Anúncio de saída da Ford do Brasil surpreende e preocupa mercado

Montadora irá encerrar atividades das fábricas no País, incluindo a unidade da Troller, em Horizonte. Empresários cobram redução do Custo Brasil e especialistas apontam que decisão acompanha reformulação geral do setor

O anúncio da Ford de fechar as fábricas no Brasil pegou o mercado, governo e trabalhadores de surpresa, gerando preocupação de todos os lados. A decisão afeta a única montadora no Estado – a unidade da Troller, em Horizonte, que emprega cerca de 470 cearenses – e fábricas em Camaçari (Bahia) e Taubaté (São Paulo).

A Federação das Indústrias do Ceará (Fiec) lamentou o anúncio, destacando empregos e renda que serão perdidos, bem como o corte de investimento em tecnologia. “A Fiec tomará conhecimento de todos os detalhes da operação e irá acompanhar o caso, trabalhando para o melhor desfecho possível”, informou em nota assinada pelo presidente da entidade, Ricardo Cavalcante.

O secretário do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Ceará, Maia Júnior, também lamentou a decisão. “Vamos tentar trabalhar para evitar isso e encontrar uma solução para manter a fábrica de alguma forma no Ceará”, disse. A unidade em Horizonte deverá continuar funcionando até o quarto trimestre deste ano, segundo comunicado oficial da Ford.

O governo da Bahia emitiu comunicado em que diz já trabalhar em busca de “alternativas" para assumir a fábrica da Ford em Camaçari, onde 4,06 mil trabalhadores estão envolvidos na produção dos modelos EcoSport e Ka e motores, além de áreas administrativas. Uma das tentativas seria atrair um investidor chinês.

De acordo com o texto, o governador Rui Costa (PT) entrou em contato com a Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb) para discutir a criação de um grupo de trabalho onde serão avaliadas as possibilidades. O governo estadual, segue a nota, também entrou em contato com a embaixada chinesa para sondar possíveis investidores com interesse em assumir o negócio.

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), foi mais um a lamentar publicamente o encerramento da produção de veículos da Ford no Brasil. Sem citar demissões na fábrica de Taubaté (SP), onde a montadora emprega cerca de 830 funcionários, o tucano afirmou que a empresa manterá 700 trabalhadores em atividades no município de Tatuí (SP) e na capital do Estado. Ao todo, a decisão da montadora de encerrar a produção no País afeta diretamente 5,3 mil pessoas empregadas pela montadora nas três fábricas que serão desativadas.

Os números são de trabalhadores empregados diretamente pela Ford e não incluem, portanto, os empregados de fornecedores de peças da montadora, que também são afetados pela medida. Segundo sindicatos, contando os indiretos e os fornecedores, o impacto econômico do fim das atividades produtivas será bem maior.

A Ford informou que vai “imediatamente” trabalhar num plano “justo e equilibrado” com os sindicatos para minimizar impactos do fechamento das fábricas.

O impacto financeiro da decisão é de cerca de US$ 4,1 bilhões em despesas não recorrentes, conforme a montadora. Do total, cerca de US$ 2,5 bilhões terão impacto direto no caixa do grupo americano, sendo, em sua maioria, relacionados a compensações, rescisões, acordos e outros pagamentos. Outros US$ 1,6 bilhão decorrem de impacto contábil atribuído à baixa de créditos fiscais, depreciação acelerada e amortização de ativos fixos.

Custo Brasil

A Anfavea, entidade que representa as montadoras instaladas no País, atribuiu à ausência de medidas capazes de aliviar o custo de produção no Brasil a decisão da Ford. “A Anfavea não vai se manifestar sobre o tema. Trata-se de uma decisão estratégica global de uma das nossas associadas. Respeitamos e lamentamos. Mas isso corrobora o que a entidade vem alertando, há mais de um ano, sobre a ociosidade da indústria (local e global) e a falta de medidas que reduzam o Custo Brasil”, diz a entidade na nota.

No mesmo tom, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou que o fechamento das fábricas da Ford no Brasil seria, na sua visão, uma demonstração da “falta de credibilidade” do Governo Federal. Ele também considera que o anúncio da montadora evidencia a ausência de regras claras, de segurança jurídica e de um sistema tributário racional.

O Ministério da Economia lamentou, em nota, a decisão da montadora, mas buscou descaracterizar qualquer influência de políticas do atual governo na ação da montadora. No comunicado, a decisão é retratada como “global e estratégica” da empresa. Além disso, a Economia afirmou que a medida “destoa da forte recuperação observada na maioria dos setores da indústria no País, muitos já registrando resultados superiores ao período pré-crise”.

