Consumo digital na infância é semelhante ao de doce, e "dieta tecnológica" deve ser feita em família

Psiquiatra de Harvard alerta para o impacto das telas nas mentes das crianças e sugere atividades práticas de “neuroeducação”

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Legenda: Psiquiatra estabeleceu seis semanas para que toda a família se apoie e estimule na “dieta tecnológica”
Foto: GoodStudio/Shutterstock

Não sou mãe, mas sendo filha, tenho nítidas recordações das insistências da minha para que eu incluísse mais frutas e legumes na refeição durante a infância. Por outro lado, uma coisa que ela limitava bastante era o consumo de doces, mesmo quando vendia dindin e o congelador de casa era a maior tentação.

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Provavelmente por isso, foi só na fase adulta, quando tive a total autonomia para comer toda sorte de “besteira”, que meu corpo acendeu sinais de alerta, com taxas de açúcar pela primeira vez desequilibradas aos 27 anos.

Entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, a criança dos anos 1990 que fui me chamou para uma conversa, e caminhamos juntas por uma reeducação alimentar, acompanhada dos exercícios físicos que tanto negligenciei, até alcançar uma rotina saudável. Funcionou.

Muito bem… Agora substitua esses doces por smartphones. Qual a chance de você conduzir uma “dieta tecnológica” igualmente regrada e direcionada, mas não apenas às crianças da casa? Essa é a provocação da Dra. Shimi Kang, premiada psiquiatra de Harvard e mãe de três filhos, no livro “Tecnologia na Infância” (Editora Melhoramentos, 2021).

Com especialização em vícios juvenis, nos últimos 20 anos ela se dedicou à pesquisa sobre saúde, felicidade e motivação em crianças. E, na última década, acrescentou o foco no impacto das telas nas mentes em formação.

Existem problemas, mas também soluções

Os estudos de Kang não negam todos os desafios que a introdução de tecnologia na vida das crianças pode trazer. O diagnóstico dela, aliás, não é dos mais fáceis de ler: “estamos criando uma geração à beira da mais grave crise de saúde mental registrada na história”. E olhe que já lidamos hoje com os inúmeros efeitos da pandemia de Covid-19. Consegue imaginar algo pior?

O propósito da psiquiatra, porém, não é espalhar o medo. Pelo contrário, ela é bastante enfática quando afirma: “não surte” e “use a intuição como guia”. No combate a essa situação, Kang recorre à neurociência, explicando em termos simples o funcionamento do cérebro e do sistema nervoso das crianças.

Conforme a estudiosa, smartphones e telas podem estar mudando a estrutura e a função do cérebro dos pequenos, interrompendo os impulsos biológicos naturais que as levam à independência. Sendo assim, a “neuroeducação” é o caminho.

Basicamente, a ideia é educar as crianças para autorregulação. “Seus filhos começarão a compreender que sentimentos, estados de espírito e comportamentos são afetados pelos alimentos que comem, pela tecnologia que consomem, pelos relacionamentos que constroem e pelas escolhas de como passam o tempo”, escreve Kang. É ou não é uma baita aula de maturidade?

Esse processo inclui também uma dose de flexibilidade, feito quando se libera geral em feriados e ocasiões especiais, sabe? Pois é. Mas tudo convergindo para a construção de um ambiente saudável, que a psiquiatra estimula por meio de um programa de seis etapas, a ser compartilhado por toda a família.

Mudança comportamental

A essa altura, e até muito antes dessa matéria, imagino que já deu para perceber que não adianta tirar o smartphone da criança e ficar o tempo todo acompanhando o seu. É por isso que a psiquiatra estabeleceu seis semanas para que toda a família se apoie e estimule na “dieta tecnológica”.

O ponto de partida envolve, inclusive, a avaliação do estágio de cada participante. Depois vem as etapas:

  1.  Criar motivação
  2.  Preparar para a ação
  3.  Agir
  4.  Manter o agir
  5.  Administrar recaídas e voltar aos trilhos
  6.  (Abraçar) o novo você

Por mais simples que aparente esse passo a passo, devidamente detalhado com ferramentas e estratégias executáveis no livro “Tecnologia na Infância”, ele envolve abrir mão de muita coisa incorporada à rotina, e, por isso mesmo, não é tão fácil assim.

A tarefa estará se cumprindo quando a criança utilizar a tecnologia como um instrumento, não como um brinquedo. Logo, o foco deixa de ser a “recompensa”, que, em desequilíbrio gera uma socialização superficial e hábitos viciantes, para o desenvolvimento das competências de autocuidado, conexão (interação) e criação.

Ah, e mesmo que venham as recaídas no futuro, feito eu tive com os doces, pode ter certeza que conversar com quem ela foi na infância será algo compensador.

Serviço

capa do livro

Livro "Tecnologia na Infância"
Dra. Shimi Kang
Tradução: Tássia Carvalho
304 páginas
Editora Melhoramentos, 2021
R$ 52,90

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