Ninguém desaprende a pular Carnaval: foliões vivem as ruas de Fortaleza como se fosse a primeira vez

Guardadas por dois anos, emoções extravasam em novos encontros e sentimentos, consolidando o que talvez seja o maior Carnaval de todas as épocas

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Foliões descobrem de novo o Carnaval: então era esse o som da cidade vibrando? Era essa a textura da risada e do grito?
Foto: Thiago Gadelha

Ninguém desaprende a pular Carnaval. A gente sabe disso, só não tinha colocado em palavras. Ou experimentado a sensação do reencontro com a primeira vez. Ninguém desaprende a pular Carnaval assim como não desaprende a andar de bicicleta, nadar, dirigir. Essas coisas ficam no peito, guardadas, querendo espaço e oportunidade – para então surgirem limpas e coloridas, prontas para fazer barulho. Esse momento chegou. De novo.

Depois da peste, do choro e da perda, está todo mundo em ritmo de descoberta no primeiro Carnaval pós-Covid 19. Então era esse o som da cidade vibrando? Era essa a textura da risada e do grito? Eram esses os lugares tristes de Fortaleza, melancólicos pela lembrança do que já houve? Olhem só para o Benfica. Era a Praça da Gentilândia a mesma praça sem gente dançando, beijando e brindando a vida? Ninguém desaprende a pular Carnaval.

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A magia é bandeira desde o caminho. O pai de mãos dadas com o filho fantasiado de Homem-Aranha. Serelepes. Um jovem coberto de goma na esquina de casa. Vai para a folia assim mesmo, vestindo essa pele. Aquele som de passos chegando, turmas descendo pra multidão, duplas compartilhando isopor. Um cara saltitando feito criança na calçada, mulher segurando a porta do banheiro químico para a amiga, balões em formato de coração.

Em cima do palco, tardinha caindo, a banda Couros e Metais começa: “Hoje sou feliz e canto”. Quem está embaixo, emenda: “Só por causa de você”. Lágrimas. Ai que saudade disso! “Agora a gente vai liberar o que estava guardado, colocar pra fora em fantasia”, diz a psicóloga Priscila Campos, 40. Conversa com a gente ao lado do marido, o professor João Paulo Bandeira, 43. Estão de Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau. Tiraram a poeira.

Legenda: Era a Praça da Gentilândia a mesma praça sem gente dançando, beijando e brindando a vida?
Foto: Thiago Gadelha

“Isso aqui, esse movimento todo, é uma forma de protesto alegre, uma maneira de continuar vivendo. É o que a morte nos ensina: fazer essa vida valer a pena”, Priscila fala de um lado. “O Carnaval nessa sociedade tão separada diz pra gente que o reencontro é importante. Temos nossas diferenças, mas esse é o momento de brincar, pular, celebrar e cuidar uns dos outros”, João Paulo completa. Diversão também é cuidado. Liberdade.

Perto dali, o ambulante está feliz também. Chama-se Marcos Santos, 59, e desde 2015 – exceto os dois anos de silêncio – vende bebidas no mesmo cantinho da Gentilândia. Voltou a ocupar e faturar. “As vendas tão além do esperado. E tá todo mundo em harmonia, celebrando, sem confusão. Acho que o Carnaval é isso, não estar além do limite”. Acima dele, a placa enorme: três cervejas por R$15, duas por R$12, vinho a R$10, caipirinha a R$5. Em alguma hora, terá uma filinha para comprar, ele aposta. Não duvidamos.

Até lá, distante do palco, uma roda de capoeira festeja a tradição. Estandartes levantados, uma beleza. A mãe ginga com o filho no colo, “esse já nasceu com carne de Carnaval”. O pai diz pra menininha que aquele será apenas o primeiro dos muitos bailes dela. Nos bastidores dos shows, mais declarações apaixonadas. Vera Ribeiro, da já citada “Couros e Metais”, dispara: “É uma energia diferente de qualquer outro Carnaval, e a multidão responde. Ainda tô toda arrepiada. Cheguei a chorar. Ainda bem que os óculos disfarçaram”.

Legenda: Protesto alegre, maneira de continuar vivendo; é o que a morte nos ensina: fazer essa vida valer a pena
Foto: Thiago Gadelha

Na sequência, quem vai subir ao palco é o Luxo da Aldeia, e Mateus Perdigão, um dos integrantes do bloco, olha com ternura para os degraus em direção ao palco. “Só quem está aqui hoje tem dimensão da sensação. Vamos celebrar a memória dos que já não estão, e festejar a cultura fortalezense e brasileira. A ideia é não ver ninguém parado”. O grande Tarcísio Sardinha, uma das vítimas do vírus, é recordado. Reverência coletiva.

