O que está por trás do boom de 'produtos fakes' no Brasil e quem ganha com isso
Comprar em supermercados tornou-se uma odisseia para os consumidores. Isso porque o mercado de 'produtos fakes', como compostos lácteos, óleos mistos (no lugar do azeite) e o pó à base de café, está em plena expansão.
A semelhança entre as embalagens desses itens e as dos originais tem levado muitos consumidores a questionarem se, de fato, estão levando para casa aquilo que pretendiam adquirir.
A proliferação desses similares é uma estratégia da indústria para enfrentar momentos de crise: para evitar a perda de receita, as marcas lançam essas versões, buscando oferecer alternativas supostamente mais acessíveis.
No atual cenário de crise climática — que tem contribuído para a elevação dos preços de diversos alimentos, entre outros fatores macroeconômicos — essa dinâmica pode se intensificar.
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No ano passado, a inflação oficial do País, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE), atingiu 4,83%. Esse percentual superou o teto da meta estabelecida pelo governo, fixado em 3%, sendo o café (39,6%) e o azeite (21,53%) itens com fortes impactos no orçamento das famílias.
Neste ano, a inflação acumulada nos últimos 12 meses apresentou uma aceleração, atingindo 5,48% em março. Tal cenário econômico é um terreno fértil para a criação dos chamados 'produtos fakes'.
No Brasil, a comercialização desses similares é permitida, desde que seus rótulos informem claramente a fórmula utilizada.
O que explica o boom de 'produtos fakes'
Para o professor Aécio Oliveira, do Departamento de Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará (UFC), isso é reflexo do sistema econômico atual, no qual a inovação de produtos acontece a uma velocidade acelerada para atender rapidamente às demandas.
“As empresas capitalistas adotam isso com muita facilidade há muito tempo. Não é algo novo; é o mesmo, mas com uma maquiagem, uma alternativa para expandir as vendas e acumular riqueza”, observa.
O economista faz uma comparação com o conceito de obsolescência programada, em que a vida útil dos produtos é intencionalmente reduzida para incentivar novas compras.
As empresas recorrem a diversas estratégias, como a obsolescência programada e a introdução de produtos com novas aparências, entre outras", avalia.
Segundo Ulysses Reis, professor de MBAs e varejo da Strong Business School (SBS), instituição parceira da Fundação Getulio Vargas (FGV), os 'produtos fakes' são o resultado da prática de reduflação, a qual envolve estratégias variadas além da simples diminuição do tamanho do produto.
Entre elas, destaca-se a substituição de itens de boa qualidade ou que atendem aos padrões de mercado por itens inferiores, seja em qualidade, composição, quantidade ou gramatura, podendo até conter componentes prejudiciais à saúde.
A primeira característica, segundo ele, é a diminuição do tamanho, como se observa atualmente em barras de chocolate, sabão em pó e queijos, por exemplo.
“O segundo fator observado é uma maquiagem, na verdade, para dar a impressão de que o preço não subiu tanto. Isso tem a ver com a composição do produto”, aponta.
“Por exemplo, um chocolate que não é totalmente chocolate: se formos analisar o que está sendo vendido hoje, vamos perceber uma quantidade enorme de açúcar e uma quantidade muito maior de gorduras, inclusive gorduras vegetais, do que propriamente cacau. O cacau, às vezes, está sendo substituído até mesmo por creme de cacau ou outros tipos semelhantes”, enumera.
Quem perde com os 'produtos fakes'
Para Reis, é evidente que a proliferação desses produtos traz prejuízos para o consumidor, o qual acaba "comprando gato por lebre", podendo, inclusive, ter sua saúde comprometida.
Mas, além disso, há uma perda de credibilidade para grandes marcas que construíram sua história ao longo do tempo.
“As indústrias de qualidade investem anos na construção de boas marcas. Isso explica o valor superior de uma marca tradicional em relação à marca própria de um supermercado. Esse valor é fruto de um investimento contínuo em qualidade, imagem, propaganda e credibilidade”, destaca.
