Clubes de leitura resistem à pandemia e estreitam laços entre pessoas e livros de forma virtual

Em Fortaleza, diferentes grupos se articulam para ressignificar a partilha de afetos e conhecimentos em um cenário mediado entre telas

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Apesar das especificidades, em comum entre os clubes está o estreitamento de conexões, a exemplo do ExperimentAções
Foto: Arquivo pessoal

Há quase três anos, a sala de casa da esteticista e mediadora de leitura Rita de Cássia tornou-se um lar inteiro. O acúmulo de livros no cômodo germinou a criação da Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária, importante espaço para o fomento da literatura em Fortaleza. Mediante o correr do tempo, encontros para trocas de experiências com a palavra foram se multiplicando no ambiente, prática abreviada devido à pandemia de Covid-19.

Assim, uma das principais atividades do local precisou migrar para o campo virtual. O Clube de Leitura das Crianças – que acontece desde a fundação da biblioteca, em 1º de abril de 2018 – ressignificou o formato das reuniões de modo a continuar ativo. Uma mudança que, segundo Rita, conhecida popularmente como Ritinha, oportunizou não apenas o contato entre os pares, mas especialmente o prosseguimento ininterrupto da iniciativa.

“O on-line é bom porque você não para de fazer o que gosta. Mesmo que os encontros não sejam durante toda semana, a gente faz de 15 em 15 dias ou mensalmente. É importante pra rever aquelas pessoas que sentimos saudade e também para não deixar a atividade parada”, considera.

As lives são realizadas pelo perfil do instagram da Livro Livre Curió, debatendo especialmente sobre obras cearenses. No total, 25 crianças da comunidade e tantas outras desejosas de conteúdos literários se conectam, via internet, para prover afetos e partilhas.

O movimento também acompanha as mulheres do bairro por meio de um clube de leitura dedicado somente a elas. Criado em setembro do ano passado para driblar as distâncias provocadas pela pandemia, o grupo possui 30 participantes e já vivenciou profundos momentos a partir do mergulho em contos de Conceição Evaristo, Clarice Lispector (1920-1977) e outras tantas escritoras.

“Minha intenção, ao criar o clube, foi tirá-las um pouquinho do habitat de todo dia e colocá-las em outro, de uma biblioteca, para terem diferentes conhecimentos”, justifica Ritinha. Apesar de nem todas as participantes saberem ler ou possuírem um celular adequado para participar dos encontros, o esforço de continuar juntas é maior. A literatura, seja lida ou escutada, supera as agruras do cotidiano.

“Muitas delas foram às lágrimas quando a gente fez a mediação dos contos ‘O grande passeio’, de Clarice Lispector, e ‘Maria’, de Conceição Evaristo. Uma vai se identificando, outra comenta algo do dia a dia, e todas se sensibilizam porque se veem naquelas histórias. É sempre muito emocionante e faz muito bem para o grupo”, percebe a mediadora, à frente das transmissões ao vivo da ação, também pelo instagram da Livro Livre.

Acolhimento e restauração

Esse fortalecimento conjunto entre telas tem pautado as vivências de outros tantos clubes de leitura da cidade, como percebe a psicoterapeuta e mediadora de leitura Nara Barreto. Ela participa de seis – alguns apenas como integrante, outros no posto de coordenadora. São eles: “Se eu Clarice…”, Colcha de leituras, Clube de Leitura da Sublime, ExperimentAções, erótique e Clube do Pacote de Textos, todos voltados para diferentes públicos e com distintas periodicidades. Em comum, a necessidade de congregar ideais.

“Tive medo que a mudança para o formato virtual fosse afastar as pessoas. De fato, no início houve resistência. As ferramentas eram novidade para grande parte das pessoas, inclusive para mim. É muito diferente mediar um encontro no formato virtual. Mas a adaptação aconteceu rapidamente e, hoje, contamos com participantes assíduos em todos os clubes”, conta Nara.

Ela destaca a saudade dos abraços, dos cafés e taças de vinho compartilhadas, mas até isso os grupos estão conseguindo driblar. “A verdade é que o contato com outras pessoas é algo muito importante e a alternativa virtual veio como um bálsamo na pandemia”.

Legenda: A psicoterapeuta e mediadora de leitura Nara Barreto participa de seis clubes de leitura da cidade
Foto: Arquivo pessoal

As histórias a serem divididas são muitas, sobretudo por conta da linha temática de cada clube. Contudo, Nara destaca uma interessante coincidência: um mês antes de eclodir o cenário pandêmico, o Clube do Pacote de Textos, projeto local de assinatura de livros, discutiu o livro “A Peste”, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1930).

“No mais, muitoas obras provocam reflexões pertinentes e mexem com as emoções. Não é raro sentimentos aflorarem quando conversamos sobre livros que tratam de relações familiares e luto, como aconteceu com ‘Homens imprudentemente poéticos’, do Valter Hugo Mãe”, diz.

