Cem anos após a morte de João do Rio, escritores discutem a alma das ruas no Brasil pandêmico

Xico Sá e Luiz Antonio Simas partilham impressões sobre a obra do cronista falecido em 23 de junho de 1921

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João do Rio 2
Legenda: O dândi em foto publicada originalmente nas páginas de Fon-Fon, em 1909
Foto: Domínio Público

“Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua”. Assim escreveu João do Rio (1881-1921), como se alguém lhe tivesse soprado ao ouvido que, cem anos após sua morte, em meio a uma pandemia, tal recado deveria ser lembrado.

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Naquele 23 de junho, quando se despediu da vida com um infarto no miocárdio, dentro de um táxi, antes mesmo de completar 40 anos, o jornalista e escritor carioca Paulo Barreto levou consigo os inúmeros pseudônimos que criou. Mas João do Rio (e da rua), vez ou outra parece voltar para nos ensinar diferentes maneiras de flanar por aí.

Que o digam escritores como Luiz Antonio Simas e Xico Sá, cujos trabalhos são visivelmente atravessados pela poética que um dia encarnou o dândi de chapéu e charuto.

“João do Rio é referência absoluta para quem quer começar a estudar a história das ruas do Rio de Janeiro. Para tentar entender uma história que não é oficial, a que está acontecendo no cotidiano, nos modos de vida que estão sendo incessantemente inventados pelas pessoas. Mais do que uma inspiração, ele é um disparador de uma série de reflexões que me instigam muito sobre a cidade”, introduz Simas, que deve ao próprio ofício de historiador tamanha aproximação.

O cronista cearense também admite ter bebido dessa fonte desde os primeiros passos na profissão de jornalista.

O João do Rio praticamente nos ensina como extrair de um passeio na rua um personagem para crônica ou reportagem. O que aprendi com ele foi esse olhar, essa maneira de valorizar os personagens e a rua, essa é a grande lição que ele me deixou”, reconhece. 
Xico Sá
Colunista do Diário do Nordeste

Obra multiplicada

Em 2019, Simas lançou “O corpo encantado das ruas” (Editora José Olympio), um livro que dialoga explicitamente com uma das obras mais importantes de João do Rio, “A alma encantadora das ruas”.

No trabalho, o historiador tenta revisitar a cidade, buscando entender como as sociabilidades são construídas incessantemente nessa experiência “rueira”. 

Luiz Antonio Simas
Legenda: O historiador carioca Luiz Antonio Simas propõe em seu trabalho um diálogo direto com a obra de João do Rio
Foto: Acervo pessoal

“João do Rio detectou que a rua tem alma. E a alma precisa se materializar num corpo, né? Então, eu parti dessa espécie de brincadeira, de tentar entender onde essa alma das ruas incorporou”, explica.

Xico Sá, por sua vez, admite difundir os ensinamentos do escritor em um curso de crônicas que já está na oitava turma.

“O que a gente chama hoje de jornalismo literário no Brasil só existe por causa do pontapé dado por ele lá no começo do século passado. Você até tinha a crônica mais literária nos jornais, mas não tinha o cara que ia no terreiro de candomblé ou no centro do Rio de Janeiro, na área boêmia, e fazia um texto entre a crônica e a reportagem”, diz.

“Você não tinha o personagem, o trabalhador brasileiro nem na crônica nem na reportagem do Brasil. Quem chega com essa novidade é o João do Rio. Um cara que viveu muito pouco, mas de uma importância sem limite”, completa Xico.

Desafio pandêmico

Para os dois escritores, essas lições do carioca ficaram até bem mais evidentes diante da pandemia, quando a necessidade de confinamento e distanciamento social fez-se urgente. O esvaziamento das ruas e o estar fora delas teve impacto direto na produção de Xico, por exemplo.

“Eu sofri muito como cronista, porque quase 100% da minha crônica é observação de bar, frase de garçom, alguma confusão de rua, banco de praça… Tô muito ligado a esses assuntos e bateu um bloqueio mesmo. Sofri pra escrever, me voltei um pouco a nostalgias desses assuntos, mas minha crônica não é a mesma, perdi muito a qualidade por falta desse material”, observa.

Xico Sá
Legenda: O cronista cearense Xico Sá recorre às crônicas de João do Rio até hoje para conduzir sua produção

O cronista admite que foi aprendendo a se virar, estudando, buscando outros livros, relendo coisas antigas. Só não abre mão de voltar à fonte principal logo que estivermos em segurança. 

“Tomei a primeira dose da vacina contra a Covid-19 e tô doido pra tomar a segunda para retomar não só o direito de ir e vir, mas também a minha crônica, do jeito que gosto de fazer”, afirma.

Paralelos com a atualidade

Já Luiz Antonio Simas tece comparações significativas do momento atual com aquele em que João esteve inserido. Para o historiador, nos dois períodos é possível testemunhar um conceito de “cidade disputada”. 

Se João vivenciou um Rio marcado pela contradição entre a “Paris tropical”, das reformas de Pereira Passos, e a forte presença cultural dos descendentes de escravizados e de imigrantes portugueses, hoje se vive entre uma cidade pensada como um lugar para as pessoas se encontrarem, e outra que apenas serve de passagem.

O escritor, imortal da Academia Brasileira de Letras, João do Rio, em 1921, nas páginas da revista
Legenda: João do Rio escreveu peças de teatro, contos adultos e infantis, crônicas, reportagens, artigos, resenhas, romances, relatos de viagem etc
Foto: Domínio Público

Eu acho que o dilema que nós temos hoje, fundamentalmente, é sobre que modelo de cidade a gente quer: aquele que proporciona o encontro ou aquele que proporciona a circulação da mercadoria? A pandemia está aí, mas a gente não pode esconder um fato: essa cidade do encontro já vinha sofrendo rigorosamente desde antes”, analisa.
Luiz Antonio Simas
Escritor e historiador

“A rua, tal como a gente entendeu durante muito tempo, ela vinha agonizando. A cidade está perdendo seus espaços de sociabilidade desde antes da pandemia. Então, o pequeno comércio, a barbearia de rua, a quitanda, o açougue de rua, a loja de macumba... Isso vem sendo solapado por uma certa perspectiva da cidade como shopping center. A cidade entre muros, a cidade-condomínio, esse é um negócio brutal. E o João do Rio foi um sujeito que testemunhou isso em outra perspectiva, no início do século passado”, destaca.

Cem anos depois, se temos uma vantagem, é que os textos do cronista se apresentam a nós como respostas. Quem sabe o fim da pandemia não estimule mais indivíduos a flanar, exercitando um amor à rua capaz de ressignificar a cidade e resistir às épocas.

 

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