O que está sendo feito para evitar a fome e a insegurança alimentar com a inflação elevada?

O terceiro e último episódio desta reportagem trilha os caminhos para combater os problemas agravados pela pressão inflacionária

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Bolsa família
Legenda: Programas de transferência de renda garantiram o ganha-pão das famílias
Foto: Thiago Gadelha / SVM

Os relatos ouvidos nos dois primeiros episódios desta reportagem especial, iniciada na segunda-feira (10), mostraram que a inflação corrói uma renda já insuficiente para uma vida digna.

Se não fossem os programas de transferência de recursos, não haveria nem o arroz e feijão que minguam nos pratos de algumas famílias entrevistadas, como a de Cícera e de Natália

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Mesmo em um cenário mais favorável da economia brasileira, essas pessoas, que hoje vivem em situação de insegurança alimentar, já estarão mais pobres, com sequelas cognitivas e físicas provocadas pela dieta forçadamente restritiva, dificultando a inserção no mercado de trabalho. 

Portanto, não basta arrefecer a inflação para recuperar esses danos. O coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, Jefferson Nascimento, acredita serem necessários o fortalecimento e a ampliação de políticas públicas para reverter esse quadro. 

“Algumas medidas importantes para combater a fome não são possíveis hoje por conta de um desmonte de políticas públicas voltadas para essa questão. Nesse contexto, é impossível não mencionar o desmantelamento do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea)”, exemplifica.  

O Consea foi um órgão consultivo vinculado à Presidência da República, criado em 1993, pelo então presidente Itamar Franco. Em 1995, foi revogado no governo Fernando Henrique Cardoso.

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Já em 2003, o Consea foi reorganizado pelo ex-presidente Lula, mas o governo Bolsonaro extinguiu a instituição há três anos.

“O principal órgão responsável pela implementação desse tipo de política pública foi desmontado a partir de 2019. Nesse momento de aumento da fome e da miséria, seria fundamental para colocar a capacidade do estado para responder a essa situação”, avalia. 

Há dinheiro para essas políticas públicas de combate à fome?

Bolsa família
Legenda: Estudo mostra que é possível garantir nova transferência de R$ 125 a todos os brasileiros da metade mais pobre da população
Foto: Thiago Gadelha

Sim, mas exige planejamento e priorização. Um exemplo é o estudo feito pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), sediado na Universidade de São Paulo (FEA/USP), que mostra seis cenários possíveis para abrir espaço fiscal com o objetivo de criar e expandir programas como o “Bolsa Família” - rebatizado de “Auxílio Brasil”. 

Os dados mostram que uma tributação mais progressiva conseguiria financiar projetos de renda mais robustos, mas seria necessário aumentar os impostos dos abastados.

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Os dados constam no estudo “Dos pobres para os paupérrimos ou dos mais ricos para os mais pobres? O impacto sobre a desigualdade de diferentes formas de expansão das transferências de renda no Brasil”, elaborado pela economista Laura Carvalho, Rodrigo Toneto e Theo Ribas.

Uma das propostas mostra que a redistribuição do Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPPF) sobre os 20% mais ricos esgarçaria margem para garantir nova transferência de R$ 125 a todos os brasileiros da metade mais pobre da população.

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Se isso fosse colocado em prática, diminuiria em 8,9% o índice de Gini (indicador mede a desigualdade e quanto mais próximo de zero melhor). Também seria possível ampliar o benefício do Auxílio Brasil dos 30% ou 50% mais pobres com valores maiores que os atuais. 

O analista de Políticas Públicas do Ipece, Daniel Suliano, observa que um dos grandes desafios do Brasil é arrecadar de forma mais eficaz, mas com a mesma carga tributária atual. 

“Essa é uma agenda antiga das reformas estruturais no País. Entra e sai governo e essa agenda permanece inalterada”, enfatiza. 

Suliano argumenta que alguns analistas preveem que essa será a primeira reforma a ser encaminhada no governo a se iniciar em 2023, independentemente da matriz ideológica.

"Uma melhora no sistema tributário nacional irá melhorar a eficiência econômica, abrindo espaço para um maior crescimento da economia e geração de mais empregos, além de maior disponibilidade de recursos na alocação dos mais vulneráveis", avalia. 

Inflação empobrece as famílias, mas engorda cofre do governo

A alta da inflação trouxe ganhos aos cofres públicos. Para se ter uma ideia, em março deste ano, arrecadação de impostos, contribuições e demais receitas federais foi a maior dos últimos 28 anos, totalizando R$ 164,1 bilhões, segundo a Receita Federal. 

Isso ocorre porque a taxação de impostos sobre consumo representa a metade de toda a carga tributária no Brasil, segundo estudo da Oxfam Brasil. E quem consome mais? As famílias de faixas de renda mais baixas, que utilizam a maior parte dos rendimentos para comprar alimentos, conforme visto no primeiro episódio desta reportagem. 

