Como foi o carnaval de Fortaleza em 2023 e o que esperar para os próximos anos?

Artistas, blocos e agremiações até conseguem resumir que a folia deste ano teve um sabor de recomeço, mas algumas demandas da classe artística ainda persistem

A alegria dos foliões, a vontade de botar de novo um bloco na rua, desfilar na Avenida e entoar bem alto as loas. Eram muitas as saudades de quem faz o Carnaval de Fortaleza. 2023 veio como uma luva, após dois anos sem uma das festas culturais mais potentes do Brasil, o povo retornou às ruas para festejar, dançar, cantar.  

“Fomos pra Avenida tensos, mas foi uma emoção muito grande, chorei, porque não estava acreditando que estava ali de novo”, declara Teonildo de Assis Lima, presidente do Maracatu Rei Zumbi e carnavalesco há mais de 20 anos.  

No sábado de Carnaval (18), o Maracatu Rei Zumbi desfilou na Avenida Domingos Olímpio com o tema “Maracatus que têm Nomes de Cartas de Baralho”. “Nasceu Às de espada em seu esplendor, Ás de paus, rei de paus, rei de espada, maracatu do amor”, diz um trecho da loa deste ano.  

Apesar da emoção e do desejo de estar na avenida de novo, Teonildo diz que problemas infraestruturais dificultam a realização do desfile. “O som estava péssimo, falhava quando os músicos cantavam, voltava e já tava em outro trecho da música. Isso é um absurdo”. 

“O ápice de tudo, da falta de consideração com nós carnavalescos, é que não há um cuidado com o chão da Domingos Olímpio, que está cheio de pedras. Cada maracatu desfila com, no mínimo, 40 indígenas em duas alas e eles não usam sapato, desfilam descalços. São crianças e jovens que terminam o desfile às vezes chorando com os pés machucados das pedras”.  
Teonildo de Assis
presidente do Maracatu Rei Zumbi

O apoio financeiro da Prefeitura de Fortaleza também foi outra questão, de acordo com Teonildo, já que o repasse no valor de R$ 30 mil só foi depositado nas contas dos maracatus na quinta-feira (16). “A gente tem que fazer empréstimo pra pagar a estrutura do desfile”.    

Resistência  

Para Marcos Gomes, diretor de Carnaval do Maracatu Az de Ouro, o sentimento é o mesmo e complementa: “somos resistência. Com todas as dificuldades, a gente continua fazendo o Carnaval, falta apoio, falta recurso, falta estrutura adequada”.  

“As coisas foram andando a passos lentos pra chegar ao que foi colocado nas avenidas. Fortaleza não tem nada pra carnaval de rua, as lojas não abastecem porque não tem nenhum tipo de incentivo pra isso. As agremiações têm de pedir os adereços, insumos, de outros estados. Os recursos que a gente recebe são irrisórios pra quem quer fazer um Carnaval bonito e forte”, diz. 

Porém, o amor por essa manifestação artística é tanta que o desfile do Az de Ouro aconteceu no domingo (19), com o tema “Chico da Matilde, o guerreiro dos Verdes Mares”.  

“A gente nasce, cresce, vive dentro de um formato tradicional de Carnaval, depois de dois anos, emociona, você sente que cumpriu o dever, alegrou as pessoas que estavam dentro do próprio maracatu e o público. É muito gratificante. É dessa forma que a gente segue, continua com esperança pro futuro”.  
Marcos Gomes
diretor de Carnaval do Maracatu Az de Ouro

Marcos destaca, contudo, que neste ano não era para haver competição, já que as agremiações sofreram com a falta de recursos durante o período da pandemia. “Em 2023, era pra ter só desfile, e em 2024 voltar as competições, quando tiverem mais organizados e fortalecidos”.  

Carnaval da superação  

Quem também partilha dessa emoção é o tradicional bloco A Turma do Mamão, nas ruas desde 1975 no bairro Moura Brasil. Para ele, 2023 foi o Carnaval da superação.  

