Assim como em Jeri, empresário disputou posse de Fortim há 30 anos; conheça a história

Escrito por
Bruna Damasceno bruna.damasceno@svm.com.br
Legenda: Fortim oferece belas praias, rios e aventuras
Foto: Kid Junior

Há 30 anos, Fortim foi palco de uma disputa territorial semelhante à que Jericoacoara enfrenta atualmente. Em 1993, o empresário João Gentil Júnior reivindicou a propriedade das terras do município cearense em questão, alegando se tratar de um bem dele.

Segundo matérias publicadas no Jornal Diário do Nordeste, Gentil afirmava ser dono de toda a área urbana, abrangendo 90% da cidade de Fortim.

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O processo de reivindicação de posse chegou a interromper a construção do Centro de Cultura e Artesanato, de Abastecimento e a Delegacia de Polícia do município, mas as obras foram retomadas e concluídas posteriormente. 

Notícia publicada em novembro de 1993, no Jornal Diário do Nordeste, reportou que a força da comunidade teve uma vitória quando a Justiça permitiu a conclusão e a entrega desses equipamentos públicos. 

“A vontade de João Gentil, porém, não prosperou, e de imediato o prefeito Caetano Guedes conseguiu, junto à desembargadora Águeda Passos, derrubar a liminar concedida na época pelo juiz de direito Edvalson Florêncio Marques Batista, da 2ª Vara da Comarca de Aracati", diz o texto.

FOTO DO JORNAL
Legenda: Matéria publicada no dia 20 de novembro de 1993
Foto: Arquivo Diário do Nordeste / Pesquisa de Juliana Matos

Em 1995, a disputa continuava. A situação levou ao afastamento do prefeito da época por 48 horas. Conforme noticiado no Diário do Nordeste, os relatos eram de que o empresário João Gentil, quando Fortim desmembrou-se de Aracati (1992) para tornar-se município, procurou o primeiro prefeito eleito, Caetano Guedes, alegando ser o proprietário de “90% das terras do recém-criado município”.

Como o Diário relatou à época, "o prefeito teria solicitado ao empresário que abrisse mão das terras onde famílias residiam há mais de um século. João Gentil não teria concordado, daí o interesse em afastar da prefeitura aqueles que não apoiassem a eventual e futura desapropriação das terras".

Jornal da época
Legenda: Em 21 outubro de 1995, o Diário do Nordeste reportou que o prefeito da época foi afastado por suposto interesse do empresário. "As pessoas se inquietavam e faziam seus comentários defendendo o prefeito e acusando os vereadores de fazerem parte do esquema do empresário João Gentil, que se diz proprietário de 90% das terras do município do Fortim", dizia o texto. O afastamento do prefeito impediu o uso de verbas para dar andamento a obras.
Foto: Arquivo Diário do Nordeste / Pesquisa de Juliana Matos

Legenda: Matéria publicada em 20 de outubro de 1995
Foto: Arquivo Diário do Nordeste / Pesquisa de Juliana Matos

Após dois dias, o prefeito retornou ao cargo com o apoio da população, que dizia palavras de ordem como 'Fora, grilheiros'. Uma moradora disse: "O clima era de intranquilidade. O povo se sente inseguro, mas com a garantia de posse do prefeito Caetano, a situação foi revertida. Em Fortim, a questão central se tornou econômica e latifundiária. A política ficou em segundo plano. Os direitos populares estavam ameaçados por um grupo de empresários e latifundiários que se diziam donos da cidade".

Legenda: O prefeito recebeu o apoio da população ao retornar.
Foto: Arquivo Diário do Nordeste / Pesquisa de Juliana Matos

Outra questão era que a escritura das terras apresentada pelo empresário não era reconhecida pelo Estado. Além de negócios em Fortim, Gentil foi o idealizador do projeto Porto das Dunas. 

A coluna pediu à Procuradoria Geral do Estado (PGE) esclarecimentos sobre o status final do processo judicial no qual o empresário pleiteava a propriedade de Fortim, mas não recebeu as informações até esta publicação. Quando a resposta for enviada, esta coluna será atualizada. 

A Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), em resposta a nosso pedido de informações, disse não haver, no âmbito de suas competências, processos relacionados aos terrenos e ao empresário em questão. 

A coluna não conseguiu contato com a gestão de Fortim, exceto com o secretário de Turismo, Flávio Marcelo, em 11 de janeiro. Ele informou que buscaria mais informações, mas não houve retorno da administração municipal até o fechamento desta matéria.

Jericoacoara: a história se repete 

Agora, em 2023, a empresária Iracema Correia São Tiago protagonizou episódio análogo: ela afirma que 80% das terras de Jericoacoara são dela. O processo ainda está em andamento. 

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Um acordo foi firmado, sem participação da comunidade, segundo o Conselho Comunitário de Jeri. Em outubro do ano passado, o Ministério Público do Estado (MPCE) recomendou a suspensão do acerto.

Como surgem esses ‘donos’ das cidades

Esses dois casos emblemáticos no Ceará provocam a reflexão sobre por que, historicamente, grupos e famílias se consideram donos de uma cidade e quais as consequências disso para a coletividade. 

O estudo 'Terrenos da desigualdade', da confederação internacional Oxfam Brasil, explica que a história do País é marcada pela concentração de terras, agravando desigualdades e impedindo o desenvolvimento sustentável. 

“A relação entre o exercício de poder e a propriedade da terra se consolidou ao longo da formação do Brasil. Presente desde a época da colonização até 1832, o sistema das Sesmarias concedia terras brasileiras a amigos do rei", diz o relatório. 

