Feito para não durar e sem conserto: entenda a obsolescência programada e o impacto para a sociedade

Gerações de pais e avôs mantiveram, em suas dispensas, uma caixa de ferramentas para reparos domésticos. Atualmente, essa prática perdeu força, não apenas pela escassez de tempo na sociedade moderna, mas porque algumas indústrias impedem que produtos tenham uma vida útil prolongada e dificultam o conserto para você comprar novos itens.
O nome dessa tática é obsolescência programada. Isso não é de hoje, claro. Em 1924, por exemplo, um acordo firmado entre grandes fabricantes de lâmpadas, conhecido como Cartel Phoebus, estabeleceu a redução da longevidade do objeto com o intuito de alavancar as vendas. A duração das lâmpadas foi então reduzida de 3 mil para 1 mil horas.
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Na literatura, esse caso é considerado um dos primeiros exemplos de obsolescência programada. Contudo, um século depois, o consumidor tem percebido com maior frequência a breve durabilidade dos aparelhos, impulsionada pelo crescimento do mercado de dispositivos móveis, sendo celulares e tablets os principais exemplos.
Obsolescência programada engloba um conjunto de estratégias
O professor do Departamento de Tecnologia do Design da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leonardo Oliveira, explica que esses produtos são projetados para não durarem.
"A obsolescência programada ou planejada faz parte de uma estratégia de mercado que visa garantir um consumo constante através da insatisfação do cliente, de forma que os produtos que satisfazem as necessidades daqueles que os compram parem de funcionar ou se tornem obsoletos em um curto espaço de tempo", esclarece.
De acordo ele, também ocorre a indução ao consumo por meio de três estratégias principais: a exaltação da relevância do consumidor em relação ao item adquirido, a ênfase em como a posse e o uso do produto aprimoram a vida do consumidor, e a promoção da ideia de que o usuário merece estar à frente de seu tempo e dos outros, sentimento reforçado a cada atualização.
Quais são os exemplos de obsolescência programada

Segundo Oliveira, a obsolescência pode ocorrer em quase todo setor industrial, mas se manifesta de forma mais evidente em dispositivos eletrônicos. Isso se deve não apenas ao planejamento de um ciclo de vida limitado para esses produtos, mas também à modernização tecnológica.
"Essa rápida evolução da tecnologia digital talvez seja o único ponto pelo qual a necessidade de substituição de aparelhos se justificaria. No entanto, não podemos esquecer que um bom projeto de atualização de software deveria garantir um tempo maior de vida útil para os aparelhos mais antigos, e não o contrário", aponta.
Um exemplo de fenômeno psicológico, aponta, são as atualizações visuais, conhecidas como facelift, que fabricantes de automóveis aplicam em veículos já existentes.“Isso atua como gatilho de compra, quase sempre por promover a satisfação de se possuir o modelo ‘mais novo’”, destaca.
"É quase que uma engenharia social aplicada ao uso das coisas. E são essas mesmas atualizações exigidas pelo fabricante que jogam para baixo as performances do produto anterior, fazendo toda a construção prévia na consciência do usuário fazer sentido. Aí 'atualizamos' os nossos produtos, às vezes, mesmo sem necessidade", avalia.
O professor também aponta a aplicação de características do custo-benefício de itens de baixo valor, como a aceitação de desempenho inferior e a dificuldade de reparo, o que dificulta os consertos e, frequentemente, incentiva a venda casada, na qual uma versão nova é oferecida em troca do antigo. Veja alguns exemplos de obsolescência programada abaixo.
Obsolescência por componentes integrados e hardware:
- Produtos com "minissistemas" encapsulados ("black boxes") que, ao falharem, exigem substituição completa. Exemplos: amortecedores automotivos, SSDs, memórias, cartuchos de impressão com chips de desativação;
- Design de hardware que dificulta reparos: componentes soldados e protegidos, promovendo a substituição completa.
Obsolescência por software e atualizações:
- Atualizações de software que degradam o desempenho de dispositivos mais antigos, tornando-os lentos ou incompatíveis. Exemplos: celulares, sistemas operacionais (caso "Batterygate" da Apple).
- Software que diferencia artificialmente o desempenho de produtos com o mesmo hardware. Exemplo: automóveis com classes de desempenho distintas por software.
Obsolescência por estratégias de mercado e tecnologia:
- Aceleração do desenvolvimento tecnológico, com lançamentos frequentes que tornam produtos antigos "obsoletos";
- Estratégias de marketing agressivas que incentivam a substituição constante;
- Ecossistemas fechados e proprietários que limitam a compatibilidade e o uso compartilhado de componentes.
