Poucas coisas são capazes de roubar as palavras de um poeta. Mas Erivaldo Alencar experimentou essa sensação no último sábado de novembro, quando o caminhão de uma transportadora vindo de Fortaleza estacionou em frente à casa onde reside, no município de Acopiara, interior do Ceará. O automóvel carregava o resultado de um sonho: 500 exemplares de “Coquetel de poesia”, obra de autoria do escritor.
“No meu dicionário, não tem palavras que justifiquem a alegria, a minha emoção”, conta o literato ao telefone, voz firme de quem recém-completou 73 anos de idade. A vontade naquele momento, segundo ele, era de correr, gritar para o mundo que agora estava sendo reconhecido como um verdadeiro poeta, com livro finalmente publicado por uma editora. Durante décadas, Erivaldo custeou a impressão dos textos com recursos do próprio bolso.
A renda provinha da venda de picolés na cidade – atividade que ele continua fazendo até hoje, embora com o desejo renovado de viver somente do comércio de livros. O incentivo para que isso se concretize um dia nasceu há alguns meses, mediante iniciativa da Prefeitura de Acopiara – com ação de valorização dos talentos do município – e posterior reportagem do Diário do Nordeste sobre a trajetória de seu Erivaldo, como é carinhosamente chamado.
A partir da leitura dos sonhos do escritor listados na matéria – dentre eles, o de ter obras publicadas por uma “grande editora” – um amigo de longa data, o advogado Raul Ribeiro, articulou nove pessoas para que, juntos, pudessem estender o alcance do talento do poeta. Dito e feito: “Coquetel de poesia”, com pouco mais de 60 poemas, foi editado e impresso pela editora Tecnograf e, agora, deve ganhar lançamento ainda neste mês.
“Todo artista tem o desejo de ser reconhecido, ele quer a garantia de dizer que é escritor, por exemplo. E não apenas provar com a letra, mas com documentos que justifiquem isso. Com o meu livro tendo código de barras e um registro mundial (ISBN, sigla em inglês para Padrão Internacional de Numeração de Livro), qualquer pessoa poderá ler a minha obra. Isso me emociona muito”.
Caminhada literária
O maior desafio de todo o processo, conforme Raul Ribeiro, foi conseguir recursos para levar o livro à gráfica e fazer previamente um minucioso trabalho de revisão. Não à toa, a necessidade de contar com parceiros que não apenas apreciassem a cultura e a arte, mas compreendessem que o talento de seu Erivaldo é singular. Produções do escritor, inclusive, podem ser conferidas no blog mantido por ele.
“Realizar o sonho do seu Erivaldo foi importante porque ele é uma pessoa inspiradora, que sempre esteve presente no cotidiano de Acopiara. Seu exemplo de persistência precisa ser valorizado. Além de elevá-lo como artista, queremos lembrá-lo de seu valor como homem simples, batalhador e de coração gigante, que sempre acolheu a todos. Isso não tem preço”, detalha o advogado, também Controlador-Geral da Prefeitura de Maracanaú.
Ele também sublinha que disseminar a cultura e dar visibilidade a um artista popular é gratificante por mostrar uma sociedade que ainda luta para manter vivas as tradições. “No livro, seu Erivaldo traz histórias em versos da rotina do seu lugar, de suas vivências, as dificuldades, entre outros aspectos. Todos nós que nos unimos em prol da publicação dessa obra sentimos imenso orgulho em poder descortinar essa janela e trazer à cena um artista com muito conteúdo, que precisa e merece ser visto por um maior número de pessoas”.
De fato, a literatura é presença das mais fortes na vida do criativo cearense. Mais: está no sangue. No momento concluindo um livro sobre a genealogia paterna, seu Erivaldo tem ligação com um dos maiores nomes de nossas letras, José de Alencar (1829-1877). O bisavô do celebrado romancista é octavô dele. “Nossa família é muito grande e muito ligada à literatura. Me sinto abençoado por isso”.
Uma paixão que escorre pelos olhos enquanto tenta visualizar toda a pequena casa, em Acopiara, revestida de livros. Se fosse possível, no lugar de tijolos, haveriam os títulos em brochura. Estariam também na cama, na sala, em todos os cômodos e lugares, sendo presente e presença. “Isso é o que eu gostaria de fazer, tenho muitos sonhos para realizar”, adianta.
Divulgar a poesia
Agora com obra tendo a chancela de uma editora, um desses desejos é distribuir o conteúdo em todos os quatros cantos do Ceará. Seu Erivaldo selecionará algumas bibliotecas do Estado e enviará um exemplar para elas, estreitando o contato do público com o trabalho em versos. Para ele, o fator econômico não é o principal, mas que, quando vier a partir, possa deixar um legado para as futuras gerações.
Herança construída com muito esmero e labuta enquanto circula pela cidade com os picolés e um caderninho a tiracolo, anotando o que lhe inspira o cotidiano. No total, o cearense já escreveu 2826 poemas, 17 livros e possui 75 cordéis publicados. Se deseja parar? Nunca.
“Um sonho que venho lutando faz tempo é que seja criada a Academia Acopiarense de Letras. A ideia é que, no ano que vem, a gente consiga instalar. Está havendo uma certa dificuldade, mas pode ser que esses eventos sensibilizem nossas autoridades para que possamos criar, definitivamente, essa agremiação, a entidade literária máxima do município de Acopiara”.
“Isso não é apenas para que eu possa dizer ‘eu sou acadêmico’, mas que venha a reunir um grupo de pessoas e trabalhar – uma vez que a função das Academias de Letras é pesquisar. E eu quero conhecer melhor a história de Acopiara, do meu povo. Para isso, é preciso nos unirmos a partir desse ponto de vista, para que a academia seja criada por meio de projetos de lei”, conclui. Alguém duvida que, com todo esse vigor e atitude, mais um sonho vai se realizar?