Povo Jenipapo-Kanindé avança no ensino e saúde, mas há 9 gerações espera por demarcação em Aquiraz

Aldeia encabeçada por três mulheres conquistou diversos direitos nas últimas décadas, mas ainda teme perdas no território pela especulação empresarial

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Alunos da escola da comunidade iniciam a semana pedindo proteção durante a dança do toré
Foto: Kid Jr

“Eu moro numa lagoa, só vejo os peixes nadar/Moro perto de uma duna, que ela emenda na lagoa/Moro perto de um lago, que ele sangra para o mar/ É que eu vivo na mata enterrada na areia e de pé no chão…”

O cântico é entoado por crianças do povo indígena Jenipapo-Kanindé, morador da Lagoa da Encantada, em Aquiraz, durante a visita da reportagem ao local. Eles fazem parte da 9ª geração de nativos da região, como faz questão de enfatizar Maria de Lourdes da Conceição Alves, a Cacique Pequena, primeira mulher cacique do Brasil, escolhida em 1995.

Esta é a quinta e última reportagem da série "Originários", do Diário do Nordeste, que ouviu demandas e dilemas dos 4 povos indígenas da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF) e presenciou danças e rituais que eles tentam conservar para as próximas gerações.

Foi pela luta histórica de Pequena e outros membros do povo que a comunidade recebeu luz elétrica, estrada de terra, escola, posto de saúde e centro de assistência social. Porém, a maior demanda ainda hoje, além do maior sonho de Pequena, é ver a terra totalmente demarcada e registrada “no papel”.

O processo começou em 1999, ano em que o território foi delimitado no mapa, e prosseguiu em 2017, com a demarcação oficial do espaço. Uma decisão favorável havia sido tomada em 2011, mas permaneceu embargada por seis anos por causa da contestação de uma empresa.

“Paramos na Encantada e queremos ficar o resto da vida. Estamos aqui lutando pela defesa do nosso povo, da Mãe Lagoa, da Mãe Terra, pra ter onde plantar e trabalhar. Isso tudo faz parte de nós, já estamos bem plantados e enraizados”, ressalta Pequena, esperançosa de boas notícias para a futura 10ª geração.

Legenda: Cacique Pequena conseguiu diversos equipamentos para o povo Jenipapo-Kanindé desde 1995, mas sonha com demarcação
Foto: Kid Jr

Atualmente, segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o local passa pelo processo de desintrusão, ou seja, a remoção de ocupações não-indígenas. Só depois da retirada total é que pode haver a homologação final dos 1.734 hectares. Não há prazo para isso.

Mesmo sem atribuição direta sobre a demarcação dos territórios, a Secretaria Estadual dos Povos Indígenas (Sepince) declarou que "está comprometida com a aceleração do processo" para os povos cearenses. "Para essa demanda avançar, a Secretaria estará em constante diálogo com os povos indígenas do Ceará, Funai, Ministério dos Povos Indígenas e órgãos competentes", disse em nota.

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Educação e saúde

Ao todo, cerca de 460 indígenas Jenipapo-Kanindé vivem numa terra litorânea, à beira da Lagoa da Encantada e perto do Morro do Urubu. A geografia do local é homenageada em canções, pinturas e rituais da comunidade, como frisa Carline Alves, diretora da Escola Indígena Jenipapo-Kanindé (Eijk) e neta de Pequena.

A educação indígena, inclusive, passou por um grande avanço na comunidade. Até o início dos anos 2000, as aulas eram ministradas embaixo das mangueiras do antigo cacique Odorico. A Eijk só começou a funcionar em 2009, e hoje oferta do Ensino Infantil ao Ensino Fundamental.

“A vó, quando começou, sempre quis levar o povo junto. Ela não tem boa leitura e escrita, então a gente escrevia por ela. Assim, fomos participando, nos engajando e reavivando a nossa cultura. A educação é o alicerce, desde a creche a gente já envolve os meninos”, avalia a diretora.