Da poluição ao endividamento: os impactos da obsolescência programada para a sociedade
Para o professor Leonardo Oliveira, do Departamento de Tecnologia do Design da UFMG, embora a implementação da obsolescência programada tenha atingido seu objetivo inicial de estimular o consumo e movimentar a economia, ela também expõe a sociedade a um aumento crescente dos impactos ambientais.
"Isso se deve a uma prática completamente antiecológica, que leva ao esgotamento dos recursos, ao crescimento alarmante na geração de lixo eletrônico e de plásticos, ao excesso de embalagens, às emissões por superaquecimento, à diminuição da eficiência energética e ao truncamento do ciclo de vida do produto, entre outros problemas", lista.
O professor Aécio Oliveira, do Departamento de Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará (UFC), acrescenta que o modelo econômico atual é caracterizado pela ênfase na produção excessiva em prol do lucro. Essa dinâmica, explica, motiva o lançamento frequente de novos designs, mesmo quando não apresentam melhorias em sua funcionalidade essencial.
“A produção segue uma moda, e o descarte se torna comum, pois os produtos geralmente não têm conserto ou não vale a pena consertá-los. É mais vantajoso comprar outro modelo, sempre um novo. Tudo isso significa uma obsolescência que foi estabelecida no planejamento estratégico da empresa”, observa.
“No entanto, produz-se mais, descarta-se mais. Todos esses itens que não têm conserto viram lixo", enfatiza. Para se ter ideia, o Brasil figura entre os maiores produtores desse resíduo eletrônico (e-lixo) do mundo, com uma geração anual de 2,4 milhões de toneladas.
Apesar do volume expressivo de material descartado, apenas cerca de 3% é oficialmente reciclado e rastreado, segundo relatório Monitor Global de E-lixo da Organização das Nações Unidas (ONU).
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No Brasil, a principal legislação brasileira que regula o descarte adequado do lixo eletrônico é Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), estabelecida pela Lei n.º 12.305/2010. Entre as suas diretrizes, destaca-se a obrigatoriedade da destinação desses materiais para reciclagem e tratamento, visando à prevenção de danos ambientais.
Além da poluição, as consequências da obsolescência programada incluem o endividamento da população, especialmente daquela com menor renda. Para o professor Aécio, a incorporação de novidades, inovações e tecnologias emergentes é intrínseca ao modo de vida social contemporâneo, exercendo influência direta na configuração do comportamento individual e coletivo.
Nesse contexto, a obsolescência, ao gerar o receio de perder a novidade, leva ao consumo imediato, antes que a tecnologia ou a própria percepção se tornem obsoletas. “Esse impacto, na verdade, configura um apelo ao consumismo”, frisa.
De acordo com um levantamento realizado pela Fecomércio Ceará, por meio do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento do Comércio (IPDC), no primeiro trimestre deste ano, 13,5% dos consumidores de Fortaleza optaram por adquirir eletroeletrônicos a prazo, assumindo, consequentemente, dívidas.
E os direitos do consumidor?
Em 2017, o escândalo do "BatteryGate" evidenciou a discussão sobre obsolescência programada, quando a Apple admitiu ter reduzido o desempenho de iPhones antigos para diminuir a vida útil da bateria. Em março de 2020, a empresa foi obrigada a pagar indenizações que totalizaram US$ 310 milhões.
Ainda não existe legislação específica no Brasil para coibir essa prática. Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 805/2024, que busca incluir a obsolescência programada no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Aprovado no Plenário do Senado Federal em 15 de março de 2024, o projeto encontra-se em análise na Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação e Informática (CCT).
O Senador Dr. Hiran (PP) foi designado relator e está responsável por elaborar um parecer sobre a matéria. Antes de ser aprovado, o projeto de lei ainda deverá passar por outras comissões e ser submetido a votações em diferentes instâncias legislativas.
No entanto, segundo Airton Melo, coordenador jurídico do Procon Fortaleza, dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (CDC) podem amparar o consumidor em tais situações. "Como exemplo, citamos o artigo 21 do CDC, que dispõe que, no fornecimento de serviços que tenham por objetivo a reparação de qualquer produto, considerar-se-á implícita a obrigação do fornecedor de empregar componentes de reposição originais, adequados, eficientes e seguros e, quanto aos essenciais, contínuos", explica.
Já a garantia legal de adequação de produtos ou serviços é assegurada pelo artigo 24 do CDC, independentemente de termo expresso, sendo vedada a exoneração contratual por parte do fornecedor. O artigo 32 do mesmo código estabelece que fabricantes e importadores devem garantir a oferta de componentes e peças de reposição enquanto o produto for fabricado ou importado, e por um período razoável após a cessação da produção ou importação, conforme regulamentação legal.
Embora a seção que trate das práticas abusivas não aborde explicitamente a obsolescência programada, os órgãos de defesa do consumidor podem enquadrá-la em um dos dispositivos do CDC, comprovando o prejuízo aos consumidores.
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