Cadê os cortejos de blocos pelas ruas de Fortaleza? O desafio de fazer folia no meio do povo
Artistas e organizadores de agremiações carnavalescas refletem sobre realidade de cortejos que parecem ter sumido da paisagem da Capital; será que esse panorama persiste?
“Lá vem o cortejo!”, era fácil escutar nas ruas. Gente na calçada, na varanda dos prédios, esperando o baile passar. E, quando ele passava, era só festa. Música alta, cores vibrantes, povo fantasiado. Não tinha saída: o embalo carregava mais gente, ritmo frenético e mágico pela cidade. Tem pouco tempo, Fortaleza vivenciava esse tipo de Carnaval, tão tradicional quanto itinerante. E hoje? Cadê os cortejos de blocos pelos endereços da Capital?
Para Alan Morais, eles ainda existem, embora repletos de desafios para acontecer. A agremiação da qual o DJ, cantor e compositor cearense participava é exemplo claro. O Sanatório Geral encerrou as atividades em 2016 depois de quase uma década pulsando euforia e cultura nas ruas do Benfica. “Começamos em 2007 como um bloco de pré-carnaval, estimulado pelos editais da gestão Luizianne Lins; a partir de 2009, viramos bloco”, lembra.
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“Desde que encerramos, as mesmas pessoas envolvidas resolveram fazer blocos de ano único, ou seja, realizados apenas naquele carnaval específico e mudando de nome – com outras homenagens e criatividades”. Assim surgiram o Ménage a Troi e o Solto na Buraqueira. Este último, inclusive, sairá neste ano, no domingo de Carnaval, às 10h.
O itinerário será o mesmo da época do Sanatório, ou seja, contornando os logradouros do Benfica, com exceção da passagem pela Praça da Gentilândia – reservada para apresentações do Ciclo Carnavalesco da Prefeitura de Fortaleza. Mesmo com a agenda certa para acontecer, Alan não deixa de refletir sobre os desafios de fazer e manter um bloco nesses moldes.
“A dificuldade inicial é de produção e logística. Já está todo mundo acostumado a fazer um bloco parado mesmo, coisa que é muito prática – você coloca um palco, e o Carnaval começa e termina a partir de um show com repertório carnavalesco. Ou então um Carnaval parado baseado em paredões, que, graças a Deus, desapareceram. No tempo que fazíamos os cortejos, todo ano solicitávamos efetivo policial e de trânsito, além da complicação em espalhar banheiros químicos pelo percurso e do desrespeito dos ambulantes”.
Segundo ele, tudo o que era iniciativa popular acabou se tornando “coisa de gestão do poder público” nos últimos anos. “Fazem um palco e vira um verdadeiro festival. Não há identidade, os estandartes ficaram todos dispersos, como se fosse um festival de música. De uma a duas horas fica tocando uma banda, chamada de bloco ‘tal’, descaracterizando a palavra ‘bloco’. Todo mundo tem o direito de fazer o bloco do jeito que quiser, separado ou andando. O problema é que isso não faz jus ao nome. Desvirtuou”.
Em resumo, visualizando os 15 anos de atuação junto ao Carnaval de rua de Fortaleza, para o brincante não há apoio do poder público para iniciativas assim – uma vez que, nas palavras dele, “eles não sabem como apoiar, e, quando sabem, não mandam o efetivo”. “A magia de fazer um bloco desse tipo, de iniciativa da própria comunidade, é a sensação de pertencimento. Apesar das dificuldades, é como se dialoga com a História e com a cidade”.
Percurso curto, resistência certa
O Verso conversou com outros três blocos que costumam fazer cortejos na Capital. Todos compartilham da mesma opinião: são muitas as complicações diante da extrema vontade de fazer. Maurição Lima tem 59 anos de idade e mais de 50 de carnaval. Bancário aposentado e jornalista, dá dimensão do bloco É Só Isso Mesmo.
Neste Carnaval, a agremiação – surgida em 2017 por meio de uma turma que frequentava os bares Serpentina e Alpendre – sairá em um único dia: na segunda-feira (20), às 14h, a partir da Rua Princesa Isabel, 1968, divisa do Benfica com o Otávio Bonfim.
