‘A leitura liberta’: Paulo Freire influencia pedagoga que trabalha com pessoas privadas de liberdade
Ana Cristina Borges Nogueira é integrante do projeto “Livro Aberto”, o qual se vale da literatura como meio para ressocializar e reduzir a pena de internos
Ainda há contentamento neste mundo louco. Ainda há emoção capaz de transbordar. A de Ana Cristina Borges Nogueira, 52, reside em folhas de papel. Na pequena sala onde trabalha, pertencente à Escola de Ensino Fundamental e Médio Aloísio Léo Arlindo Lorscheider, em Itaitinga (Região Metropolitana de Fortaleza), o mundo ganha contornos diferentes. É quando ela se depara com o componente mais forte da leitura: a capacidade de libertar.
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Após longa dedicação em escolas de Fortaleza e, mais recentemente, em unidades prisionais como professora de Educação de Jovens e Adultos (EJA), há dois anos ela integra o projeto “Livro Aberto”.
A iniciativa do Governo do Ceará – desenvolvida pela Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), em parceria com a Secretaria da Educação (Seduc) – incentiva a leitura como caminho para ressocializar e reduzir a pena de internos. A missão de Ana Cristina é corrigir as redações desenvolvidas pelos detentos, com base em critérios específicos. Caso seja aprovado, há a chance de o apenado passar menos tempo entre as grades.
Diante de um contexto tão desafiador – e repleto de possibilidades – são os ensinamentos germinados pelo educador e filósofo Paulo Freire (1921-1997) os responsáveis por fazer com que essa dinâmica alicerce melhores horizontes. Segundo Ana, as bases lançadas pelo pernambucano, um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial e cujo centenário de nascimento celebramos neste domingo (19), pautam o olhar dela na tarefa que executa.
“Paulo Freire é o mentor da educação para a consciência. Logo, quando ele fala que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou construção, isso é muito importante, já que esse é o contexto da educação libertadora. Nela, o educando se torna o sujeito da história, numa relação horizontal com o educador”, situa.
Como funciona o projeto
Com a pedagoga, outros quatro professores participam do projeto “Livro Aberto”. Cada um recebe textos provenientes de duas unidades prisionais do Ceará. Para Ana Cristina, chegam as redações escritas por detentos lotados no Instituto Penal Professor Olavo Oliveira II (IPPOO II) e na Unidade Prisional Agente Luciano Andrade Lima (CPPL 1).
Os internos que aderem à iniciativa da leitura ficam de 21 a 30 dias com as obras – abarcando desde clássicos até tratados científicos ou filosóficos. Os livros são previamente selecionados por uma comissão de remição de pena, de modo que sejam escolhidos livremente pelo público ao qual se destinam. Ao término do período com o exemplar, há uma prova, intitulada Prova do Livro, em que os detentos recebem uma folha de redação para escrever sobre a narrativa que leram.
“No caso, fica resumo de leitura para quem tem Ensino Fundamental e resenha para quem tem Ensino Médio, Ensino Superior ou pós-graduação. Eu corrijo as duas modalidades”, explica Ana Cristina.
Existe um limite de leitura: cada interno pode conferir até 12 livros por ano, uma vez que, caso aprovado na avaliação – mediante nota igual ou superior a 6 – é reduzido em quatro dias o tempo total da pena.
A correção realizada pela alfabetizadora não visa a parte gramatical, mas a análise da obra em si – sobre o que os leitores compreenderam da história, sobre a experiência vivenciada por meio da leitura. É sobretudo a partir desse aspecto que os ecos da profunda ótica de Paulo Freire sobre educação e liberdade ganham mais corpo na visão de Ana Cristina Borges. O momento é propício para que ela procure nomear os gestos de quem está à sua frente por meio de palavras e de tão vastos sentimentos.
“Quando recebo um texto para avaliar, procuro ver a essência, a capacidade de eles explicarem com as próprias palavras o que entenderam. Esse é o ponto mais importante para a correção, a fidedignidade à obra. Eles podem fazer uma ponte entre o livro e a experiência de vida deles, inclusive – sem, porém, fugir do tema”, detalha, sempre amparada, nesse processo, pelo núcleo gestor da escola onde trabalha.
Impressiona para ela a capacidade cognitiva dos detentos. Alguns, conforme conta, são autores de textos belíssimos, dotados de rica linguagem e construção literária. “Ao ler as redações, a gente vê que esses alunos têm potencial, e talvez – por ironia do destino ou por alguma decisão imatura que tomaram na vida – chegaram a ficar privados de liberdade. Mas eu vejo muitas leituras ótimas, muita gente boa”, observa.
