'Ou merendo ou almoço': Cearenses cortam refeições com alta dos alimentos
O Diário do Nordeste ouviu quatro mulheres duramente impactadas pela alta generalizada dos preços. Situação empurra população para pobreza e insegurança alimentar
Há quanto tempo você não enche o carrinho de compras em um supermercado? Se ainda consegue, quantos produtos substituiu e/ou reduziu o consumo? Mesmo após esse malabarismo entre as gôndolas, quanto a mais você precisou desembolsar para a mesma feira nos útimos três anos?
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As respostas podem variar de acordo com a situação econômica de cada consumidor, mas é consensual que, das faixas de renda mais baixas à classe média, todas as famílias percebem perdas nos rendimentos mensais com a escalada da inflação no Brasil.
Já são três anos sem ganho real do salário mínimo. Aquelas pessoas que não possuem margem além do próprio ganha-pão são empurradas ao empobrecimento e à insegurança alimentar.
Para se ter uma ideia, segundo o índice global da Organização das Nações Unidas (ONU), calculado pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), o preço dos alimentos atingiu, em março deste ano, o maior nível dos últimos 61 anos.
O problema onera, principalmente, os estratos sociais de rendas baixas, cuja cesta de produtos e serviços tem maior pressão inflacionária.
Nesta série de três episódios, o Diário do Nordeste apresenta as histórias por trás dos números, as causas e os caminhos para corrigir as distorções provocadas pela alta generalizada.
Visitamos quatro famílias, nos bairros Bom Jardim e Granja Lisboa, em Fortaleza, que estão perdendo o poder de compra e foram obrigadas a abdicar de alguns alimentos e até saltar algumas refeições para sobreviver.
“O que está me segurando em pé é Deus”
Na casa conjugada da faxineira Cícera Batista, de 49 anos, no bairro Granja Lisboa, as imagens de santos espalhadas pelas paredes verdes, entrecortadas por manchas de cimento, retratam mais do que a fé religiosa pode justificar: a busca de um sentido para suportar a realidade quando a fome bate à porta.
“O que está me segurando em pé é Deus", disse. A reportagem chegou à residência dela por volta das 9h30 de uma quarta-feira de abril. Cícera não havia comido naquele dia. Estava guardando o pão que conseguira comprar para mais tarde.
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Assim, aquela que viria a ser a primeira das suas duas únicas refeições diárias serviria tanto para o café da manhã quanto para o almoço. Naquele dia, contou, a geladeira não estava vazia graças a doações.
Viver em escassez sempre foi uma realidade para Cícera. Após redução da renda devido às sequelas de um acidente há três anos, ela já havia riscado a carne vermelha da lista de compras.
A situação se agravou com a perda total dos rendimentos no início da pandemia, mas foi amortecida pelo Auxílio Emergencial (benefício provisório).
Atualmente, a família, que inclui dois filhos, vive com R$ 700, sendo R$ 400 oriundos do Auxílio Brasil (o rebatizado Bolsa Família) e R$ 300 do programa municipal Bolsa Jovem.
Apesar de notar a despensa minguando há cerca de três anos, ainda era possível garantir parte dos alimentos básicos à mesa. Nos últimos meses, contudo, a inflação sequestrou as verduras, o leite e as outras carnes do cardápio dessa família.
A filha, de 21 anos, está em busca de emprego e faz um cursinho pré-vestibular na Universidade Estadual do Ceará (Uece). A maior fatia do dinheiro que a jovem recebe é direcionada para os lanches fora de casa, materiais escolares e passagens de ônibus. O restante vai para as despesas domésticas.
Já o filho mais novo, de 17 anos, só consegue fazer todas as refeições necessárias porque passa o dia na escola pública.
“Desde fevereiro, eu deixei de comprar verduras, leite e óleo. Eu ainda consigo separar R$ 10 por mês para comprar banana, laranja ou limão de um senhor que passa vendendo na porta”, relatou Cícera, dizendo que reserva as frutas apenas para o consumo dos filhos.
A dieta dela é restrita ao almoço e jantar, com apenas arroz e feijão no prato. Às vezes, Cícera consegue comprar pedaços de frango ou recebe doações de carne moída.
“Se não fosse a Ingrid (líder comunitária) e a minha filha, eu teria morrido de fome”, lamentou.
Dos R$ 700 recebidos mensalmente, R$ 320 são para pagar as contas de luz, água, gás e a internet (contratada durante a pandemia para os filhos estudarem). A sobra vai para a alimentação e transporte.
“Está difícil para mim e para todo mundo. Aqui, tem muita família sofrendo, gente que recebe R$ 400 de Bolsa Família e ainda precisa pagar R$ 300 de aluguel”, disse, apontando para a comunidade.
Em meio às dificuldades, Cícera tenta concluir a sétima série por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA), mas está quase desistindo.
O custo das passagens de ônibus é alto para um orçamento já insuficiente para a alimentação, além de sentir fraqueza e tontura com frequência, dificultando o aprendizado.
Buscar atendimento médico em postos de saúde tem sido cansativo também. Só há dinheiro para a ida. Ela já não aguenta mais. Quando as dores maltratam, compra uma cartela de dipirona por R$ 2,50, único medicamento acessível para Cícera.
Inflação é mais alta para os mais pobres
A escalada do preço dos alimentos agrava as assimetrias econômicas. No Brasil, as famílias de renda mais baixa (até R$ 1.808,79) sentiram inflação de 12%, nos últimos 12 meses, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Já aquelas com renda domiciliar superior a R$ 17.764,49 registraram uma variação acumulada de 10%. Isso ocorre porque a cesta de produtos e serviços varia de acordo com cada estrato social.