“Faremos um circuito de apenas 800 metros nas ruas do entorno, sempre se preocupando em não cruzar grandes avenidas nem interferir no itinerário dos ônibus, utilizando apenas ruas de tráfego menos intenso”, detalha o brincante.
O bloco mudou praticamente tudo em relação aos anos anteriores. Na última vez que saíram – domingo de Carnaval de 2020 – o É Só Isso Mesmo ficou gigante, reunindo mais de 1.500 pessoas, sem, contudo, ter estrutura para isso. Resultado: os dois bares que abrigavam a festa desistiram de sediar o bloco.
“Então, neste ano, saímos do circuito que havíamos criado, percorrendo ruas da Aldeota, para uma área menos movimentada, apesar de ser na região do Benfica. Estava grande demais e a gente optou por recomeçar bem menor”, situa Maurição.
“A principal dificuldade é de ordem financeira, o mesmo problema que aflige todo o setor cultural. Nós não participamos do edital da Prefeitura. Ainda bem, né, porque o pessoal que foi selecionado ainda não recebeu e está todo mundo fazendo as atividades fiado, devendo no cartão de crédito”.
Conforme o jornalista, apesar de o Carnaval ser a maior festa popular do País, há um desafio enorme de conseguir patrocinadores privados. O próprio Maurição fez várias ligações para empresas privadas e elas quase nunca abriram portas. As que toparam estampam as camisetas.
“Neste ano, com medo das contas, fizemos apenas 105 blusas – vendemos 100 e cinco ficaram com os músicos da banda. Passamos o chapéu entre os amigos e conseguimos realizar três saídas do bloco. Além do cachê dos músicos, o maior custo é de banheiros químicos. As empresas estão cobrando de R$250 a R$500 a diária, por unidade. Você aluga quatro banheiros e tem que ter R$2 mil só pra isso. Sempre sobra um prejuízo”.
Sendo um dos poucos blocos que ainda faz cortejo na Capital, mesmo com curto percurso, o É Só Isso Mesmo resiste enquanto continua bailando. “A vida curta vem dessa dificuldade. O pessoal que coordena aguenta dois ou três anos de prejuízo e depois desiste, uma vez que as contas dificilmente fecham – pelo menos para nós. Ao mesmo tempo, em todos os cortejos que fazemos o que mais me emociona são as crianças e alguns foliões e foliãs de idade avançada. Ao ouvir os acordes do bloco, eles correm para a calçada e se emocionam com o desfile. Muitos deles agradecem a nossa passagem, pois é o único carnaval que verão ao vivo naquele ano. São emoções como essa que me levam a sempre escolher blocos que andam”.
Dar novo sentido
Por sinal, você lembra do Iracema Bode Beat? Como esquecer, não é? Também iniciado em 2017, neste ano o bloco tentará levar a mesma energia dos cortejos realizados a partir daquela estreia para espaços como o Moto Libre, no sábado (18); o Tempero do Mangue, no domingo (19); e o Jamrock, também no domingo. “Alguns lugares permitem que a gente tenha personagens durante o show; alguns, não. Mas a gente não pode morrer a chama desse Carnaval revolucionário, transgressor, que é ponte para o amor e para a diversidade”.
A fala é de Daniel Groove, músico e compositor cearense, integrante e um dos idealizadores da agremiação. Ele situa que o bloco fez sete shows de pré-carnaval e permanecerá pulsando, apesar de algumas limitações. “A gente ainda pede um carnaval de responsabilidade para com as pessoas, escolhendo tocar nos lugares que sabemos ter gente compromissada com o outro e que valoriza essa energia do Carnaval”. Ou seja: apesar de atuar na cena carnavalesca de 2023, o tradicional cortejo que saía antes pelas ruas dará lugar a espetáculos mais compactos.
Bem distante da pandemia de Covid-19, o Iracema Bode Beat saía no domingo de Carnaval – da Praia dos Crushs em direção ao Dragão do Mar. Lá, o bloco se apresentava na Praça Verde ou em algum lugar próximo, e a festa acontecia. No percurso, uma ode a personagens lendários da cultura cearense, a exemplo de Iracema e do Bode Ioiô. A organização do cortejo ficava por conta de Xauí Peixoto e Tauí Castro; os shows, por Daniel Groove e Nayra Costa.
