A gostosura urbana da chegadinha
Duas coisas caminham juntas na urbe e são inseparáveis. A chegadinha e seus vendedores. Ao som do triângulo, falamos de nostalgia e adentramos uma expressão popular que ainda resiste na Fortaleza de hoje
A Capital do Ceará nasceu ao redor de um forte. A edificação, pensada estrategicamente para debelar possíveis invasores, projeta nas mentes dos pedestres a perspectiva do impenetrável, do distanciamento. Pertinho de completar 300 anos de existência, Fortaleza acostumou-se ao expediente dos muros entre os viventes. Persiste em boa parte das ruas o serviço prestado pelos vendedores da "chegadinha", também lembrada no dia a dia por "chegadinho" ou ainda "chegadim".
Nas mãos, o triângulo. Nas costas, o tambor metálico responsável por preservar a mercadoria. O uniforme é a roupa cotidiana do corpo. Diariamente, esses andarilhos superam calçadas e asfaltos na disputa pelo desejo da clientela. Atendem gerações distintas. Saciam da curiosidade de crianças e jovens às memórias afetivas de gente já criada. Na missão de garantir o sustento familiar percorrem realidades sociais e geográficas díspares.
A chegadinha é feita essencialmente de água, farinha de trigo, goma e açúcar. Fina e crocante, propicia um leve adocicado na boca. É opção gastronômica intrinsecamente ligada ao finalzinho da tarde. Tem quem prefira fazer dupla com o café. Já os mais aperreados devoram no ruge-ruge da rua. É também um mimo. A chegadinha é comunhão a ligar narrativas de vida de fortalezenses distintos.
Dois profissionais do ramo dividem experiências e situam a importância do quitute enquanto item de sobrevivência familiar. Conhecemos José de Arimatéia Barreto Neto, 40 anos, e Francisco Eranildo Cordeiro, 45. José tem 15 anos de batente com a chegadinha. Já Eranildo orgulha-se das quase três décadas dedicadas ao ofício.
De segunda a sábado (e domingo, caso o apurado não pague a conta), o primeiro parte da fronteira entre o Jereissati 2 e a Pacatuba rumo à região nobre da cidade. É chão. O percurso inclui um ônibus até o Terminal do Siqueira. Ali, toma a linha 030 com destino ao Dionísio Torres. Altura da Assembleia Legislativa, a "Casa do Povo". O trajeto inclui Aldeota, Meireles, Varjota e tem ponto final geralmente na Beira-Mar, na companhia da noite.
No cruzamento da Avenida Padre António Tomaz e rua Cândido Juca, é reconhecido pelos trabalhadores locais. São porteiros, seguranças, manobristas. Naquele espaço, flutua entre os carros, na contramão. Tilinta a melodia aguda do triângulo, repleta de urgência. Um grito ante o asfalto dominado pela agressividade do trânsito. Em casa, esperam-lhe os quatro filhos e a esposa.
Os passos da chegadinha
Aprendeu a lida com o irmão, também vendedor nos dias atuais. Era a chance de driblar o desemprego. O começo foi difícil, "sentia vergonha, não vou mentir", aponta. A impressão inicial foi devidamente resolvida com o correr do tempo. Hoje é orgulho e autonomia. "Tenho contato com as pessoas no meio da rua, é bom demais. É legal ver as crianças pedindo para os pais comprarem", descreve.
Em outros pontos do Nordeste, a chegadinha pode ser "cavaco chinês", "cavaco", "cavaquinho" ou "taboca". No Norte é equivalente ao "cascalho". Em São Paulo e proximidades, é 'beiju" (diferente do "biju", feito de tapioca). No Sul é comum encontrar a "casquinha" sendo comercializada.
As nomenclaturas são detalhadas na dissertação "Doce Som Urbano: O triângulo e as territorializações dos vendedores de chegadinho em Fortaleza", de autoria da pesquisadora, produtora cultural e jornalista, Thais Aragão. Defendido em 2012, o trabalho propõe reflexões em torno do ambiente sonoro da cidade. É leitura obrigatória para compreender aspectos da sociabilidade cearense.
Guerreiro
Eranildo da chegadinha é natural de Itatira e tinha o sonho de morar na Capital. "Nem sabe escrever, o que esse menino vai inventar de fazer em Fortaleza?", escutou da mãe. A arte de vender e preparar o doce veio com o primo. Coincidentemente, a jornada é comentada durante o preparo.
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A pequena fábrica situada no quintal de casa inclui dois fornos feitos de alvenaria, alocados num espaço de 3,67 m de largura por 2, 70 de comprimento. O sorriso é farto até na hora de dividir a temperatura. "Rapaz, né pra todo mundo não. Somando as duas fornalhas dá mais de 500ºC", estima.
O calor propiciado pelo carvão é o menor dos perrengues. Em 27 anos, nunca deixou de produzir chegadinha. Nem no momento mais doloroso, quando estava preso à rotina do alcoolismo. Há sete anos sóbrio, deu a volta por cima. Construiu o lar situado no Sítio São João e vislumbra um horizonte bem mais digno pela frente. "Só tinha uma sandália de dedo e um calção furado quando decidi parar e tive ajuda da minha companheira", resgata.
Eudiclênia Eugênia testemunha o processo produtivo e oferece limonadas. Ambos usam de ternura ao mencionar as filhas Elionara e Edilmara. Elas ajudam o pai a produzir vídeos de divulgação das chegadinhas para o YouTube. "Elas é que sabem de tudo", compartilha orgulhoso. "Uma sonha ser advogada, a outra fala em ser médica", interfere a mãe.
Serviço:
Eranildo da chegadinha
(85) 9 8687.5194
José da chegadinha
(85) 9 8401.6073