A arrecadação está aumentando às custas, principalmente, das pessoas mais pobres…Mas, infelizmente, não vemos essa alta arrecadação ser revertida em políticas públicas fortes”, questiona.
Jefferson Nascimento
coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil

Ele cita levantamento do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) que mostra queda de 79% dos recursos para enfrentar a Covid-19 em 2021 ante 2020. A saúde perdeu R$ 10 bilhões em termos reais, entre 2019 e 2021, quando subtraídas as verbas destinadas ao coronavírus, de acordo com o estudo.

Em relação à habitação de interesse social, o Governo Federal não investiu nada entre 2020 e 2021. Já área de assistência para crianças e adolescentes perdeu R$ 149 milhões, entre 2019 e 2021, esse valor equivale a 39% do que foi gasto em 2021.

O orçamento para educação infantil também caiu mais de quatro vezes em apenas três anos.

“Diante disto, temos visto desmantelamento de uma série de políticas sociais casadas também um pouco com um debate a respeito de austeridade econômica”, enfatiza. 
 

Projeto transfere renda a 140 famílias em Fortaleza

Mulheres do projeto
Legenda: Projeto "Ser Ponte" ajuda mulheres em situação de vulnerabilidade social em Fortaleza
Foto: Ser Ponte / Divulgação

"Oi, amada. Quando a bênção chega?". A pergunta feita por uma beneficiária do projeto "Ser Ponte“, que garante uma renda básica a 140 famílias chefiadas por mulheres em Fortaleza, demonstra o alívio de quem agora pode ter a certeza de colocar o alimento no prato. 

As beneficiárias recebem R$ 180 mensais oriundos de doações de pessoas físicas e jurídicas. O auxílio tem mudado a história de mães do Bom Jardim, da Serrinha, Vila Velha, Serviluz e de outros bairros da Capital. 

O dinheiro é entregue em mãos por meio de agentes comunitárias, garantindo a autonomia dos recursos e a aplicação de acordo com as necessidades de cada uma.

No relatório de impacto da Organização não Governamental (ONG), é possível constatar o efeito redistributivo para a segurança alimentar dessas famílias, como para a Dona Marinez, citada no início do texto. 

O projeto começou em abril de 2020. Inicialmente, 250 mulheres eram atendidas, beneficiando 1200 integrantes desses grupos familiares. Entretanto, atualmente, a queda de doações reduziu para 700 o número de impactados. 

A presidente da "Ser Ponte", Valéria Pinheiro, destaca a importância da mobilização social "sem esquecer a dimensão da defesa dos direitos."

"A fome dói em centenas de milhares de fortalezenses, nesse segundo em que você lê isso. Precisamos aumentar as doações e dizer para tanta gente que carrega essa cidade nos ombros que a vida delas importa", incentiva. Veja como ajudar. 

Serviço

  • Para doar:

Banco do Brasil C/C
Agência 1369-2
Conta Corrente 31.469-2
CNPJ 45.009.882/0001-94

  • PIX: doar@serponte.org.br
  • www.benfeitoria.com/serpontefortaleza

O que os governos têm feito para combater a fome?

A Prefeitura de Fortaleza e o Governo do Ceará informaram a adoção de uma série de medidas de combate à insegurança alimentar e assistência à população vulnerável. O Governo Federal, contudo, não respondeu às perguntas sobre ações contra esses problemas até a publicação desta reportagem. 

Em nota, a Secretaria dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) disse entregar, diariamente, 1.200 quentinhas a partir das 11 horas, nos três Espaços de Higiene Cidadã, nos bairros Centro e Parangaba, no Refeitório Social e no Lar dos Idosos Sagrado Coração de Jesus. Além de 700 sopas, nos mesmos locais, a partir das 17h. 

Nos Acolhimentos Institucionais, Centros de Referência da População de Rua (Centros Pop) e Centro de Convivência também são distribuídas refeições diariamente, além dos sete Acolhimentos Institucionais de crianças e adolescentes e nas Pousadas Sociais.

Já os Acolhimentos para Homens, para Mulheres e Famílias, Casa de Passagem e os Acolhimentos de Crianças e Adolescentes oferecem desjejum, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde, jantar e ceia.

"Todos os dias a alimentação tem um cardápio balanceado, rico em nutrientes, com a finalidade de suprir as necessidades energéticas e nutricionais, adequadamente, em quantidade e qualidade", informou a Prefeitura. 

O Governo do Ceará disse possuir diversas políticas voltadas às famílias em situação de vulnerabilidade social, como o "Vale Gás Social", o "Programa Mais Infância Ceará", a concessão de bolsas de incentivos aos chamados "Agentes Sociais Mais Infâncias" e o  "Mais Nutrição".  

"As medidas de assistência são implementadas ponderando o impacto nas contas do Estado e as perspectivas de necessidade de socorro a diferentes áreas, orientadas pela meta de proteger os cearenses e salvar vidas", informou a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), em nota. 

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