Baía na produção executiva como um ponto decisivo à realização do filme.
A participação de autoras e autores negros, indígenas e LGBTQ+ no mercado audiovisual brasileiro repercute dois sentimentos antagônicos no autor. “Vejo com o melhor dos olhos e uma preocupação ao mesmo tempo. Por um lado, vemos essa quantidade de filmes dirigidos por negros, pessoas pobres, indígenas; se os filmes estão circulando pelo circuito alternativo, isso é fruto de uma política pública. O lado ruim é que isso se acabou. Agora, os direitos estão sendo cortados”, alerta o realizador .
“Cabeça de Nêgo” aborda história na qual a perspectiva do adolescente é uma chama para algo maior. Foi criado enquanto peça de levante, para atiçar o público jovem a se mexer e não aceitar as coisas como são. “Se tem uma elite cultural que domina certa arte, quando chegam elementos ‘estranhos’ naquele universo, existe uma refutação, existe aquela coisa: ‘caraca, antes éramos só nós, agora chegou essa galera falando em primeira pessoa’, isso gera tensão. Existem filmes que vemos esse posicionamento rolando. Não é mais só o branco falando do periférico”, arremata o cineasta Déo Cardoso.
Futuro
Após a premiação em Tiradentes, a pretensão é fazer “Canto dos Ossos” circular ainda mais. A estratégia inclui sessões abertas em Fortaleza e Búzios. Por conta da agenda de Tiradentes, a obra será exibida em São Paulo e existe o convite para uma sessão na USP. A tendência é rodar o circuito de festivais. Uma produtora carioca pode reforçar no processo de distribuição.
“Cabeça de Nêgo” segue a mesma trilha e o momento exige estar atento às possibilidades de circulação. Uma das contribuições de uma iniciativa como a Mostra de Tiradentes é permitir a realização de contatos. A labuta de Saulo Chuvisco promete incendiar outras salas pelo Brasil e mundo.
Além de “Canto dos Ossos” e “Cabeça de Nêgo”, o Ceará se fez presente com outras três obras. A produtora Cariri Filmes participou com “Sertânia”, do realizador baiano Geraldo Sarno (competindo no panorama “Olhos Livres”) e “Os Escravos de Jó”, de Rosemberg Cariry. O longa com Antonio Pitanga (homenageado desta edição junto da filha Camila Pitanga) fez estreia mundial e abriu a programação. Outra exibição especial em Tiradentes foi “Pacarrete”, de Allan Deberton.
O audiovisual nordestino também foi destaque em outras categorias: "A Parteira" (RN), de Catarina Doolan, venceu o prêmio de Melhor Curta da Mostra Foco, e "Até o Fim" (BA), de Glenda Nicácio e Ary Rosa, foi reconhecido como o “Melhor Longa pelo Júri Popular”.