A mediadora situa ainda que o espaço virtual para trocas literárias já está consolidado, sobretudo por permitir conexões com pessoas espalhadas no mundo inteiro, promovendo ricas experiências. Logo, enxerga o formato híbrido como uma possibilidade viável no futuro.

“O mais importante sempre será a partilha, amparada pelos sentimentos de pertencimento e validação. Num momento de tantas despedidas e incertezas, poder manifestar nossas dores e esperanças mediadas pela leitura e pela escuta respeitosa de um grupo pode ser algo muito potente. Os clubes de leitura sempre foram importantes na minha trajetória, mas agora ganharam um lugar ainda mais especial na minha rotina”, aponta.

Legenda: Clube de Leitura da Sublime, com a escritora Carola Saavedra
Foto: Nata Barreto

Ligação com a vida

Enfermeiro e pesquisador, Doutorando em Cuidados Clínicos pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Ítalo Lennon media o Clube de Literatura Erótica, criado em 2018 como ferramenta para suscitar a discussão de temas relacionados à sexualidade. Outrora com encontros presenciais realizados na Confeitaria Sublime, desde março do ano passado as reuniões do grupo acontecem de modo virtual, exceto nos meses em que a taxa de transmissão do novo coronavírus na cidade estava baixa. 

“Por meio do digital, foi otimizado o fato de poder acompanhar o clube da forma que quiser dentro de casa, ou seja, deitado no sofá, em uma rede ou na cama – além de poder participar dos encontros enquanto prepara o jantar ou faz outras atividades. O contato pela tela no início da pandemia foi fundamental para conservar o vínculo entre os membros e motivá-los para que mantivessem as leituras, o que acredito que ajudou muito quando o isolamento mais rígido realmente nos impedia de sair de casa”, avalia Ítalo.

Feito Nara, o mediador igualmente situa a falta provocada pela distância física – sobretudo porque os encontros eram regados a drinks e não se restringiam a trocas de impressões literárias, mas ao estreitamento da amizade entre os integrantes. Porém, exalta a vontade do grupo de continuar fiel à iniciativa, mantendo o compromisso.

“Uma das obras que lemos nesse período foi ‘Animal Tropical’, de Pedro Juan Gutierrez, na qual o autor relata o período que viveu na Suécia como escritor convidado e namorou uma sueca. Ele vivia no apartamento dela e, por falar pouco sueco e não ter familiaridade com o país, passava a maior parte do tempo confinado no prédio. Isso lembrou muito nossa situação na pandemia”, conta.

Legenda: Ítalo Lennon media o Clube de Literatura Erótica, cujos encontros acontecem mensalmente
Foto: Arquivo pessoal

“Ler foi uma forma de escapar de tudo isso, fugir para outras realidades e tentar manter uma ligação com a vida que conhecíamos antes. Também observamos a capacidade que a literatura tem de nos fazer refletir sobre nossa vida e problemas. Especificamente os livros do Clube de Literatura Erótica ajudam a entender questões relacionadas à nossa saúde sexual, autoimagem e entendimento do corpo. O debate sobre questões de gênero, padrões de comportamento impostos e a expressão social do corpo de homens e mulheres tornam os encontros momentos importantes de troca e aprendizagem”, conclui.

Serviço

Clube de Leitura das Crianças
Semanalmente, às quartas-feiras, por meio do perfil do instagram da Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária (@livrolivrecurio). Encontros retornam em março.

Clube de Leitura das Mulheres
Quinzenalmente, por meio do perfil do instagram da Livro Livre Curió Biblioteca Comunitária (@livrolivrecurio). Encontros retornam em março.

Clube de leitura "Se eu Clarice...", voltado para leitura e discussão das obras de Clarice Lispector
Mensalmente e abertos ao público, via Zoom

Colcha de Leituras, grupo de leitura para mulheres, com caráter terapêutico 
Mensalmente. Os encontros são pagos e as inscrições sempre feitas previamente. Mais informações no perfil do instagram @colchadeleituras

Clube de Leitura da Sublime
Mensalmente, com livros escolhidos pelos participantes, entre clássicos e contemporâneos. Conta ainda com a participação de alguns autores, a exemplo de Valter Hugo Mãe, Carola Saavedra e Maria Valéria Rezende. Via Zoom

ExperimentAções, voltado para mulheres com o objetivo de discutir a experiência de leitura de obras de não-ficção pertinentes ao movimento feminista
Quinzenalmente. O projeto é pago e o grupo é fechado a cada ciclo (a cada livro). Poucas participantes, para garantir uma participação confortável. 

érotique, clube voltado para mulheres, com ênfase em leitura e discussão de literatura erótica de autoria feminina
Mensalmente e de forma gratuita. Início em junho de 2021

Clube do Pacote, clube de leitura das obras enviadas pelo Pacote de Textos, clube cearense de assinatura de livros
Mensalmente, exclusivos para assinantes

Clube de Literatura Erótica
Mensalmente, no último sábado de cada mês, via Google Meet

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