Quando começam a redefinir suas estratégias, essas empresas perdem o patrimônio cultural e a imagem conquistada perante a sociedade”, completa.
Quem ganha com os 'produtos fakes'
Na outra ponta, o setor supermercadista se beneficia dessa dinâmica. O segmento registrou um faturamento de R$ 1,067 trilhão em 2024, representando 9,12% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, conforme o levantamento de 2025 da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), realizado com a NielsenIQ.
Reis pondera, contudo, que os supermercados comercializam os 'produtos fakes' como estratégia para se manterem competitivos em um mercado desafiador.
“A renda da população não é reajustada, mas os custos com energia elétrica e impostos aumentam. Isso torna a situação ainda mais difícil, pois o setor busca se manter. Por isso, vemos a expansão do modelo atacarejo como forma de reduzir custos”, observa.
O especialista acrescenta que, nesse contexto, os maiores beneficiados acabam sendo as marcas de segunda linha, sem liderança de mercado ou reputação consolidada.
“Elas têm baixa qualidade, não investem em imagem e costumam surgir em momentos de crise. Isso ocorreu, principalmente, durante o pico da inflação nos anos 1990 e em parte dos anos 2000. Ou seja, são marcas sem credibilidade nem qualidade, que aparecem com qualquer nome, vendem seus produtos e depois desaparecem”, explica.
A coluna buscou o posicionamento da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e da Associação Brasileira de Supermercados (Abras) sobre o tema, mas, até a publicação deste texto, não obteve retorno. Em caso de manifestação futura, esta matéria será atualizada.
"Os perigos são grandes para a saúde"
A nutricionista Viviane Araújo alerta que os ‘produtos fakes’ representam riscos à saúde, especialmente quando adquiridos por engano para idosos e crianças. Esses alimentos podem causar danos devido à presença de aditivos, corantes e conservantes em sua composição.
São produtos ultraprocessados, possuem baixo teor nutricional, podendo acarretar diversas deficiências nutricionais e favorecer o desenvolvimento de doenças crônicas”, aponta.
“O composto lácteo, por exemplo, frequentemente utilizado para substituir o leite e apresentado em embalagens muito semelhantes, geralmente disposto lado a lado com o leite nas prateleiras dos supermercados, contém menos proteína e mais açúcar em comparação com o leite”, exemplifica.
De acordo com Araújo, o alto teor de açúcar aumenta o risco de obesidade infantil e, no futuro, pode levar ao desenvolvimento de resistência à insulina, problemas metabólicos e outras complicações.
Nos idosos, esses alimentos afetam a absorção de nutrientes e agravam deficiências nutricionais.
“Essa faixa etária já sofre com a perda natural de massa magra, chamada sarcopenia, devido ao envelhecimento. O consumo de alimentos com baixo valor nutricional agrava essa condição, o que resulta em um aumento de doenças crônicas como hipertensão, diabetes e problemas cardiovasculares”, destaca a nutricionista.
Ela também alerta que esses produtos contribuem para a deficiência de vitamina D, provocando o surgimento de cálculos renais e tornar o consumidor mais suscetível a quedas e fraturas. “Os perigos são grandes, especialmente para as populações vulneráveis”, conclui.
A nutricionista Marília Porto Oliveira Nunes, professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), acrescenta que, no caso do café, aqueles produtos prontos para consumo (bebidas lácteas sabor café, cappuccinos instantâneos ou cafés aromatizados) contêm grandes quantidades de açúcar, xarope de glicose, gorduras hidrogenadas e aditivos artificiais.
“Em geral, os similares têm baixo teor de café puro. Pessoas com sensibilidade à cafeína ou hipertensão podem ser prejudicadas por não saberem a quantidade exata da substância consumida. A principal dica é sempre ler o rótulo com atenção”, observa.
“A orientação de um nutricionista é fundamental para garantir substituições seguras, especialmente para grupos mais vulneráveis, pois, a depender do produto e da sua composição, algumas consequências podem ser descritas, como picos de glicemia, favorecimento do ganho de peso, aumento do risco de resistência à insulina e mascaramento do real consumo de cafeína”, lista.
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