“A gente sempre está tentando trazer esses símbolos da cidade de Fortaleza e do Ceará como um todo pro nosso carnaval. Mas ainda não conseguimos normalizar nosso processo. Estamos em busca disso. Inclusive, o público pode esperar porque preparamos uma surpresa pro pós-carnaval com relação ao cortejo, como todo mundo gosta de fazer”, adianta Groove, igualmente situando os desafios de logística para realizar algo desse porte.
“Quando iniciamos, movimentávamos pelo menos uns 50 artistas juntos. A organização é muito complicada de fazer, mas é bastante gratificante quando se faz com profissionalismo. E a gente sempre conseguiu entregar pra Fortaleza algo bacana. Esperamos voltar a conseguir fazer do jeito que a gente fazia – ressignificando tudo de um jeito íntegro”.
Ex-integrante da agremiação, Tauí Castro complementa a fala de Daniel ao recordar do hiato do bloco devido à pandemia de Covid-19 e das questões que passaram a ter maior força naquele momento.
“O bloco foi formado por quatro pessoas, e tinha a ideia de ser resistência enquanto bloco de rua. Tínhamos acabado de perder o Sanatório Geral por motivos de questões internas da agremiação, e montamos esse que tinha como enredo o casamento da índia Iracema – vivida pela atriz trans Yasmin Shiran – e o Bode Ioiô (Evan Teixeira). Sempre tivemos o desafio de fazer isso acontecer com recurso muito limitado. Acho que o ponto principal talvez seja esse, a limitação de verba pública pra organizar uma festa tão grande. No primeiro ano, colocamos na rua umas quatro mil pessoas; no segundo, foi praticamente o dobro”.
Será que é nesse ajuntamento de gente e alegria que mora o encanto dos cortejos? “É nessa narrativa que justifica todo o encantamento de várias gerações juntas, caminhando atrás de um bloco tocando de Fela Kuti a Caetano Veloso, com improvisos passeando por Villa-Lobos. Era muita coisa junta, muita energia reunida. E simbora que ano que vem tem coisa nova na rua. Adianto bloco novo e cortejo. Não se preocupem”.
Vai ter fanfarra
A promessa talvez já comece a ser cumprida com blocos feito o Farra Jangada. Será a primeira vez que o grupo se apresentará na Capital – tocarão em evento particular nos três primeiros dias e pretendem fazer um cortejo saindo da Praça da Gentilândia na terça-feira de Carnaval, às 17h. “Mas vamos confirmar no nosso Instagram”, adianta Juliana Eva.
A cantora e instrumentista explica que a Farra foi idealizada pelo músico Fernando Lélis ao perceber uma carência do movimento de fanfarras carnavalescas na cidade. Assim, ele reuniu diversas pessoas, músicos ou não, que tocam instrumentos de sopro para construir um repertório coletivamente, com ensaios semanais.
“Temos três objetivos principais. Ocupar os espaços públicos com arte, também se fazendo presente em lugares de ativismo e resistência popular; ser um lugar de prática instrumental coletiva; e estimular a cultura de fanfarras carnavalescas em Fortaleza. Queremos crescer ao ponto de que os integrantes criem seus próprios blocos e prossigam ocupando mais ainda as ruas. Nosso sonho é que isso vire um círculo vicioso mesmo”.
Não à toa, a ideia para o bloco e a convocação das pessoas para tocar começou no primeiro semestre de 2021, em plena pandemia. O primeiro ensaio, contudo, só veio acontecer em setembro daquele mesmo ano, tendo janeiro de 2022 representado o ápice dessa dinâmica. Nesse período, os integrantes foram estimulados com o convite para realizar os primeiros cortejos, no Poço da Draga e depois nas ruas do Centro, junto ao Iracema Bode Beat, em alusão aos 100 anos do Bode Ioiô.
