Bode Ioiô protagoniza o desfile da Paraíso do Tuiuti no Carnaval 2019
Atualmente peça do Museu do Ceará, o caprino participou de atos políticos em coretos, praças e saraus literários. Em março, irá perambular pela Sapucaí
Conhecido personagem da política cearense é o grande nome do enredo da Escola Paraíso do Tuiuti. Popularíssimo por volta de 1920 em Fortaleza, o Bode Ioiô perambulava pela cidade e chegou a ser "eleito" vereador. Ele veio morar em Fortaleza junto a uma família de retirantes. Sem condição de criá-lo, ela o vendeu a um empresário.
É possível ver esse protagonismo numa visita ao barracão da Escola. Em produção, as peças que formam cabeça e chifres do animal são guardadas nos cantos mais velados. Diferentes versões do caprino estão sendo criadas, um que caminhava pelo dia e outro pela noite. Equipes se revezam entre costura, colagem e pintura de adereços nas roupas e carros que compõem cada ala.
Renda de bilro e tapetes são peças presentes. Costureiros tiveram de aprender em poucos dias como trabalhar com o artesanato cearense. Na Paraíso do Tuiuti, cerca de 170 pessoas participam da produção de diversas peças para compor 29 alas formadas por 3.2 mil profissionais do Carnaval. Para se inspirar, Jack Vasconcelos, carnavalesco da Escola, passou três dias em Fortaleza em 2018 para levantar informações históricas sobre a Capital cearense.
"Eu saí do Rio com o enredo formatado na minha cabeça. Tinha algumas informações de leituras. Quando a gente é pesquisador, quando ler muito, acha que somos os donos da verdade. Eu cheguei assim a Fortaleza e fui completamente desmontado quando conheci as pessoas e convivi por três dias nas ruas. Eu voltei com o enredo diferente. Fui invadido pelo espírito, que eu ouvi lá, da molecagem. Eu falei que essa molecagem precisava estar no enredo. Isso mudou completamente o rumo do nosso trabalho".
Vivenciar as ruas de Fortaleza influenciou Jack no texto, nas formas e nas cores dos carros e roupas da escola. Antes mesmo de rabiscar qualquer traço, ele pode materializar o que havia sentido e visto na cidade. "A luminosidade, a alegria das pessoas, o jeito de encarar os problemas e de falar de coisas difíceis por meio do humor. Isso foi o ponto fundamental de o enredo ter nascido sobre o Bode Ioiô".
Uma das peças que deu mais trabalho para o grupo de arte foi o tapete de retalhos. "Estamos reproduzindo peças em grande escala. Foi um alvoroço. Tenho três alas, fora a das baianas, e uma para a qual estamos produzindo mais de 12 mil fuxicos. Todo mundo do Tuiuti está mergulhando de corpo e alma no artesanato cearense".
A vinda de Jack Vasconcelos ao Ceará nasceu com o propósito de recriar os caminhos que o Bode Ioiô teria feito em vida. "Fui atrás dessa Fortaleza antiga. Fui guiado nas ruas por João Gustavo Melo, Rui Simões Filho e por Carla Vieira (diretora do Museu do Ceará). Eles foram me contando dos prédios, como Fortaleza está hoje e o que acontecia naquela época. Foi uma viagem no tempo. Estudar esse período da belle époque e poder fazer essa relação com o Rio de Janeiro, que passou pelo mesmo processo, foi incrível".
Quem também ganha formas nas vestes carnavalescas é a vidraçaria do Theatro José de Alencar. As armações multicoloridas compõem parte das roupas de Carnaval. Penas de avestruz e a renda cearense complementam cada peça. "Eu precisava trazer o Theatro José de Alencar ao enredo. Criei fantasias que de uma certa maneira reproduzissem o que eu vi. Nós temos uma alegoria que dá alusão aos vitrais e aos metais fundidos do Theatro. A gente tem essa arte no Rio também. Eu trago para as pessoas verem a semelhança. Foram três dias intensos e bonitos de imersão em Fortaleza", conta Jack Vasconcelos.