“Foi uma superação grande estar ali, porque tudo que para e volta tem uma questão, mas não houve isso, o Carnaval teve um gosto diferente, acho até que tinha muita gente em Fortaleza”, afirma Raimundo Barros, um dos responsáveis pelo bloco.  

Homenageando os nordestinos neste ano, o bloco se apresentou na segunda-feira (20), na Domingos Olímpio. “O tema teve uma aceitação maravilhosa na avenida, o povo cantando o refrão com a gente: ‘na dança, tem forró. Também tem muito axé. Meu padim e Aparecida, eu tenho a fé no sabor do cuscuz ao acarajé. Reizado, romaria, candomblé’. Foi muito lindo”. 

Assim como para os maracatus, os blocos também sofreram com a questão do apoio financeiro, já que o pré-Carnaval começou sem verba. Mesmo assim, A Turma do Mamão fez questão de estar nas ruas.

“De sexta pra cá, eu não tenho oito horas de sono. Mas hoje é um sentimento de dever cumprido, vale a pena”.  
Raimundo Barros
do Bloco A Turma do Mamão

Liberdade e esperança  

Após maratona de shows no pré e no Carnaval, Mateus Perdigão, do Luxo da Aldeia é categórico: “tava todo mundo afim de curtir, brincar, se divertir. Muita gente, depois de dois anos de pandemia, tava com esse sentimento, de querer fazer o maior Carnaval dos últimos tempos”.  

“Até conhecidos meus que não curtiam tanto, decidiram ir e se divertiram bastante, e pela quantidade de gente que tinha nos polos oficiais, se confirmou o sentimento represado que se tinha, foi o Carnaval da liberdade e da esperança”.  
Mateus Perdigão
vocalista do Luxo da Aldeia

Atração bastante presente no Ciclo Carnavalesco, Mateus diz que os dias oficiais da folia tem um sabor especial, diferente dos dias de show em pré-Carnaval. “Tenho até dificuldade em descrever o que a gente sente”.  

“O Carnaval tem uma dinâmica diferente, as pessoas têm outra disposição, estão fantasiadas. É outra energia. Reforça pra mim a ideia de que o Luxo da Aldeia é também um bloco. Na segunda-feira, aconteceu uma coisa maravilhosa. Quando terminamos de cantar ‘Terral’, o público continuou cantando, foi muito bonito, emocionante. Coisas que acontecem só no Carnaval”, acrescenta.   

Contudo, o vocalista pondera que há uma tendência acontecendo de o Carnaval de Fortaleza se tornar um festival, especialmente por ser uma construção sem muito diálogo com os artistas, blocos, agremiações. “A gente tem que discutir o que é Carnaval, não abarcar tudo que é uma pluralidade em algo superficial. Se for assim, vira um festival como qualquer outro”.  

Festa em construção 

Cantora e instrumentista, Juliana Eva, do bloco Damas Cortejam, pondera que ainda há uma construção do Carnaval em Fortaleza. “Nesse caso, me refiro à organização da festa de rua, dos blocos, não às manifestações mais tradicionais que acontecem há décadas na nossa cidade”.  

Fundado em 2012, Juliana afirma que há diversas dificuldades em colocar um bloco independente na rua, gastos financeiros e emocionais, mas o retorno afetivo é muito grande. Até 2018, o Damas Cortejam atuou como um bloco independente, foi só em 2019 que as organizadoras resolveram entrar nos credenciamentos públicos.  

A partir desse período, Juliana corrobora com a avaliação de Mateus de que o formato do Carnaval de Fortaleza se desenhou para ser um festival de shows.

“O folião vai pro polo, aproveita os shows. É bom que tenha ocupação, até porque você conhece novos artistas, mas Carnaval é cultura e acaba se perdendo a identidade, o sentimento de pertencimento”.  
Juliana Eva
musicista do Damas Cortejam

Para isso, a musicista também destaca que esse papel não é só do poder público, mas o público também precisa engajar e fazer parte desses blocos independentes.  