Mais cedo, o vice-presidente Hamilton Mourão se surpreso com a decisão da Ford de fechar suas fábricas no Brasil e disse que a empresa “ganhou bastante dinheiro” no País e que ela poderia ter retardado a saída. “Uma empresa que está no Brasil há praticamente100 anos. Acho que ela poderia ter retardado isso aí e aguardado, até porque o nosso mercado consumidor é muito maior do que outros”, declarou.

A empresa começou o ano de 2020 com 8 mil funcionários no Brasil. De lá para cá, a companhia foi realizando desligamentos. Hoje, conta com 6.171 contratados, dos quais 5 mil serão demitidos. O grupo remanescente vai manter algumas operações locais. A sede da montadora na América do Sul continuará sendo no Brasil, e o campo de provas de Tatuí, bem como o centro de desenvolvimento da Bahia continuam operando.

Reformulação no mercado

Embora tenha sido um choque para quase todo mundo, quem acompanha mais de perto esse mercado, porém, não se surpreendeu tanto assim. Os analistas dizem que a indústria automobilística vem tentando se reinventar no mundo todo, e uma das alternativas é focar nos veículos elétricos e híbridos. A corrida para chegar a produtos viáveis está deixando para trás empresas e países que entraram tarde, ou ainda nem participam da disputa, avalia Cássio Pagliarini, da Bright Consulting.

Esse processo exige elevados investimentos e, no caso da Ford, tudo indica que a matriz não quis ter esse gasto no Brasil. O movimento anunciado ontem é similar ao da Mercedes-Benz, que em dezembro fechou sua fábrica de automóveis em Iracemápolis (SP). 

No Brasil, a situação do setor automotivo já vem em ritmo lento desde a crise de 2014, e foi intensificada pela queda drástica no mercado provocada pela pandemia da covid-19. Não bastasse a situação global, o governo brasileiro não tem demonstrado interesse em definir uma política industrial que indique se o caminho aqui será o de carros elétricos, híbridos ou híbridos a etanol.

“Está faltando uma orquestração política no setor”, diz Pagliarini, que foi funcionário da Ford por 25 anos. Em sua opinião, “há um perigo muito grande” de outras montadoras seguirem a decisão da Ford. “Temos muita capacidade instalada e não cabem tantas fábricas, aqui e no mundo”. 

A visão é reforçada pelo economista Alcântara Macêdo, para quem o fechamento das fábricas não tem a ver com o mercado cearense nem brasileiro, mas com uma reformulação geral do mercado automobilístico. Ele compara a mudança com a ascensão do trabalho remoto durante o isolamento social, que segue como tendência para o pós-pandemia.

“Nós estamos tendo várias mudanças nos negócios, uma delas é o home office, que tem crescimento exponencialmente nos Estados Unidos e em São Paulo, no Brasil. Essa modificação levou as grandes empresas a fazer uma reflexão de posição estratégica de negócios. E não é só com a Ford. A Mercedes-Benz também está fechando no Brasil”, destaca.

Apesar das consequências negativas, como o desemprego, Macêdo acredita que a decisão irá trazer um novo modelo de rendimento. “Muita gente vai perder emprego. Alguns mais capacitados vão ser absorvidos e outros mercados vão se abrir. É semelhante ao que aconteceu com as fábricas de cartolas e bengalas, de máquinas de datilografar: encontraram outros negócios. Temos que enfrentar o momento com coragem, procurando novos modelos, aumentar produtividade e ter uma visão social constante”.

Histórico

A Ford foi a primeira montadora a se instalar no País, em 1919, mas vinha enfrentando fortes quedas nas vendas no Brasil, realidade que foi acentuada pela pandemia da covid-19. A empresa vinha perdendo espaço para concorrentes. No acumulado de 2020, segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), a fatia da montadora era de 7,14%, atrás de General Motors, Fiat, Volkswagen e Hyundai, considerando automóveis e comerciais leves. Há poucos anos, ela tinha 12% de participação nas vendas.

Em relação à unidade cearense, a fábrica da Troller foi inaugurada no fim do década de 1990 em Horizonte e foi vendida para a Ford em 2007 após um ano de negociações. Depois da aquisição, a produção da fábrica passou de 80 para 150 unidades por mês, crescendo 87% em quatro anos.