Cariri além da tradição: projeto 'Vozes da Quebrada' apresenta gravações inéditas de jovens artistas
Álbum com canções de dez artistas da região ressalta diversidade da cena musical contemporânea do interior do Ceará
Demarcar a existência de "um outro Cariri". Essa é a proposta do projeto Vozes da Quebrada, idealizado pelo coletivo Quebrada Cultural, que resultou em um álbum homônimo com dez gravações inéditas de jovens artistas da região.
As músicas, que vão do piseiro ao hip hop, passando pela cumbia e pela MPB, ressaltam a potência criativa de uma região que, para além da cultura tradicional e popular sempre evidenciadas, se destaca pela inventividade na arte contemporânea.
O disco conta com canções autorais de André Oliveira, Claudio SDJ, Clauz Fagundes, Dextape Emece (que, junto a Anália Lobo, idealizou o projeto), Kaevora, LS MC, Malina Starlight, New Age, Negra Lu e Zé de Guerrilla.
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Viabilizado pelo Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE), o projeto foi desenvolvido durante todo o ano de 2023 e contou com diversas etapas. Primeiro, entre 100 artistas que se candidataram, foram selecionados os dez que estariam no disco, com foco em pessoas negras e LGBTQIAP+ residentes ou oriundas de periferias de municípios do Cariri. Mães solo também foram priorizadas na seleção.
Muitas vezes, a galera acaba se valendo da cultura popular para reforçar estigmas. Nossa ideia é quebrar o estigma que se tem não só sobre o Cariri, mas sobre o Nordeste como um todo. A gente não vive num livro do Ariano Suassuna, a gente vive num lugar pungente. Queremos mostrar um lugar que não é novo, mas é um lugar outro.
Depois, houve uma imersão em que os artistas aprenderam a profissionalizar o trabalho que já desenvolviam. A vivência ocorreu no estúdio Jaraguá Records, na Chapada do Araripe, e contou com oficinas de como se tornar MEI, distribuir materiais nas plataformas de streaming e outros conhecimentos essenciais para trabalhar profissionalmente com música.
O cantor e compositor Dextape, um dos produtores do projeto – e também o responsável por “Minha casa é disco do Belchior”, música de encerramento do disco – explica que a ideia de reunir artistas para ações formativas já existia há algum tempo, mas “a quebrada deu corporeidade a ela”.
“A ideia não era só gravar o disco. O disco foi uma ‘desculpa’ para debater a continuidade dos artistas. Muitas vezes, um artista se lança e não tem como perdurar porque não tem uma música legal, uma foto para conseguir um show”, explica o rapper. “Então, passamos por várias etapas, desde entender o projeto até lançar a música de fato”.
O show “Vozes da Quebrada” foi apresentado ao público três vezes entre dezembro e janeiro: no Teatro Tim Félix, no Centro Cultural Banco do Nordeste e no Centro Cultural Cariri, onde a apresentação oficial de lançamento ocorreu.
Agora, segundo Dextape, é chegada a hora de uma nova fase. Enquanto os artistas seguem promovendo a divulgação dos singles e colhendo frutos, como colaborações e novos shows, a Quebrada Cultural decidiu transformar o projeto em um selo musical, e já prevê o lançamento de novas canções feitas por artistas de quebrada de vários lugares do Ceará e do mundo, em países como Angola e EUA, ainda este ano.
Para Dextape, o selo será ponte para que outros artistas das periferias possam viabilizar suas produções musicais e chega em um momento oportuno, em que novos modelos de pensar a cultura têm sido estimulados.
"A periferia é quem mais produz arte, música, literatura, artes visuais, então tem que ser a periferia que mais escoa”, destaca. “Talvez, nessa retomada, a gente comece de fato a ter reconhecimento e dar vazão a todas as nossas produções”.
Protagonismo do “lugar de quebrada”
Capa do álbum e a voz por trás da música “Paquera”, a oitava do álbum, Malina Starlight, 24, drag queen interpretada pelo multiartista juazeirense Tonnigo, resume o motivo de ter sido convidada para dar cara ao projeto em um conceito:
“Os locais de fala pesam muito e identificam um 'lugar de quebrada'. Sendo uma pessoa negra, periférica, gay e drag queen, eu estou em diversos desses locais, então o convite me deixou muito feliz”, comenta a artista, que destaca a relevância de colocar pessoas que residem em periferias como protagonistas.
Além da fotografia principal, Malina Starlight também auxiliou no design da capa, sugerindo elementos que considera “bem da quebrada" e com referências ao Ceará e ao Nordeste. O próprio nome da artista, "Malina", foi escolhido por ser uma expressão genuinamente cearense.
Apesar de se apresentar em casas de show e festivais do Cariri há quase oito anos, “Paquera” foi a primeira gravação profissional feita pela artista, que costumava gravar demos no celular e apresentá-las ao público apenas em alguns shows. O piseiro com referências pop que marca a estreia de Malina como cantora profissional é uma versão repaginada de uma música criada em 2021, que inicialmente fazia o estilo “pop farofa”.
