Documentário retrata a vida de rezadeiras e benzedeiras no interior do Ceará
“Memórias de Fé na Terra da Luz” capta depoimentos e vivências daqueles que, no Ceará, curam por meio das preces
“Eu não tenho um trabalho, eu tenho uma missão, que me foi dada para que eu possa cumprir com ela até o dia que Deus me determinar”, assegura Mãe Marta, que há quase 40 anos mantém viva a tradição das rezadeiras em Sobral, município localizado a 235 quilômetros de Fortaleza. Com suas ervas e infusões, seu rosário e sua fé inabalável, ela busca promover a cura das doenças, aliviar os sofrimentos e afagar os corações daqueles que a procuram.
A crença e a esperança em algo que vai além do mundo material é, por vezes, necessária para que alguns indivíduos consigam enfrentar dificuldades da existência, além de fechamento e abertura de ciclos. Em meio às incertezas - decorrentes tanto da pandemia quanto do curso naturalmente incerto da vida - e ao fim do ano que se aproxima, os rituais de passagem e bem-estar têm seus efeitos potencializados.
É neste plano de fundo que o diretor e roteirista Augusto César dos Santos realiza o documentário “Memórias de Fé na Terra da Luz”, no qual retrata as vivências de rezadeiras, rezadores e benzedeiras ao redor do Ceará. Gravado em 2019 e atualmente em fase de edição, o filme tem lançamento previsto para o primeiro semestre de 2021. O projeto conta com o apoio cultural do Governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria de Cultura (Secult), e é produzido pela Argumento Produções em parceria com a Promova e RDT.
De forma a entender como ocorre o processo de reza e benção, além do impacto da prática sobre a cultura local, a equipe de filmagens passou por diversas cidades cearenses em busca de histórias, “tanto em municípios com grande fluxo de peregrinos em busca de benefícios físicos e espirituais, quanto em municípios mais discretos nestes quesitos”, como destaca Augusto.
Entre os personagens retratados também estão José Jacinto, de Massapê; Dona Maria Alves de Lima, de Meruoca; Francisco Evandro,de Quixadá; Raimunda Elisabete Félix de Sousa, de Canindé; Antônia da Silva e Alice da Silva Andrade, de Maranguape; Maria Helena da Silva e Maria Isabel dos Santos, de Juazeiro do Norte.
Pluralidade de vozes
Para a construção do roteiro, foram entrevistadas ainda pessoas que relataram suas experiências de cura, médicos, agentes de saúde e coordenadores de projetos que buscam integrar o serviço público de saúde ao atendimento das rezadeiras. A vice-governadora do Ceará, Izolda Cela, também foi contatada por já ter coordenado ações que amparam essas figuras culturais, unindo suas ações ao sistema de saúde convencional.
“No processo de roteirização, tivemos que fazer escolhas e a principal foi não tentar confrontar a chamada ‘medicina popular’ com a ‘medicina científica’. Também não queríamos exatamente buscar alguma convergência, mas deixar claro como se dá o processo e como as personagens agem. Inevitavelmente, encontramos os conflitos e isso foi bastante construtivo para a narrativa, porque eles vieram de forma espontânea”, explica o diretor.
Grupo de risco
Apesar de sua inegável importância para a compreensão da cultura popular como tal, a tradição das rezadeiras “caminha rumo ao ostracismo e as que sobrevivem estão partindo, sem deixar descendentes”, como afirma Augusto César.
O escasseamento das práticas orais das rezadeiras, denominadas como patrimônio cultural imaterial, também é percebido por Mãe Marta, que, em Sobral, vê seus parceiros de missão envelhecendo e até deixando de rezar por conta da idade. A mãe de santo também atenta para o fato de que as novas gerações não recorrem mais às rezas como antigamente. “A maioria hoje procura mais é médico”, afirma.
Ela, porém, acredita que a medicina e a fé podem caminhar juntas, lado a lado, potencializando seus poderes. E se depender da rezadeira, o saber ancestral que lhe foi repassado e confiado por uma “senhorinha” de quem cuidava quando jovem deve continuar seguindo seu percurso. “Assim que eu encontrar a pessoa de confiança”, salienta e completa: “Além de confiança, saber que a pessoa vai dar continuidade a essa missão”.
Valor da fé
Em tempos de instabilidade, toda e qualquer ajuda é válida. Durante a estada humana na Terra, rituais sempre atravessaram sua existência, com diferentes fins. Sem negligenciar a importância da ciência e da medicina nos dias atuais, o documentário “Memórias de Fé na Terra da Luz” vem com o propósito de reiterar o semelhante valor que a subjetividade opera no tratamento de males físicos e espirituais.
“As orações estão lá, a gente ignorando-as ou não. Conversamos com pessoas que afirmavam um intenso alívio de dores físicas durante e depois das orações. Não cabe a este filme entrar nos detalhes físico-químicos dos processos biológicos, tampouco aprofundar-se na psicologia capaz de ‘tentar explicar’ de maneira pragmática os fenômenos, mas de evidenciar uma relação que existe há incontáveis anos e que, em alguns locais, poderá persistir por um longínquo futuro”, elucida o roteirista e diretor.
Dia após dia, Mãe Marta se levanta e opera, pela fé, a cura para tratamentos diversos, que vão do ‘mau olhado’ às dores de cabeça. Para ela, mais do que lamentar as tantas perdas que 2020 leva consigo, é momento de agradecer.
“Em meio a tanta doença no mundo, ‘tô’ viva, ‘tô’ com saúde. Enxergo [minha missão] como uma benção na minha vida e na vida dos que me procuram. É complicado, mas estamos sobrevivendo”, finaliza.