Músico Caiô se inspira no cotidiano fortalezense e reivindica "espaço para a música negra" no Ceará

Com 15 anos de carreira e participação em projetos de destaque nacional, cantor, músico e compositor planeja primeiro disco solo para 2025

Escrito por
João Gabriel Tréz joao.gabriel@svm.com.br
(Atualizado às 10:13, em 27 de Dezembro de 2024)
Cearense Caiô celebra mais de 15 anos de trajetória e planeja lançamento de primeiro disco solo para 2025
Legenda: Cearense Caiô celebra mais de 15 anos de trajetória e planeja lançamento de primeiro disco solo para 2025
Foto: Fabiane de Paula

Ainda que o cantor, músico e compositor Caiô esteja em processo de gravação do primeiro disco solo, com lançamento previsto para 2025, a trajetória do artista já soma 15 anos — ao menos desde que decidiu enveredar mais profissionalmente pela música.

De lá para cá, são participações em bandas conhecidas do cenário cearense — como Groovytown e Outragalera —,  na equipe de discos importantes da cena local — como “Rolê nas Ruínas” (2020) e “Jesus Ñ Voltará” (2023), de Mateus Fazeno Rock — e no fomento de coletividades em iniciativas como o festival Black Era Fortal.

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O passo mais recente dessa caminhada é o single “Essa é pra ficar na lpz”, lançado no último 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, que vem como amostra de “Para Todos”, título do futuro projeto do artista. O movimento, ele descreve em entrevista ao Verso, é de “retomada”.

Isso porque é possível encontrar em cada experiência acumulada nas últimas décadas pelo artista diferentes aspectos que o ajudam a construir o atual momento da carreira — começando, inclusive, das primeiras referências ainda infantis de música. 

“Bateria” de panela e início autodidata

Nascido em 1993 nos arredores da Lagoa do Porangabuçu — numa região de divisa entre diferentes bairros periféricos da Capital, como Damas, Rodolfo Teófilo, Benfica e Montese —, Caiô tem em pequenos momentos do cotidiano as principais memórias iniciais de contato com a arte.

“Não lembro de um referencial que fosse me conduzir para o que faço, explícito, mas lembro de coisas que aconteciam: a minha vó me deixar fazer uma bateria de panelas, de ver É O Tchan, Sandy e Júnior, e querer imitar aquilo”, partilha.

'Essa é pra ficar na lpz' é o mais recente single de Caiô, lançado em 20 de novembro, dia da Consciência Negra
Legenda: 'Essa é pra ficar na lpz' é o mais recente single de Caiô, lançado em 20 de novembro, dia da Consciência Negra
Foto: Fabiane de Paula

A brincadeira de criança virou interesse na pré-adolescência, reforçado ainda mais quando um tio comprou um violão para estudar o instrumento na igreja. “Via ele, e eu nem sabia, mas tocava as cordas e meu ouvido já associava com uma música”, lembra.

“Na tora”, teve processo de aprendizado inicial de maneira autodidata e encontrou primeiro no rock o lugar de expressão desejado. “Tinha aprendido a tocar quatro acordes e, com isso, compus minha primeira música, já com uma postura de ‘porra, é rock ‘n roll’”, ri-se Caiô.

De cover de Nirvana à Groovytown

Caiô encara atual fase da carreira como uma 'retomada' artística e pessoal
Legenda: Caiô encara atual fase da carreira como uma "retomada" artística e pessoal
Foto: Fabiane de Paula

Em uma empreitada juvenil, juntou-se a amigos da vizinhança que “já tinham essa onda de bandinha punk de garagem” e montou um primeiro projeto como cover do Nirvana. Ele não durou muito, mas os caminhos de Caiô na música se encaminharam para um passo posterior importante: assumir os vocais da Groovytown.

Fundada em 2007, a banda marcou época na cena de Fortaleza com repertório que unia samba, rock, R&B e outros gêneros. Caiô se juntou ao projeto quando, em 2010, conheceu o cantor Dipas, à época integrante do grupo, no Curso de Princípios Básicos de Teatro do Theatro José de Alencar.

“Começo a me profissionalizar, cantar na noite. A Groovytown fazia um percurso comum no cenário do Nordeste, e no de Fortaleza mais ainda, que é de versões, casamentos, bares, Carnaval”, contextualiza.

Em paralelo, Caiô criava composições próprias que não se encaixavam no grupo. Chegou, até, a lançar “Pris”, um EP autoral com Marcus Au Coelho e Dândara Marques que foi relançado em setembro desse ano — mais um exemplo forte do sentimento de “retomada” ressaltado por ele.

“Tem uma memória afetiva de muita gente da cidade por essa época. Estou meio que em retomada, colocando meus trabalhos passados na internet”
Caiô
artista

Outragalera: “Um acontecimento fundante”

A autoralidade expressa em “Pris” na época do lançamento original e processos próprios da Groovytown levaram Caiô a encaminhar a carreira por outros caminhos. Um novo passo, então, se impôs: a Outragalera

“É muito complexo falar da Outragalera só como uma banda, porque ela é um acontecimento meio fundante para eu ter mais autonomia dentro da minha carreira. É toda uma movimentação, não chega a ser só uma banda”
Caiô
artista

A partir de 2017, Caiô se dedicou ao novo projeto, que se pautava em um “estudo” sobre música negra, misturando referências de reggae, dub, hip hop e rap, e defendia “autonomia” e “reivindicação”.