“De lá pra cá, saímos no Bar da Árvore; no Projeto Sol Tu Som, em parceria com o Bloco Pra Quem Gosta é Bom; e também dois cortejos independentes na Praia do Poço da Draga”, enumera Juliana. “Tratando-se de um bloco itinerante, existe necessidade de planejamento com relação ao trânsito, segurança e sinalização ao longo do percurso. Além disso, é importante existir algum tipo de apoio no local aos músicos, e sempre tem outras funções mais tradicionais, como a pessoa que passa o chapéu e a que carrega o estandarte”.
Infelizmente, o bloco ainda não tem nada disso e, por esse motivo, até agora só se arriscaram a fazer cortejos independentes na praia do Poço da Draga. Para além desses pontos, os desafios são os mesmos de qualquer bloco independente. É preciso, por exemplo, muito mais que pessoas tocando. Fazer arranjos, confeccionar camisas, comandar o caixa, fazer negociações, administrar as redes sociais, escrever projetos, elaborar desenhos, credenciar em editais, enfim, tudo fica nas mãos de pouquíssimas pessoas.
“Pelo que observo, infelizmente essa é a regra dos blocos independentes da cidade”, lamenta a artista. “Organizei um bloco independente por três anos seguidos – o Damas Cortejam – e essa é a primeira vez que estou junto de um bloco itinerante. Comparando as duas experiências, os desafios com a Farra são inclusive bem menores no sentido técnico e burocrático. Um bloco parado requer uma estrutura de estúdio para ensaios, som, luz, decoração, iluminação, técnicos, segurança, banheiro, enfim, diversas coisas imprescindíveis no nosso caso. Sempre tem que tirar do próprio bolso”.
Sobretudo porque fanfarra é uma manifestação na qual instrumentos de sopro e percussão não precisam de nenhum equipamento para se fazerem ouvir. O desafio em realizar um cortejo, assim, fica na conta da necessidade de contar com um número particular de pessoas e, por isso, não é possível fazer cortejos com tanta regularidade – seja para conciliar as agendas, seja para garantir cachê digno para todos.
“Não concordo que há carência de cortejos. Há muitas manifestações de Cultura Popular que há décadas ocupam as ruas, mas, por diversas razões, não costumam chegar na grande mídia e ao conhecimento das massas. Nesse sentido, essa carência de cortejos não existe: elas somente acontecem nas periferias, onde a visibilidade não as alcança. E disso resulta um desconhecimento por parte da população a respeito da Cultura do seu próprio lugar”, avalia a brincante.
Ela também defende haver uma cultura carnavalesca ainda em construção na Capital. Nesse processo, a opinião de Juliana é a necessidade de desenvolver e amadurecer uma prática de envolvimento do público com a realização do bloco. “As pessoas que aproveitam dificilmente entendem que tem alguém investindo muito por conta própria para aquilo acontecer. Acredite, sempre há trabalho a ser feito. Quem vê o bloco sair acha tudo muito lindo. E é! Mas cansativo à altura. Portanto o nível de apoio precisa ser da mesma magnitude, tanto da coletividade quanto das políticas públicas”.
Serviço
Cortejos de blocos pelas ruas de Fortaleza
Bloco Solto na Buraqueira: neste domingo (20), de 10h às 14h, saindo do Bar da Lúcia (Rua Adolfo Hebster, 355, Benfica)
Bloco É Só Isso Mesmo: nesta segunda-feira (20), às 14h, a partir da Rua Princesa Isabel, 1968, divisa do Benfica com o Otávio Bonfim
Bode Beat: neste sábado (18), às 0h30, no Moto Libre Bar (Av. Monsenhor Tabosa, 299 - Praia de Iracema); domingo (20), a partir das 15h, no Tempero do Mangue (R. Valdir Bezerra, 100 - Sabiaguaba); segunda (20), a partir das 21h30, no Jamrock (R. dos Tabajaras, 402 - Praia de Iracema)
Fanfa Jangada: tocarão em evento particular nos três primeiros dias de Carnaval e pretendem fazer um cortejo saindo da Praça da Gentilândia na terça-feira (21), às 17h (confirmação pelo instagram do bloco)