Esse vagar maiúsculo pela intimidade dos estudantes estimula uma maior humanização de indivíduos que, na maioria das vezes, são totalmente invisibilizados pela sociedade. Fortalece, assim, o estreitamento com as premissas freirianas, as quais bradam em alto tom: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Entre o metafórico e o literal
As impressões de Ana Cristina Borges sobre o assunto também se projetam numa grande frequência. Para ela, a leitura é libertadora. “Na verdade, parece até redundância dizer educação libertadora, leitura libertadora. Quando falo isso, estou falando no sentido de desenvolvimento, de tirar a ociosidade, de fazer pensar e ser. Porque, no caso dos detentos, quando participam do projeto ‘Livro Aberto’, além de eles conseguirem a liberdade da prisão, estarão em contato com os livros. Essa é também uma veia libertadora. Tudo caminha, assim, entre o plano metafórico e o literal”, compara.
Leitora inveterada de obras como “O Pequeno Príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), e “A cor da ternura”, de Geni Guimarães, a pedagoga – também pós-graduada em Gestão Escolar e Coordenação Pedagógica, e na área de Língua Portuguesa e Literatura – defendeu em 2013, mesmo ano de criação da escola onde hoje está sediada, a monografia intitulada “Construindo a leitura através das letrinhas”.
O trabalho surgiu como resultado de percepções acerca do processo de alfabetização das crianças. “Nele, eu abordava o fazer e a importância da leitura na primeira infância, como desafio e ganho de novos saberes. Nesta última parte, dos saberes, entrava minhas considerações sobre Paulo Freire, uma vez que ele, como alfabetizador, enxergou a relevância da educação, no sentido de ser dos indivíduos”, conta.
Método Paulo Freire
É famosa a metodologia de ensino desenvolvida pelo pernambucano, intitulada Método Paulo Freire, surgida na década de 1960. Tudo aconteceu na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, diante do processo de alfabetização de cortadores de cana. Na época, 300 adultos foram alfabetizados em 45 dias.
O método foi inovador porque Freire não utilizou o sistema de cartilhas para a alfabetização. No lugar de o aluno aprender as letras a partir de sons e letras parecidos, o professor deveria identificar antes o universo vocabular dos estudantes, estabelecendo, a partir daí, outras conexões.
“Foi numa sala de EJA com pessoas privadas de liberdade que comecei a exercer o meu trabalho no segmento que hoje me encontro – sempre com amor e dedicação, estudando, procurando possibilidades para facilitar o aprendizado dos alunos. Alguns não sabiam nem escrever o nome. Passei um ano nisso e gostei demais. Eu amo estar numa sala de aula, essa troca de experiências. Tenho certeza que sempre ganho muito mais do que os estudantes. E tenho convicção de que eles não vêm como uma folha em branco. Trazem algo, algum conhecimento, algo que talvez eu não tenha. Por isso o valor dessa troca”.
Questionada sobre como vai festejar o centenário de Paulo Freire, Ana Cristina Borges imprime na voz aquilo já desenhado no fazer humano. “Direi: viva o alfabetismo, não o analfabetismo! Essa talvez seja uma ideia repetitiva, mas acredito que ainda é preciso muito ver esse lado, o direito das pessoas à leitura, ao conhecimento. Os posicionamentos de Paulo Freire, assim, têm que estar em evidência para que a gente possa promover uma relação entre a educação e a sociedade, sempre nesse intercâmbio. O caminho é difícil, mas nós vamos lutando. Porque existe você e existe eu, e a gente vai se colocando no outro também”.
Projeto “Livro Aberto” e a EEFM Aloísio Leo Arlindo Lorscheider
A Escola de Ensino Fundamental e Médio (EEFM) Aloísio Leo Arlindo Lorscheider é a primeira escola do Ceará criada para atender, exclusivamente, à demanda de educação nos estabelecimentos penais. É também a segunda escola dessa categoria concebida no País.
A oferta de escolarização para unidades prisionais é resultado da parceria entre a Seduc e a SAP. O diferencial dessas unidades escolares é que as salas de aula estão instaladas nas Unidades Prisionais da região Metropolitana de Fortaleza.
Já o projeto de remição pela leitura – no qual está enquadrada a ação “Livro Aberto” – foi instituído pelo Governo do Estado do Ceará em 26 de dezembro de 2014 (lei 15.718), viabilizando a remição da pena dos internos por meio do estudo e do debruçamento sobre obras literárias.