Para consumidores de renda mais baixa, por exemplo, a pressão inflacionária exercida pelos alimentos em março foi decorrente da alta do arroz (2,7%), feijão (6,4%), cenoura (31,5%), batata (4,9%), leite (9,3%), ovos (7,1%) e pão francês (3%).
Os reajustes da tarifa de ônibus urbano (1,3%) e da energia elétrica (1,1%) também pesaram no orçamento dessa população.
Do outro lado, a inflação das pessoas de salário mais elevado recai sobre os transportes, repercutindo elevação de 6,7% da gasolina, de 13,7% do óleo diesel e de 8% dos automóveis por aplicativo.
Como impacto chega ao Ceará
O analista de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), Daniel Suliano, frisou que o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) atingiu o patamar de 11,31% no acumulado dos últimos 12 meses (até março).
O grupo de alimentos chegou a 10,61% nesse período. Em 2021, acrescenta, a inflação do ano medida pelo mesmo índice já havia sido de 10,63% e 9,47%, respectivamente, indicando, portanto, forte pressão dos custos desde então.
"Isso, sem dúvida, impacta em maior grau as pessoas de baixa renda, considerando que o grupo de alimentos representa mais de 20% no orçamento dessas famílias", avaliou.
"Além disso, tem ocorrido queda do salário real, ocasionando o problema do cobertor curto: para cobrir os pés, é preciso descobrir a cabeça, dentro da lógica do orçamento familiar", destacou.
Suliano enfatiza que mais de 1/5 do orçamento familiar no Ceará é direcionado para os alimentos.
"1/5 de quem ganha R$ 1 mil é diferente daquele que ganha R$ 10 mil. Além de consumir a maior fatia em termos relativos de quem recebe menos, o cenário de aumento contínuo de preços reduz ainda mais a capacidade de poder de compra dos mais pobres", pondera.
A cruel escolha entre as refeições: "é o almoço ou a merenda"
"Em fevereiro, meu marido começou a ficar desesperado vendo meus filhos com fome. Ele saiu de casa por volta das 12 horas dizendo que ia beber para criar coragem para fazer uma besteira e comprar comida para os meninos. Quando dei fé, às 13h30, me ligaram dizendo que ele foi preso".
O relato é da dona de casa Natália de Sousa, de 35 anos, mãe de sete filhos (3 meses, 2 anos, 5 anos, 8 anos, 13 anos, 15 anos e 17 anos).
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A família, que já vivia há mais de um ano com a única renda de R$ 730 do atual Auxílio Brasil, não suportou os aumentos recentes dos alimentos.
“Há quatro meses, eu parei de pagar a conta de luz para conseguir comprar comida. Quando recebo o ‘Bolsa Família', uso todo o dinheiro para pagar o homem da bodega onde compro fiado. Não sobra nada”, calculou.
No mercadinho de bairro, Natália compra os itens de uma cesta básica: arroz, feijão, ovo, macarrão, pão e biscoitos salgados. Frutas e legumes não fazem mais parte da alimentação dos filhos, que já sofrem com a dieta restritiva.
“O médico do posto disse que está faltando um ‘negócio’ de cálcio e também precisam comer fibras. Passaram uma vitamina também, mas nunca pude comprar", descreve.
Natália acrescenta conseguir comprar, às vezes, alho, limão ou cheiro-verde para complementar as refeições.
Durante a semana, os filhos mais velhos têm uma dieta regular na escola. Em casa cuidando das crianças menores, a mãe não consegue se alimentar adequadamente. O café da manhã é um pão — raramente acompanhado de suco em pó.
No almoço, é arroz, feijão e ovo. O jantar são os restos.
“Não tem lanche da tarde. Na vida de quem não tem condição é assim: ou merenda ou almoça”, reafirma.
Ela conta não visitar o marido por vergonha da situação, além de não ter com quem deixar os filhos e o dinheiro para passagem do transporte coletivo.
“Sempre foi difícil. Quando ele [marido] trabalhava, recebia uns R$ 900. Nunca deu nem para comprar móveis, mas dava, pelo menos, para a comida das crianças”, lembrou.
Mais de metade da população já vivia em insegurança alimentar
Mais da metade (55%) das famílias brasileiras não tinha acesso a alimentos importantes para uma dieta regular em 2020, no Brasil, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan).
O percentual representa 116,8 milhões de brasileiros nesta condição. Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com refeições em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9%) estavam passando fome (insegurança grave).
Os números, coletados entre 5 e 24 de dezembro de 2020, refletem o impacto da crise sanitária sobre essas famílias. Mas o coordenador de Pesquisa e Incidência em Justiça Social e Econômica do Comitê de Oxford para Alívio da Fome (Oxfam Brasil), Jefferson Nascimento, sublinha que, se esse estudo fosse feito hoje, "indicaria um número muito mais alto".
"No momento da realização da pesquisa, ainda havia o Auxílio Emergencial. Então, esse cenário foi piorado. Atualmente, há o Auxílio Brasil, mas a cobertura é muito menor que a do Emergencial", observa.
A trajetória da Cícera e da Natália, citadas nesta reportagem, esquadrinham bem a situação atual dessa população.
Próximo episódio
No próximo episódio, nesta quarta-feira (11/05), você vai conhecer a história de outras duas mulheres que enfrentam dificuldades para ajustar o orçamento familiar diante da alta dos alimentos. Na quinta-feira (12/05), a reportagem discute os caminhos possíveis para evitar o aumento de fome e da insegurança alimentar.