O rapper paulistano Emicida já circulava para além da capital paulista quando passou a deixar o recado de que, mais do que marcar espaço com o rap, ele se interessava em ampliar o alcance de sua voz e participar do debate público. Há 9 anos, por exemplo, foi atração principal da Mostra Petrúcio Maia, na Praia do Futuro, em Fortaleza, com a reputação de atração de "peso" do circuito independente e um poder evidente para questionar certezas.
O tempo passou e a presença do rapper como um dos quatro debatedores do programa de TV "Papo de Segunda" do GNT (com 3 brancos e ele, negro) é só um exemplo de como a voz de Emicida se espalhou. Nome fundamental para compreender a música brasileira contemporânea, o rapper agora chama os holofotes pra si com o ótimo documentário "AmarElo - É tudo pra ontem", disponível para os assinantes do Netflix.
Além de apresentar o repertório de seu último álbum, "AmarElo" (2019), por meio do celebrado show de lançamento no Theatro Municipal de São Paulo, o filme lança um olhar sobre a história da cultura afro no Brasil, sobretudo da modernidade até aqui.
Sem esquecer nenhum instante que o racismo segue vivo, no Brasil, tanto quanto a negação da existência do preconceito e da violência dirigida contra a população negra, o documentário oferece um material muito direto sobre o espaço conquistado pelos negros no cenário artístico brasileiro.
Além da militância do movimento social afro e de intelectuais pretos como Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994), o filme tem, entre seus melhores momentos, um olhar para nomes importantes (porém nem tão óbvios) da negritude no País, a exemplo da citação carinhosa ao baterista "Seu" Wilson das Neves (1936-2017). Ícone do samba, "Das Neves" acompanhou Chico Buarque nos palcos e estúdios por mais de 30 anos, até a turnê de "Chico" (2011).
"AmarElo - É tudo pra ontem" faz outros resgates importantes, como a passagem do sambista e humorista Mussum, ícone da TV brasileira, no grupo "Originais do Samba". O documentário faz a devida reverência ao samba - bem lembrando como os pioneiros foram discriminados nos primórdios de sua manifestação e sofreram com a lei da "vadiagem".
Outro êxito do documentário está em revelar (ou apenas citar) o apelo político da trajetória de nomes históricos dentre os artistas negros do século XX, a exemplo da atriz Ruth de Souza (1921-2019) e do cantor Wilson Simonal (1938-2000).
Cenários
O filme tem três cenários mais recorrentes: o show no Theatro Municipal e seus bastidores; o estúdio de gravação do repertório de "AmarElo"; e as passagens narradas e ilustradas da história negra no Brasil. Os momentos dentro do estúdio e nos bastidores do show acabam fazendo um "contraponto" ao clima de afirmação das demais cenas da edição do documentário. E mostram um Emicida menos combativo e mais "impressionado" com o que há ao seu redor.
A emoção fica evidente no encontro com Fernanda Montenegro para gravar "Ismália" no estúdio. E no abraço com o parceiro Evandro Fióti, após a apresentação no Municipal. No entanto, além de convidar o espectador para se emocionar diante de uma história dura de superação (algo que está presente sempre na fala do rapper), os 90 minutos de "AmarElo" provocam mais do que lágrimas.
O filme é um amplo reflexo da mente inquieta não apenas de Emicida, mas do "menino" Leandro Roque de Oliveira (hoje aos 35 anos idade). Para quem viu o rapper em início de carreira, disputando batalhas de rima, não dava para duvidar, desde já, de sua ousadia para ocupar aquele espaço. "AmarElo", para além, transforma essa ousadia em cinema e dá um passo na construção de um futuro menos racista.