Em meio à alta dos alimentos, plantas não convencionais são opção saudável e acessível; conheça variedades no Ceará

Você já deve ter ouvido falar de algum chá para curar desde cólicas até dores de cabeça, ou de um suco de folhas para desintoxicar o corpo. Essas receitas — à base do que a natureza fornece — são exemplos comuns de um conjunto de saberes transmitidos por gerações de famílias, mas que foram abandonadas por não serem lucrativas para a agricultura moderna.
No entanto, a partir da década de 2000, o potencial das Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs) tem sido reconhecido como alternativa para a segurança alimentar das populações, especialmente em um contexto de crise climática e inflação de alimentos.
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Enquadram-se nesse conceito aquelas que podem ser consumidas, mas raramente são vendidas no comércio convencional, como supermercados. O Brasil possui uma rica diversidade desses alimentos, incluindo ervas, hortaliças, frutas, tubérculos e flores.
No Nordeste, PANCs como a vinagreira, ingrediente essencial do arroz de cuxá maranhense, a língua-de-vaca (cariru), utilizada no efó (guisado de camarão e folhas verdes) baiano e alagoano, e o inhame-cará, presente em diversos pratos regionais no Recôncavo Baiano e na Zona da Mata da Paraíba, Pernambuco e Alagoas, destacam-se, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
No Ceará, são exemplos o umbuzeiro e o mandacaru. Segundo a nutricionista agroecológica Bruna Crioula, a negligência e a subutilização desses insumos estão intrinsecamente ligadas à colonialidade da alimentação.
“Os sistemas alimentares brasileiros foram criados e impulsionados a partir da estrutura social racista, tendo corpos africanos escravizados como força de trabalho para o desenvolvimento econômico do Brasil”, avalia.
Para além disso, temos as heranças socioculturais e o protagonismo social das culturas alimentares originárias e ancestrais marginalizadas e reduzidas a narrativas dos colonizadores sobre os sentidos, significados e representações sociais em torno da cozinha brasileira e sua história”, completa.
Neste contexto, o desconhecimento da história alimentar e do alto potencial nutritivo das PANCs por grande parte da população implica a diminuição da demanda por esses alimentos.
Como as PANCs ajudam a combater a insegurança a alimentar
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Para compreender melhor a relevância das Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), leia abaixo trecho da entrevista com Bruna Crioula.
Coluna - Considerando o potencial econômico das PANCs e sua acessibilidade para certas populações, especialmente em um contexto de crise climática, como o consumo desses alimentos pode contribuir para a segurança alimentar e proporcionar uma dieta mais rica e saudável para as populações em situação de vulnerabilidade?
Bruna C. - Diante da intensificação das crises climáticas, é urgente resgatar formas de cultivo e alimentação que respeitem os ciclos da natureza, os territórios tradicionais e a autonomia das populações. As PANCs cumprem esse papel com excelência. São plantas que se adaptam à escassez hídrica, que brotam mesmo em solos empobrecidos e que não precisam de insumos caros ou poluentes para prosperar.
Mas não é só a resiliência agronômica que torna as PANCs essenciais: elas estão no centro da luta contra o racismo ambiental. Em muitos territórios, comunidades negras e indígenas têm seus modos de vida e seus alimentos invisibilizados, além de serem as primeiras a sofrer os impactos das mudanças climáticas.
Promover o cultivo e consumo das PANCs é garantir acesso a uma alimentação digna, culturalmente apropriada, e proteger a biodiversidade ameaçada pela monocultura e pela exploração ambiental predatória.
Com elas, é possível transformar conhecimento ancestral em geração de renda: produzir molhos de beldroega, conservas de vinagreira e doces artesanais de mandacaru. Essas práticas geram economia solidária, fortalecem mercados locais e empoderam sobretudo mulheres negras e agricultores familiares.
As PANCs proporcionam uma dieta mais rica e diversificada, repleta de micronutrientes, fibras e sabores que respeitam a cultura alimentar local. Elas devolvem o direito de comer bem com o que a terra dá, sem depender de alimentos industrializados e caros. Comer PANCs é afirmar uma política de vida: é resistir à fome com dignidade, é reafirmar o saber tradicional, é projetar um futuro negro, popular e regenerativo.
Coluna - Qual o papel das PANCs no fortalecimento de práticas agrícolas sustentáveis na agricultura familiar?
Bruna C. - As PANCs são uma porta de entrada para uma alimentação mais saudável. E no contexto da agricultura familiar é possível beneficiar esses alimentos que podem ser uma fonte de renda o ano inteiro, principalmente nos períodos de entressafra. Elas também caminham juntas com os sistemas agroflorestais e agroecológicos, produções agrícolas sustentáveis. As PANCs são mais do que alternativas alimentares; são tecnologias ancestrais de sobrevivência e liberdade. Elas brotam espontaneamente em condições adversas, adaptadas ao clima e ao solo de cada território, e não exigem agrotóxicos nem fertilizantes industriais.