“Pra gente esse álbum é uma vitrine, um catálogo. E como acabam nichando muito as drags no pop e cantando só pro público gay, decidi fazer esse forró para me aproximar de outros públicos também”, destaca Malina, que se inspirou em Pabllo Vittar para gravar o hit e “furar a bolha”. O objetivo, segundo ela, é tornar o trabalho que desenvolve mais rentável – ainda que o percurso ainda seja longo.
“Mal querem valorizar as drags quando elas estão ‘só’ atuando e dublando, quanto mais quando a gente quer fazer algo mais profissional na música. Mas há muitas drags cantoras no Cariri, e a gente vai fazendo o trabalho de formiguinha para fortalecer a arte drag”, destaca.
Para 2024, Malina promete aos fãs outro single de piseiro e um EP de trap, outra paixão da artista.
Empoderamento para novos artistas
Enquanto Malina dá seus primeiros passos em direção à carreira de cantora, que anteriormente era apenas parte de sua trajetória como performer, outros artistas do Vozes da Quebrada viram no projeto um modo de reinventar as trajetórias que já percorriam antes do disco.
É o caso de Clauz Fagundes, 23, que cresceu em Ingazeiras, distrito de Aurora, e há quatro anos mora em Juazeiro do Norte. O jovem cantor e compositor começou a escrever e gravar singles com o celular em 2020 e chegou a lançar dois EPs em 2023, mas conta que a gravação de "Você", música que integra a coletânea, foi a primeira feita em estúdio e com orientação profissional.
A canção, entoada em voz e violão, é um retrato intimista da volta para a casa dos pais na pandemia, em Ingazeiras – e “um encontro entre a criança interior e o adulto”, define. Um adulto que, segundo Clauz, finalmente percebeu que é possível "defender a própria música".
“Eu já tinha trabalhado em estúdios de amigos, mas tudo independente. Quando fui selecionado para o projeto, levei uma composição que já existia, mas que era um teste, feito em casa. 'Você' surge após uma vivência completa e bem complexa”, afirma. “Esse processo de formação empodera o artista novo, que muitas vezes não tem noção do que é possível fazer”, comenta.
Após o lançamento do disco, no fim de janeiro deste ano, Fagundes lançou "Navegador", novo single em colaboração com Dextape e a cantora Akarol. Agora, ele se prepara para lançar mais duas músicas inéditas e, até o ano que vem, finalizar o primeiro álbum – que será produzido por Luiz Araújo, da Jaraguá Records, um dos produtores do Vozes.
Profissionalização da arte amplia possibilidades
Assim como Clauz, o músico André Oliveira, 34, não era novato quando compôs e gravou sua faixa autoral, "É Isso Tudo", para o Vozes da Quebrada. Longe disso. Há 18 anos, ele canta em bares de diversas cidades do Cariri, dentro e fora do triângulo Crajubar.
Influenciado por uma tia que trabalhava com gestão cultural, André aprendeu violão de forma autodidata ainda na adolescência e refinou o conhecimento musical com a prática e dicas de amigos. A partir disso, começou a fazer covers e releituras de canções famosas da MPB, com referências do soul.
Em 2018, porém, algo mudou e veio “a instiga para começar a escrever”. Foram cerca de quatro anos experimentando e engavetando escritos até a chamada pública para o disco-coletânea surgir.
“Não lancei nada antes porque não tinha um norte para lançar, não sabia como agir, o que fazer. Hoje consigo enxergar que perdi um pouquinho de tempo por isso, mas também consigo pensar ‘que massa que agora aconteceu’. A partir desse ponto, pude ter outra visão sobre meu trabalho”, afirma o artista.
Além do primeiro trabalho autoral, o caminho traçado durante a produção do disco promete ser compartilhado com outros músicos da região, a exemplo dos colegas da Banda Realce, projeto paralelo de soul/rock que André comanda, multiplicando saberes e sons.
“Apesar de termos muitos talentos na nossa região, ainda existe uma falta de conhecimento”, explica. “Essa profissionalização auxilia os que estão começando agora a entender como tudo funciona. E a gente, que já está nessa há um tempo, mas que ainda tem uma certa ‘ignorância’ sobre o assunto, consegue criar um norte para desenvolver nosso trabalho e mostrar a potência que a gente tem”.
Serviço
Álbum “Vozes da Quebrada”
Com André Oliveira, Claudio SDJ, Clauz Fagundes, Dextape Emece, Kaevora, LS MC, Malina Starlight, New Age, Negra Lu e Zé de Guerrilla
Para ouvir: No Spotify, Deezer, YouTube e demais plataformas digitais
Para acompanhar: @vozesdaquebrada_