Em 1850, esse modelo foi substituído pela Lei de Terras, cuja finalidade era acabar com a aquisição gratuita de terrenos, definindo que só teria acesso quem pudesse pagar por ele.

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Contudo, as consequências dessa legislação, já extinta, são vistas até hoje: as terras continuam concentradas nas mãos de poucos. Os tais "donos" das cidades são, portanto, um legado desse capítulo da história brasileira.

Em 1988, com a Constituição, as questões socioeconômicas envolvendo as propriedades passaram a ser consideradas na reforma agrária, com o objetivo de redistribuí-las. Mas, até hoje, a medida não conseguiu solucionar completamente esse problema.

Para se ter ideia, essa desigualdade fundiária histórica repercute em uma rígida desigualdade de gênero, com os homens controlando a maior parte dos estabelecimentos rurais e detendo 87,32% dos estabelecimentos e 94,5% das áreas rurais brasileiras.

Print com os ODS
Legenda: A agenda ESG está alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, um conjunto de 17 metas globais estabelecidas para serem alcançadas até 2030. Os dois primeiros ODS, em particular, priorizam a erradicação da pobreza e da fome em todas as suas formas, incluindo o direito fundamental ao acesso à terra para a população garantir a subsistência e produzir seus próprios alimentos
Foto: Reprodução ONU

Os novos desafios de Jeri e Fortim no Brasil de hoje

Hoje, Fortim e Jeri compartilham outra semelhança: a reconfiguração da dinâmica a partir da chegada de empreendimentos de luxo. Nesse novo contexto, é preciso pensar sobre os impactos sociais e ambientais gerados pelos negócios que ali se instalam.

Embora as novas empresas estimulem a economia local, a geração de empregos não deve servir para justificar a exploração desenfreada de recursos naturais ou para legitimar os danos causados à sociedade e ao meio ambiente. 

Inclusive, do outro lado da duna de Fortim, a comunidade do Cumbe, em Aracati, sofre a perda de sua identidade em razão das instalações de parques eólicos, os quais, teoricamente, deveriam contribuir para um desenvolvimento sustentável e justo.

O documentário 'Filhos do vento', dos cearenses Euziane Bastos e Rogério Bié, mostra esse outro lado da história:

Desbravando Fortim: do paraíso à primeira indústria da charqueada 

Rio Jaguaribe
Legenda: Uma das opções de lazer em Fortim é o passeio de barco no rio Jaguaribe
Foto: Kid Junior

Se você nunca foi a Fortim, distante cerca de 135 km de Fortaleza, pelo menos já se deparou com imagens convidativas de um mar todinho azul contornando a cidade. É um sintoma comum, após esse contato visual, querer se embrenhar nessas águas iluminadas pelo sol e se aventurar em um barco pelo Rio Jaguaribe.

É literalmente um cenário de novela, como foi em 1995, para as gravações de "Tropicaliente", da Rede Globo. E também de filme, como em 2011, com o longa “Não se Preocupe, Nada Vai Dar Certo”.

Jornais
Legenda: Entre abril e maio de 1995, as gravações da novela nas praias do Ceará foram destaque no caderno de cultura do jornal Diário do Nordeste.
Foto: Arquivo Diário do Nordeste / Pesquisa de Juliana Matos

Mas nem só de cartão postal se fez Fortim. Há muita história, sobretudo ligada à economia cearense, no século XVIII. Atualmente, a cidade vive da pesca industrial e do turismo. No entanto, essas terras já foram o principal centro da charqueada no Ceará, quando ainda era distrito de Aracati.

Foto do jornal
Legenda: A história da charqueada já foi abordada em pesquisas e em documentários, mas ainda é pouco difundida fora da academia. Em 18 de abril de 2011, o tema foi destaque no jornal Diário do Nordeste, com o documentário "Charqueadas"
Foto: Arquivo Diário do Nordeste / Pesquisa de Juliana Matos

Com o gado proveniente de Pernambuco e do Rio Grande do Norte, a carne era prensada, salgada e desidratada ao sol e ao vento para essa indústria, localizada às margens do Rio Jaguaribe. O objetivo era reduzir as perdas de gado por mortalidade ao diminuir o tamanho do rebanho no fim da jornada. 

Entretanto, a seca prolongada entre 1777 e 1779 fez charqueiros migrarem para Pelotas, no Rio Grande do Sul. Enquanto o mercado gaúcho prosperava com essa técnica em um clima mais favorável, o rebanho cearense definhava devido à estiagem. 

Legenda: Matéria de 6 de novembro de 2011, no Jornal Diário do Nordeste
Foto: Arquivo Diário do Nordeste / Pesquisa de Juliana Matos

Entenda melhor a temática 4 pontos que você precisa saber

Além dos arquivos do jornal Diário do Nordeste, a bibliografia consultada foi:

Girão, V. C. (1996). As charqueadas. Revista do Instituto do Ceará. Recuperado de https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1996/1996-AsCharqueadas.pdf 

Frota, L. F. R., & Gondim Neto, L. (n.d.). CHARQUEADA: A HISTÓRIA DA CARNE DE SOL NO CEARÁ E SUA ROTA DO ICÓ AO ARACATI. Educação e Utopia, 1(1). Recuperado de http://www.periodicos.ufc.br/eu/article/view/17601

Braga, R. (1996). Um capítulo esquecido da economia pastorial no Nordeste. Revista do Instituto do Ceará. Recuperado de https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1947/1947-CapituloEsquecidoEconomiaPastorilNordeste.pdf.

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