Parece, mas não é: produtos similares se multiplicam e confundem consumidores; entenda as diferenças
O Diário do Nordeste visitou seis supermercados e encontrou diversos compostos lácteos para substituir o leite em pó, o creme de leite ou condensado, entre outros
A corrosão do poder de compra provocada pela alta da inflação impulsionou o desenvolvimento de produtos de baixo custo, como os similares. Mas o que era para ser uma adaptação mercadológica, tem virado uma espécie de emboscada para o consumidor.
Com rótulos e formatos análogos aos originais, essas mercadorias ocupam os mesmos espaços nas prateleiras dos supermercados e induzem uma compra inconsciente. Uma contradição, todavia, é o preço estar no mesmo patamar.
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A prática, que não é nova e nem sempre configura uma ilegalidade, tem crescido em meio à crise. Portanto, é necessário atenção a essas diferenças sutis e à conduta das marcas para decidir se quer ou não comprar um artigo similar e saber identificar quando denunciar.
O Diário do Nordeste visitou seis supermercados em Fortaleza e identificou diversos compostos lácteos à venda para substituir o leite em pó, o creme de leite ou condensado.
Outro exemplo é um processado cremoso com aparência de requeijão e uma base vegetal para assemelhar-se ao queijo.
O coordenador do Núcleo de Varejo e Supermercados da Fundação Getulio Vargas (FGV), Ulysses Reis, aponta dois fatores para o aumento dessa oferta.
“De um lado, está a inflação, que ocasionou a redução do poder aquisitivo das pessoas e fez com que crescesse muito a procura por produtos mais baratos, nos últimos três anos. Do outro, algumas empresas estão aprendendo a enganar mais os clientes através de novas fórmulas”, avalia.
Ulysses observa que os dois fatores ocorrem simultaneamente. "Mas, a partir de um certo momento, os consumidores começaram a ficar mais cuidadosos do que antes. O dinheiro diminuiu, as pessoas estão lendo mais o rótulo", explana.
"Só que, no caso dos similares, é diferente, porque são produtos disfarçados e que podem até causar danos à saúde", diz, observando haver 'má-fé' por parte de fabricantes que já entram no mercado com esse objetivo.
Além dos alimentos, exemplifica, também há materiais de limpeza e de higiene que misturam substâncias para deglutir a produtividade. “Por exemplo, coloca-se mais água e elementos que não deveriam estar. Na seção de higiene, tem o xampu que pode ter maior teor de sal”, aponta.
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Ulysses acrescenta que o custo poderia ser indicativo para detectar um similar, mas não é o que ocorre na prática. “A empresa que pretende enganar o consumidor aumenta o preço desses produtos ou coloca no nível normal”, exemplifica.
Dicas para não se enganar na hora da compra
Conforme o especialista, algumas dicas simples são valiosas para evitar cair nessa 'pegadinha'. São elas:
- Nunca faça compra com pressa. Se planeje para ir ao supermercado com tempo suficiente para pesquisar e avaliar os produtos;
- Tenha o hábito de ler as embalagens, veja a composição, as letrinhas e compare com os demais;
- Se for necessário no seu caso, lembre-se de levar os óculos para ler as letras pequenas e não deixar de fazer a checagem;
- Planeje suas compras: faça uma lista do que precisa, mas também das marcas que você conhece. Quando você vir uma marca desconhecida, pesquise sobre ela.
Quando a prática é ilegal?
Os produtos similares são legalmente permitidos desde que esclareçam, no rótulo, qual fórmula utilizam. A questão é que essas informações constam nas letras miúdas da embalagem, além de as mercadorias serem expostas e confeccionadas por algumas marcas para gerar confusão.
A advogada do programa de Alimentação Saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Mariana Gondo, explica serem necessários dispositivos legais para enquadrar as novas práticas do mercado, incluindo normas específicas de rotulagem e de exposição.
“Trata-se de um fenômeno novo que vem crescendo bastante. Portanto, não existem regras específicas sobre como esses produtos devem ser expostos no varejo”, comenta.
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Marina pondera, contudo, que todos os estabelecimentos comerciais têm a obrigação de oferecer o melhor ambiente de compra para o cliente, como a adequação da forma de exposição para evitar enganos.
“Todo o conjunto-imagem do produto pode gerar confusão para o consumidor. Isso inclui toda a estratégia publicitária, desde os elementos das embalagens, como fontes, imagens, símbolos, localização dos textos, até a forma de ser anunciado”, lista.
Ela exemplifica que uma mistura láctea condensada pode ser anunciada como o produto perfeito para fazer um brigadeiro, levando o consumidor a pensar que se trata de um leite condensado.