“Ao meu ver, aconteceu um apagamento natural. Tinha a sensação de ver música minha tocando em todo canto, mas sempre a mesma galera pegando os mesmos editais. A Outragalera nasce também para mostrar outra cara, reivindicar um espaço que era meu e de mais gente”, sustenta.

Outragalera, para Caiô, é mais que uma 'banda': 'É um acontecimento meio fundante para eu ter mais autonomia dentro da minha carreira'
Legenda: Outragalera, para Caiô, é mais que uma 'banda': 'É um acontecimento meio fundante para eu ter mais autonomia dentro da minha carreira'
Foto: Thiago Matine / Divulgação

Apesar de indicar que a gênese foi “muito individualizada”, o projeto se desenvolveu de forma, naturalmente, coletiva. Caiô cita não só integrantes como Agê (teclado e trompete), Glauber Alves (baixo) e Rami Freitas (bateria), mas também figuras que se somavam, como Mateus Fazeno Rock e Luiza Nobel. 

“A Outragalera agregava e isso desembocou no nosso disco, mas também continua dando frutos”, atesta.

Coletividade como metodologia

Seja na banda, no diálogo com outros artistas cearenses ou na realização de iniciativas como o Festival Black Era Fortal, cuja segunda edição ocorreu no final de novembro, Caiô se envolveu de diferentes formas em processos coletivos que ajudaram a fortalecer a cena musical do Estado feita, em especial, por pessoas negras.

Referências do reggae, rap e outros gêneros se somam na trajetória artística de Caiô
Legenda: Referências do reggae, rap e outros gêneros se somam na trajetória artística de Caiô
Foto: Thiago Matine / Divulgação

“Foi um levante. Vejo uma coisa muito específica: uma música negra se comunicando diretamente nesse itinerário de pessoas que estão nos extremos da cidade e que fazem algumas estratégias para poderem se aglutinar e, então, se movimentar”, reflete.

Exemplos como o Black Era Fortal, a definição do termo “rock de favela” e os trabalhos de projetos como a Outragalera, o 4rtin, a Família Fazeno Rock e “outras cenas que coletivizam a produção”, como aponta Caiô, são exemplos da “alternativa que a gente criou para fortalecer nossas potências”.

“Muitas vezes a gente está tocando em um equipamento público, tem uma luta para poder receber cachê, poder se agilizar para ensaiar. A gente acaba tendo que operar nesse sistema. Para a gente, às vezes, é o que sobra. Então não é uma escolha romântica”
Caiô
artista

“Essa coletividade acaba sendo um movimento, uma estratégia, uma metodologia. Às vezes fica como se fosse fácil, como se coletivizar nossas produções fosse uma coisa romântica. A gente treta, briga, mas tem essa consciência”, aponta o artista.

É um movimento, enfim, que ecoa a reivindicação de espaço citada anteriormente por Caiô. “A gente reivindica espaço para a música negra, para as nossas movimentações, e deixa explícito que é um trabalho de um levante coletivo — procura olhar as fichas técnicas. É um levante para ver se a gente chega em algum lugar”, confia.

Do samba, do reggae do rock

Como amálgama da trajetória de Caiô, “Essa é pra ficar na lpz” agrega referências múltiplas do percurso do artista: na sonoridade, aspectos de hip hop e reggae embalam versos que citam de Nirvana a Belchior

“A galera até fresca por aí: ‘Valha, mas tu não era do samba, agora tu é do rock, do reggae?’. Musicalmente, tenho várias influências”, explica. A escolha do título do projeto futuro, “Para Todos”, não vem por acaso.

“Engloba esse universo de gêneros e ritmos, sem medo, explorando por onde eu já passei, seja uma parada mais acústica, mais rock, mais punk, tentando encontrar um lugar a partir daí”, explica.

Para além das influências sonoras, Caiô reconhece no atual momento, em especial, o que arrisca chamar de “maturidade”

“Sou eu como produtor, com minha experiência, dizendo para onde quero ir e como quero fazer, com autonomia, falando das dores e delícias da profissão, da vida, não com conformismo, mas paciência, maturidade, talvez, de entender que as coisas acontecem num ritmo”
Caiô
artista

Ainda que destaque ídolos como Itamar Assumpção, Bob Marley e Ramones, Caiô reforça: é no cotidiano que tem encontrado as principais inspirações artísticas. “O que tem me tocado é a vida cotidiana, pegar um metrô, ir trampar”, lista.

Inspiração nos trajetos cotidianos e em memórias de figuras referenciais guiam novo momento de produção de Caiô
Legenda: Inspiração nos trajetos cotidianos e em memórias de figuras referenciais guiam novo momento de produção de Caiô
Foto: Lucas Rocha / Divulgação

“O que me inspira é ver uma pessoa que nem conheço no trajeto de pegar meu pivete na escola e vir a pé pra casa. Lembro da minha tia trabalhando pra caralho, da minha mãe, de figuras negras da minha família e do meu bairro”, elenca. “Quando falo retomada, é sobre estar mais disposto e mais saudável para poder enfrentar tudo isso”, atesta. 

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