E então, minutinhos depois, Mateus canta em uníssono com o público: “A flor do desejo e do maracujá (Eu também quero beijar)”. É lindo. Ninguém desaprende a pular Carnaval.

Sem temer o sentir

A senhorinha agarrada na grade – olhos faiscando aguardando a nova atração – não desaprende a pular Carnaval. Ivanilde Rodrigues, 72, é professora aposentada e foliã fiel. “Nunca perdi um ano de folia, só naquele tempo doido. Meu marido se foi com a pandemia, mas eu estou aqui, dançando por mim e por ele. Não tem nada igual ao que a gente vive nessa época”. Solta essa, e vai andando em direção às amigas, todas com mais de 70. Juventude.

Agora estamos na Mocinha, outra concentração de povo e confete, purpurina e adereço. Turmas reunidas. Germana Moreira Barroso, 45, há mais de uma década vem com a família para o ensejo. “Trago até meu bebezinho, não tem como descrever”, situa, enquanto, ao fundo, alguém grita: “Me deu até dor de barriga voltar ao Carnaval”. 

Legenda: Ivanilde Rodrigues, 72: "Meu marido se foi com a pandemia, mas eu estou aqui, dançando por mim e por ele"
Foto: Thiago Gadelha

A turma cai na gargalhada. Alguém pede desculpa por ter esbarrado em outro alguém. O perdão é concedido com carinho no ombro. Ninguém desaprende a pular Carnaval.

E o axé dos anos 2000 vai controlando os sentidos, deixando ninguém encostado. Forró das antigas também. Genilson Marques, 76, contudo, espera. Está concentrado para iniciar o show. É guitarrista do bloco “Num Ispaia Sinão Ienche”. Ama o que faz, e a data em que faz. “Toco há cinco anos nesse bloco. Sem o Carnaval, foi cruel. Então é bom voltar. Tô feliz”.

A noite vai anunciando nuvem, o céu parece fechar. Faz aquele calor-abraço e ninguém se abana. É tempo de outros braços. Não tem cansaço quando as mãos pedem colo, o espírito esperneia carinho. Italo Bruno, neto de dona Mocinha – quem originou o bar homônimo, falecida em 2010 – entende isso de a alma querer consolo e novo divertimento. A Covid quase levou o pai, Raulino, o mesmo que agora está atrás do caixa, rosto seguro.

“Voltamos com força total. Acho que o pessoal retornou com mais sede de beber e comer. É tudo ao dobro, tivemos que dobrar os funcionários de tanta coisa que o povo tá consumido”. Você lembra, não lembra? Ninguém desaprende a pular Carnaval.

Legenda: Faz aquele calor-abraço, mas ninguém se abana; é tempo de outros braços
Foto: Thiago Gadelha

Nem mesmo quem não aprendeu a pular ainda. O funcionário de setor administrativo, Marcos Guilherme, 24, nunca curtiu axé, brincadeira, gandaia na época momina. Primeira vez neste ano, e foi direto para o Mercado dos Pinhões. Aprendeu com o amigo ao lado a frase-lema após a praga: “Só se vive uma vez”

“Agora, até pra Aracati com ele eu vou”, conta. Está com uma placa no pescoço – “Se quiser me beijar, me avisa. Sou lerdo”. Parece-me que a noite rendeu. Só se vive uma vez.

Nelson Rodrigues (1912-1980), em crônica de 1967 sobre o Carnaval de 1919 – o Carnaval depois da gripe espanhola – escreveu: “Aquele carnaval foi também, e sobretudo, uma vingança dos mortos mal vestidos, mal chorados e, por fim, mal enterrados”. Em cima de um dos palcos do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza, uma espécie de menestrel diz: “Esse é o maior Carnaval de todas as épocas de Fortaleza”. 

E se ainda há burburinho no ouvido, glitter no rosto e desejo de não ir embora, é porque estamos entre esses dois limites, sempre eles: a morte e a vida. No meio, um faraônico espetáculo onde tudo cabe, principalmente quando um dia a gente viu tudo dizendo “não”. Esse é novamente nosso sim, como se fosse a primeira vez. Que seja convicto. Que seja festivo. Ninguém desaprende a pular Carnaval.

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