Segundo a advogada, os alimentos já conhecidos, como o creme de leite e o leite condensado, são regulamentados e devem cumprir requisitos de qualidade relacionados à sua composição (ver abaixo).
“Isso significa que eles devem conter, por exemplo, determinadas quantidades de leite ou de gordura, o que não acontece com a maior parte dos ‘produtos similares’. Muitas vezes, eles são lançados como similares no mercado justamente por não alcançarem os padrões dos regulamentados”, esclarece.
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Quais os direitos do consumidor?
Os consumidores, explica a advogada, estão resguardados pelos artigos 6º e 37 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). São dispositivos legais que estabelecem a proteção contra a publicidade enganosa e determinam informação clara e adequada como direitos básicos.
Ou seja, não basta a informação constar no rótulo se ela estiver em local de difícil acesso ou em letras diminutas. "Precisamos cobrar que regras específicas de rotulagem sejam elaboradas. Contudo, o CDC já proíbe toda e qualquer publicidade que possa causar confusão e induzir o consumidor ao erro", reforça.
"Isso significa que as empresas não podem assemelhar produtos de composições diferentes, fazendo o consumidor comprar algo que, na verdade, não escolheu comprar", conclui.
Quais as diferenças dos similares para os produtos originais?
Os similares, como o próprio nome já indica, são apenas produtos parecidos, mas têm composições diferentes. Por isso, é necessário cautela, sobretudo, para a alimentação de crianças que necessitam de determinados valores nutricionais. Abaixo, especialistas explicam as diferenças e semelhanças entre as categorias.
Qual a diferença entre o composto lácteo, o leite e derivados?
Segundo a pesquisadora Patrícia Blumer, do Centro de Tecnologia de Laticínios e Bactérias Láticas do Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), dos produtos mencionados na reportagem, os que podem ser confundidos pelas similaridades apresentadas em termos de aparência (em pó) são o leite em pó e os compostos lácteos.
O leite em pó, na prática, é obtido por desidratação do leite de vaca integral, desnatado ou parcialmente desnatado apto para alimentação humana, mediante processos tecnologicamente adequados. Ou seja, só pode ter em sua composição o leite como ingrediente obrigatório.
“Para melhor compreensão, se pegarmos um leite em pó desnatado e misturarmos com um prebiótico, que tem benefícios para a microbiota intestinal, não podemos mais chamá-lo de leite em pó: passa a ser um composto lácteo”, diferencia.
A pesquisadora Leila Spadoti, também do Ital, explica que o composto lácteo diferencia-se por ser um alimento em pó resultante da mistura do leite e produtos ou substâncias alimentícias lácteas ou não lácteas, ou ambas, adicionado de ingredientes que também podem ou não ter a lactose.
Segundo o Regulamento Técnico para fixação de Identidade e Qualidade de Composto Lácteo (BRASIL, 1997), destaca, o composto é apto para alimentação mediante processo tecnologicamente adequado.
Entretanto, nesta categoria, os ingredientes lácteos devem representar no mínimo 51% massa/massa (m/m) do total de ingredientes.
“Tanto o leite condensado, o leite em pó, o doce de leite como os compostos lácteos apresentam obrigatoriamente em sua composição o leite ou são obtidos a partir dele (caso do creme de leite)", lista.
"A maioria desses produtos lácteos possui legislação que define quais componentes (matérias-primas ou ingredientes obrigatórios; ingredientes opcionais e aditivos) podem apresentar em sua composição e quais os parâmetros que devem apresentar”, esclarece.
Qual a diferença do composto cremoso para o requeijão?
Patrícia Blumer esclarece que os produtos denominados cremosos com sabor requeijão são obtidos através da fusão de ingredientes lácteos e não lácteos.
Na composição, eles levam: água, amido modificado, gordura vegetal, margarina, cloreto de sódio, concentrado proteico de soro de leite, condimento preparado sabor requeijão, carboximetilcelulose, leite integral e/ou leite integral em pó, estabilizante, conservantes e corantes.
“Contudo, a maioria desses produtos contém teores baixos de proteínas em geral e lácteas, em específico, além de não conterem queijo na sua composição, que é condição para a fabricação de requeijões de todos os tipos e outros queijos fundidos”, observa.
Já o requeijão propriamente dito, conforme Leila Spadoti, é obtido pela junção da massa coalhada, cozida ou não, dessorada e lavada, obtida por coagulação ácida e/ou enzimática do leite, opcionalmente adicionada de creme de leite e/ou manteiga e/ou gordura anidra de leite (butter oil).
