Alvo de 'meme' com Caetano Veloso, jornalista Geraldo Mayrink tem obra homenageada em site
Produção do jornalista e escritor é reunida em plataforma digital gratuita. Acesso permite um precioso recorte da produção jornalística brasileira voltada ao setor cultural
O jornalista operário. Exausto da rotina por detrás das teclas. Sem hora certa de voltar para casa e ocupado demais nos fins de semana. Geraldo Mayrink (1942-2009) foi destes. Por mais de meio século testemunhou acontecimentos únicos da cultura nacional e estrangeira. Assinando reportagens, entrevistas, ensaios e críticas capturou a essência do tempo no qual produziu e viveu. Agora, finalmente, parte dessa jornada está acessível ao público.
Gratuita, plataforma online organizada pelo filho do escritor e jornalista reúne essa produção. Gustavo Mayrink encarou a missão de desbravar os arquivos deixados pelo pai. Selecionou 35 textos para uma leva inicial. "Primeira temporada", como identifica o herdeiro.
“São 50 anos de produção jornalística em alto nível. Aquilo não me repercutia datado ou notícia velha. Soava com uma narrativa, uma história muito bem contada sobre variados assuntos”, detalha o familiar.
A ideia de promover este material era realidade antes mesmo do falecimento do comunicador. À época, ambos conversaram em torno da hipótese de livro e até um documentário. Mayrink parte em 2009 e os planos embrionários precisaram esperar. Coincidências do destino. Algum par de meses depois, a trajetória do mineiro cruzou-se com os holofotes das redes sociais. Nem tanto por motivos jornalísticos. Em parte, diga-se.
Caetano pistola
Em 2012, um vídeo de Caetano Veloso dos anos 1970 caiu no gosto das novas gerações. Nascia naquele instante o "meme" do “Como você é burro!”. No trecho viralizado, o baiano dispara enxofre contra o entrevistador. Poucos sabem (ou prefeririam focar na engraçada reação), mas a pergunta responsável por tirar o tropicalista do sério foi feita por Geraldo Mayrink.
O confronto ocorreu no programa Vox Populi, da TV Cultura. Era 1978. Ácido e incisivo, Mayrink questionou a relação de Caê com a imprensa daquele momento.
“Caetano, quem são verdadeiramente seus inimigos? O que você anda fazendo? Por que você fala tanto em patrulha? E fala também de rádio patrulha, no sentido estrito do termo? Você não acha que seria mais ético se servir dos meios de comunicação de massa para falar mal dos meios de comunicação de massa, em vez de encomendar um anúncio para a multinacional para a qual você trabalha e pagar como anúncio o 'Caetano Veloso', ou você acha que a imprensa, de acordo com o governo, é feita para elogiar e só?“, apontou.
Furiosa, a defesa de Caetano imortalizou-se na era da banda larga. No entanto, o episódio pouco arranha a superfície da prolífica escrita de Mayrink. Com o site disponibilizado em novembro último, os leitores adentram um território generoso do jornalismo dedicado à cultura. De burro, nada tem o sujeito.
Mayrink era natural de Juiz de Fora (MG). Integrou algumas das principais redações do País. Do semanário Binômio (fechado pelo regime militar em 1964) correu Diário de Minas, O Globo, Jornal do Brasil, Manchete, Veja, Isto É, Playboy, Correio Braziliense, Revista Goodyear, O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Época e Diário do Comércio. A plataforma, aponta o curador, será constantemente atualizada. Mais de 900 artigos continuam guardados.
Você aconselharia alguém a ser jornalista?
Para Gustavo, a labuta de escolher os textos foi nada fácil. Como extrair de uma papelada quase infinita os melhores trabalhos? Outro obstáculo em jogo é a proximidade afetiva com o acervo. “Mexeu com a memória, afeto, saudade. Quando você consegue passar essa barreira, o luto vira orgulho. A saudade vira homenagem. Fora o privilégio de ser meio que o ‘editor’ desse material todo”, confessa.
Sem patrocínio e com o apoio de amigos, o site/homenagem tornou-se realidade. Cinema, literatura, música, política. Nada escapou à caneta de Mayrink entre 1960 e 2009. A página oficial contabiliza reportagens, crônicas, ensaios, entrevistas e perfis. Mané Garrincha (1933-1983), Elis Regina (1945-1982), Glauber Rocha (1939-1981), Chico Buarque, Rita Lee, Jorge Amado (1912-2001). Há espaço para outras sumidades, como Federico Fellini (1920-1993) e Frank Sinatra (1915-1998).
Tem o Carnaval de Joãosinho Trinta (1933-2011) e a Nova York de Martin Scorsese em "Taxi Driver" (1976). Mayrink debulhou comportamentos e expressões sociais de distintas décadas. Para o filho, o jornalista captou nas entrelinhas os muitos brasis que precisou lidar.
Consta a efervescência cultural dos anos 1960, personificada à sombra dos anos Juscelino Kubitschek (1902-1976). Contempla os anos 1970, já sob a escuridão da Ditadura Militar. Um mergulho, garante o idealizador do projeto, também na memória gráfica do jornalismo feito no Sudeste.
Embora tenha crescido no meio, Gustavo decidiu por não seguir os mesmos passos profissionais do genitor. É escritor e publicitário.
"Eu ia para escola sexta-feira pela manhã e ele não tinha voltado do 'fechamento' de quinta à noite. Fim de semana, passava boa parte no escritório teclando a máquina. De certa forma, isso me afastou de ser um jornalista", descreve.
O jornalista operário. Exausto da rotina por detrás das teclas. Sem hora certa de voltar para casa e ocupado demais nos fins de semana...
“A geração do meu pai não soube se preparar para o futuro. O da profissão, principalmente. Eles achavam que manteriam aquele nível de vida do auge dos anos 1970 e 1980. Era uma profissão muito mais prestigiada e valorizada. O trabalho foi mudando", descreve o organizador.
Um dado salta aos olhos. Geraldo Mayrink guardou cada texto publicado nos mais de 50 anos em que atuou. Toda uma vida dedicada ao ofício, protegida em pastas. Todos os originais, afirme-se. Algumas dessas publicações saíram de circulação e nem a internet detém esta memória do jornalismo cultural brasileiro.
A iniciativa construída por Gustavo propõe mudar esse destino. Que venham outras temporadas de Mayrink.
Diante da efemeridade do jornal, do papel, pergunto a Gustavo o que levou o pai a guardar com tanta devoção este acervo. “É uma vingança silenciosa e profética”, compartilhou o filho.