Reviver emoções  

Um dos destaques do Carnaval deste ano, o Bloco Mambembe (com esse nome) estreou em 2023, formado por ex-integrantes do Coletivo As Travestidas, Mulher Barbada (Rodrigo Ferrera) e Deydianne Piaf (Denis Lacerda). Entre 2017 e 2020, o grupo tocou o Bloco das Travestidas promovendo espaço para a juventude LGBTQIA+.  

Para Mulher Barbada, o retorno era um caminho natural, dessa vez com o nome Mambembe, casa de festa na Praia de Iracema que fechou durante a pandemia. “Usar o nome também pra evocar essa casa que foi o começo do Bloco das Travestidas, onde começamos a fazer carnaval”. 

Por isso, a artista pontua que tem sido um Carnaval de fortes emoções, de reviver lugares, explorar novos espaços e ocupações. 

“O fato de voltar depois de dois anos só reitera a importância desse evento pra cultura brasileira, como é importante ter essa festa na rua, pra extravasar nossos desejos, esse encontro na rua, viver fora do cotidiano. A emoção tá à flor da pele tanto em cima do palco, quanto fora dele. A galera tá indo com sangue nos olhos pra cantar, curtir junto, tá sendo massa ver a galera vibrar com esse recomeço”.  
Mulher Barbada
cantora

A cantora ainda avalia que o pré-Carnaval ganhou mais identidade ao longo dos últimos anos, o que ainda está se encaminhando para o período momino. “Não acho que estamos fora desse caminho, apesar dos percalços, nós artistas temos colocado cada vez mais trabalhos de qualidade, vontade de produzir festas independentes, trazer inovações. Isso não depende só da prefeitura, a cidade se desenha pra isso”.  

Fortalecimento do Carnaval  

É quase um consenso entre os carnavalescos de que é preciso mais apoio do poder público para a realização da festa. Tanto Teonildo quanto Marcos argumentam sobre a necessidade de haver um espaço específico para os desfiles das agremiações, como um Sambódromo. “Esse espaço não seria só pro Carnaval, seria pro São João e outras festividades”, afirma Marcos.  

“Tem muitas árvores no canteiro da Domingos Olímpio, muitas lojas comerciais, não podemos colocar os carros alegóricos nas ruas, porque é passagem dos ônibus. No sábado, não dá pra estacionar nas calçadas porque as lojas comerciais ainda funcionam. Fora a questão do asfalto”, detalha Teonildo.  

Sem um espaço específico, eles reivindicam, pelo menos, a possibilidade de os desfiles acontecerem em outra avenida, como a José Jatahy.  

Para que o Carnaval se fortaleça, é preciso um maior diálogo da Prefeitura. “É importante fazer uma avaliação com os blocos de rua, principalmente, o conhecimento tá com quem faz o carnaval todo ano. Abrir essa conversa de diálogo permite que você conheça melhor as demandas, os problemas, os formatos que podem ser aplicados”, diz Mateus. 

Redesenho dos polos  

A questão do espaço também é apontada por Mateus, que afirma ser necessário um redesenho dos polos para os próximos anos. “Sinto falta de ter um circuito melhor entre os polos, porque ficaram meio isolados.  A Gentilândia, por exemplo, tá pequena pra quantidade de atrações que se apresentaram. É ótimo ter a lotação, mas precisa ter uma estrutura, a redistribuição de espaços, de circuitos”.  

O entorno dos espaços também precisa ter mais estrutura, bloqueios para garantir a segurança da população nas locomoções, de acordo com o vocalista do Luxo da Aldeia.  Além disso, a descentralização permite que o evento se torne cada mais democrático.  

“É importante analisar os polos que podem retomar, continuar, como se descentralizar. O polo do Largo dos Tremembés findou por exemplo. Tem que retomar esse movimento, não estamos longe de se tornar um Carnaval grande no Brasil, mas é importante repensar certas coisas para além de uma festa, como algo parte de uma sociedade”, finaliza Mulher Barbada.