“O produto poderá estar adicionado de condimentos, especiarias e/ou outras substâncias alimentícias. A denominação 'requeijão' está reservada ao produto cuja base láctea não contém gordura e/ou proteína de origem não láctea”, diz.
O que são os falsos queijos? Qual a diferença?
Conforme Leila Spadoti, pode-se dizer que um queijo verdadeiro é feito a partir da coagulação do leite de vacas, cabras, ovelhas, búfalas e/ou outros mamíferos, ou seja, é de origem animal.
Já nos chamados análogos podem ser encontrados ingredientes como água, gordura vegetal e amido modificado em sua composição.
“Há alguns pesquisadores que classificam os análogos como produtos obtidos pela mistura de variadas fontes de gordura, proteínas, água e outros ingredientes em uma mistura resultante homogênea, com a utilização de calor, cortes mecânicos e sais emulsificantes no decorrer do processo”, enumera.
Ele explica que essas variedades foram desenvolvidas nos Estados Unidos, no início dos anos 1970, com o objetivo de serem substitutos mais baratos para uso industrial.
Por isso, conta, esses similares são utilizados por estabelecimentos comerciais como cobertura para pizzas, fatias de queijo em sanduíches, molhos de queijo e refeições pré-prontas. Nos queijos análogos, o leite e a gordura do leite são substituídos, totalmente ou parcialmente, por proteínas de leite, gordura vegetal e amidos modificados.
Aqueles que buscam se assemelhar a queijos e não contêm derivados do leite são elaborados utilizando-se proteínas e gorduras de origem vegetal.
A especialista pondera não existir na legislação brasileira nenhuma regulamentação técnica para produção e venda de queijos análogos ou de “produto cremoso”.
Por esse motivo, um alimento desse tipo não poderia ser vendido como “queijo”, que possui regulamentações técnicas de identidade e de qualidade para os seus diversos tipos.
Você consome sem saber: restaurantes e bares utilizam similares
A pesquisadora Leila Spadoti, evidencia que, até o momento, não há nada que obrigue os estabelecimentos comerciais do ramo alimentício a informar ao consumidor, em seus cardápios ou por meio de placas, a utilização de produtos análogos ao queijo/requeijão e lácteos no preparo dos alimentos.
"Assim sendo, nada impede que tais estabelecimentos façam o uso indevido do nome 'queijo' na descrição de seus produtos, o que pode levar os consumidores a acreditarem que estejam comendo, de fato, queijo nas suas refeições, quando na verdade não estão”, alerta.
Ela destaca haver relatos de maior utilização de análogos nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil devido à favorável relação custo-benefício e à simplicidade de fabricação e substituição de ingredientes obtidos a partir do leite por itens vegetais mais baratos.
Leila pondera, no entanto, que há vantagens entre os queijos análogos em relação aos tradicionais, como custo reduzido devido à utilização de óleos vegetais ao invés da gordura do leite, substituição parcial da proteína por amido e/ou outros hidrocoloides.
Marcas são alvos de processo de R$ 60 milhões por semelhanças entre fórmulas infantis e compostos lácteos
No fim de maio último, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) protocolou uma ação civil pública contra a Nestlé Brasil, a Mead Johnson Brasil e a Danone em razão das semelhanças entre a embalagem de fórmulas infantis — cuja promoção comercial é proibida ou restrita— e a de compostos lácteos das marcas.
A ação, apresentada ao Tribunal de Justiça de São Paulo, pede que as empresas paguem uma indenização de R$ 60 milhões em danos morais coletivos e que a prática de promoção cruzada desses produtos seja reconhecida como ilegal.
O documento aponta que características como cores, formato da embalagem, tipo de fonte ou prefixos e sufixos dos nomes se repetem em ambos os produtos das três empresas
Para o Idec, esse tipo de comunicação faz com que os consumidores enfrentem um verdadeiro “jogo dos 7 erros” para identificar diferenças escondidas.
A ação judicial pede as empresas sejam condenadas a deixar de apresentar fórmulas infantis e compostos lácteos em embalagens semelhantes e a evidenciar as diferenças entre os produtos.
Enquanto isso não ocorre, a peça solicita que seja colocado um encarte adesivo nos rótulos, alertando os consumidores e chamando a atenção para as distinções entre as duas mercadorias.
A Danone informou que não comenta processos judiciais que estejam em andamento e reforçou que possui altos padrões de ética e transparência em todas as suas práticas, que atua de maneira íntegra com todos os seus públicos de interesse e que não compactua com ações que não estejam de acordo com a legislação dos países em que está presente".
O Diário do Nordeste pediu o posicionamento da demais empresas citadas e aguarda retorno.