Os mares cearenses também são ressaltados nas cores da Escola. Jackson visitou diversos trechos da Praia do Futuro com o intuito de colorir as vestes. "Os tons de azuis me tocaram muito, apesar de o mar ser verde. No Rio, a água é mais azul. Tirei várias fotos em diversos horários para que pudéssemos reproduzir nos tecidos. Tudo valeu a pena. É muito diferente você pegar uma peça de artesanato tão sofisticada e passar para uma série em produção com um tempo curto como o Carnaval do Rio de Janeiro exige".
Humor
Para levar o conteúdo mais fiel possível à realidade do Ceará, a Tuiuti procurou cearenses com atuação no Carnaval do Rio. Há 20 anos, o jornalista João Gustavo Melo ajuda na pesquisa cultural para montar as estruturas das escolas de samba. Gustavo é natural de Crateús, mas se criou em Fortaleza. Apaixonado pela história do Ceará, o jornalista atuou como diretor cultural da Salgueiro. Foi escritor de sinopses e autor dos roteiros da Viradouro, Mocidade, São Clemente e Império Serrano.
Tínhamos que otimizar o máximo possível da nossa viagem a Fortaleza, por conta do pouco tempo. Escolhemos localizações onde o bode esteve. Passamos pela Praia do Peixe, nas imediações da Praia de Iracema, estivemos no Mercado dos Pinhões, no circuito do Theatro José de Alencar, na própria praça do teatro. Estivemos no Mucuripe para olhar a extensão toda da Beira Mar e também na periferia. No bairro Jacarecanga, por exemplo, que não era o centrão de Fortaleza, mas que era para onde a cidade estava se expandido naquela época", conta o jornalista.
Uma das curiosidades pontuadas pelo jornalista é que o bairro de São Cristóvão, lugar onde é localizado o Grêmio Recreativo Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, é moradia de diversos nordestinos. O Centro Municipal Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas (Feira de São Cristovão) também fica na região.
Da alma do cearense, Gustavo conta que não deixou passar o bom humor. "A leitura é bem-humorada. Se tem um fio condutor que liga tudo e o bom humor de como nós representamos dores e alegrias. O humor acaba deixando tudo mais leve. Foi até uma forma diferente de pontuar o enredo da Tuiuti do ano passado (Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?), que era um tema pesado com muita ironia. Neste ano, já é pontuada essa ironia do início ao fim. Esse espírito é muito mais o sentimento do que elemento visual. Foi uma coisa que tocou muito o coração da escola".
Veja o samba-enredo da Paraíso do Tuiuti em 2019:
O Salvador da Pátria
O meu bode tem cabelo na venta
O Tuiuti me representa
Meu Paraíso escolheu o Ceará
Vou bodejar lá iá lá iá
Vendeu-se o Brasil num palanque da praça
E ao homem serviu ferro, lodo e mordaça
Vendeu-se o Brasil do sertão até o mangue
E o homem servil verteu lágrimas de sangue
Do nada um bode vindo lá do interior
Destino pobre, nordestino sonhador
Vazou da fome, retirante ao Deus dará
Soprou as chamas do dragão do mar
Passava o dia ruminando poesia
Batendo cascos no calor dos mafuás
Bafo de bode perfumando a boemia
Levou no colo Iracema até o cais
Com luxo não! Chão de capim!
Nasceu muderna Fortaleza pro bichim
Pega na viola, diz um verso pra iô iô
O salvador! O salvador! (da pátria)
Ora meu patrão!
Vida de gado desse povo tão marcado
Não precisa de dotô
Quando clareou o resultado
Tava o bode ali sentado
Aclamado o vencedor
Nem berrar, berrou, sequer assumiu
Isso aqui iô iô é um pouquinho de Brasil