Por isso, são aliadas essenciais da agricultura familiar agroecológica, especialmente em regiões semiáridas como o Nordeste. Cultivar plantas comestíveis que estão fora lógica de mercado contribui para a criação de ecossistemas mais biodiversos, o que contribui para manutenção da soberania da diversidade, que é o mesmo que cultivar autonomia: os saberes associados ao seu manejo são passados de geração em geração, sem a intermediação de empresas ou pacotes tecnológicos.
É a avó que ensina o neto a identificar o ponto certo da beldroega, é o agricultor que troca sementes de vinagreira na feira agroecológica. Isso é soberania alimentar na prática. Essas diversidade alimentar tradicional e popular diversifica a roça, promovem rotação de culturas e atraem polinizadores, enriquecendo o ecossistema local. Alimentam com variedade e qualidade nutricional, e também geram excedente que pode ser comercializado em feiras livres e mercados solidários, fortalecendo economias locais e circuitos curtos. São um elo entre sustentabilidade ambiental e justiça social.
Diante da crise climática, precisamos de plantas que resistam, que brotem na adversidade.
Muitas dessas plantas podem fazer parte de sistemas produtivos resilientes e, por isso, podem ser consideradas como sementes de futuro. Elas crescem com pouca água, em solos fracos, e oferecem nutrição.
Podem incorporar ambientes alimentares mais inclusivos pela sua capacidade de adaptação, isso significa que mesmo em menores espaços, essas plantas podem ser alternativas de segurança alimentar a partir de políticas públicas de agricultura urbana, circuitos curtos de produção, comercialização e consumo de alimentos. Em cenários como esse, podem fazer parte de uma rede de apoio alimentar e nutricional em territórios socialmente marginalizados e economicamente vulneráveis.

Coluna - Qual a relação das PANCs com a ancestralidade e sua relevância cultural?
Bruna C. - As PANCs ancestrais carregam consigo a ancestralidade de povos que, por gerações, cultivaram e utilizaram essas plantas em sua alimentação e medicina tradicional. Elas representam a conexão com a terra, com os ciclos naturais e com os saberes passados de forma oral. A relevância cultural das PANCs ancestrais reside na preservação de identidades, na valorização de práticas agrícolas sustentáveis e na resistência contra a homogeneização alimentar imposta por sistemas coloniais e capitalistas. Ao nos reencontrarmos com o uso culinário da PANCs, fortalecemos nossas raízes culturais e promovemos a biodiversidade alimentar.
As PANCs ancestrais também são portadoras de memória. Em cada receita com beldroega, em cada umbuzada fervida no fogão de lenha, acessamos o saber de quem veio antes. Elas estão nos cantos, nas curas, nos rituais. Quando uma mãe ensina a filha a colher vinagreira sem arrancar a raiz, isso é educação ancestral. Sua relevância está em manter vivos os territórios do saber, mesmo sob a pressão do esquecimento colonial.
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As PANCs ancestrais resistiram ao tempo e aos impactos da colonização, que se expressam na alimentação da modernidade: com pressa, sem aspectos culturais e de diversidade dos povos, padronizada e incorporada. Nossa relação com elas exige mudança.As PANCs ancestrais guardam saberes e sabores milenares desenvolvidos de maneira sistematizada, coesa e organicamente partilhada.
Cada folha, cada raiz, traz uma história de cuidado com a terra, com o corpo e com o coletivo. São plantas que nossas avós souberam usar porque aprenderam com suas avós, num ciclo espiral de aprendizagem. Eram dos matos e florestas que nossos ancestrais encontraram como plantas de cura, o ingrediente para incrementar e/ou aumentar os cozidos, o elemento necessário para o desenvolvimento e encontro com as espiritualidades.
O uso das PANCs ancestrais nos conecta com um tempo onde comida era afeto, conhecimento e relação com os ciclos da natureza. Culturalmente, elas estão nos cantos, nas festas, nas receitas passadas de geração em geração. O arroz de cuxá com vinagreira, o bolinho de semente de faveleira, a umbuzada... são todos alimentos que sustentaram corpos em luta, que embalaram infâncias e ainda resistem como parte viva da nossa identidade.
Reencontrar-se com a PANCs numa perspectiva anticolonialista ou decolonial é romper o apagamento e o epistemicídio culinário impostos pela colonização e pelo racismo alimentar. É devolver a dignidade a partir e por meio dos ensinamentos tradicionais e abrir caminho para uma alimentação que respeite os territórios, os tempos e a memória culinária negra e indígena em suas pluralidades.
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