Legenda: Escola Indígena é fruto de reivindicação história; antes, aulas ocorriam debaixo de árvores
Foto: Kid Jr

Fábio Alves, professor indígena e vice-presidente da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (Oprince), reflete que, ainda que haja uma unidade própria, o povo Jenipapo-Kanindé ainda precisa de um olhar mais preciso sobre dois extremos: a educação infantil e o Ensino Médio.

No primeiro, defende a qualificação de prédios próprios, sem serem anexos ou alugados, e com profissionais devidamente contratados. No outro, reconhece carências na quantidade de escolas de Ensino Médio. Em Aquiraz, por exemplo, quem começa essa etapa escolar precisa se descolar 8 km até a escola estadual convencional mais próxima.

“Isso quebra o elo de cultura porque, lá, eles não têm um olhar para os povos originários. Ainda precisamos do apoio do Estado. Nossos governos não estão preparados para a vivência das escolas indígenas do Ceará”, argumenta.

Carline Alves ressalta a importância dessa formação ao lembrar que, hoje, muitos professores da comunidade são ex-alunos da Eijk. Ou seja, estudaram fora da aldeia e retornaram para repassar seus conhecimentos, além de despontarem como possíveis lideranças no futuro. 

Na saúde, a mobilização dos representantes levou, em 2005, à implantação do Polo Base de Saúde. Hoje, parte dos funcionários também é indígena. Em janeiro de 2021, a aldeia também foi uma das primeiras contempladas com a vacinação contra a Covid-19, seguindo o planejamento oficial do Ministério da Saúde. 

A pandemia, aliás, foi outro marco no movimento comunitário. No auge dos casos no Ceará, líderes e jovens decidiram fechar o acesso à aldeia, com barreiras físicas - o chamado “Movimento da Corda” -, com medo de levar a contaminação aos grupos vulneráveis. O caso exemplifica o modo de agir dos Jenipapo-Kanindé: iniciativa e trabalho prático.

Legenda: Crianças são incentivadas a usar cocar e maracas e a entoar cânticos ancestrais
Foto: Kid Jr

Outras demandas

Quando a reportagem esteve na aldeia, no início de fevereiro, se deparou com uma estrada arenosa e acidentada. Segundo Carline Alves, uma via qualificada seria ideal, até porque os indígenas também trabalham com o turismo comunitário e recebem grupos de visitantes externos.

Como atua rotineiramente com a juventude, ela também vê a necessidade de políticas públicas para esportes, como areninha e pracinha; e a implementação de programas de trabalho, como cooperativas, para mulheres e agricultores.

Para a representante, o progresso não pode ser desvinculado dos povos originários. “A natureza pra gente é tudo, sem ela somos que nem um peixe fora d'água. Mas a gente não fica isolado. Muitos ainda chegam aqui com o estigma da oca, mas ainda bem que alguns livros já estão atualizados com o que somos hoje”, compreende.

Em nota, a Prefeitura de Aquiraz afirmou que apoia diretamente a comunidade com o Centro de Referência da Assistência Social (Cras), que oferece serviços de atenção a famílias e crianças, vale-gás, cesta básica, kit bebê e auxílio funeral. 

“A equipe de profissionais do Cras Indígena é formada, em sua maioria, por indígenas; desta forma, é maior a identificação cultural e linguística entre as famílias e indivíduos atendidos e os profissionais da unidade, fazendo com que o atendimento seja mais eficiente e humanizado”, destaca o informe.

Sucessão

Em 2010, muito doente, a cacique Pequena achou que em breve estaria reunida com a Mãe D’Água. Por isso, iniciou o processo de decisão sobre quem deveria sucedê-la. O “cargo” foi oferecido a homens, mas mesmo eles acreditaram que seria justo manter uma mulher. 

Como resultado, hoje o povo é conhecido como “a aldeia das três caciques”. Uma delas é Maria da Conceição, ou “Bida”, a cacika Jurema. A segunda, Juliana Alves, a cacika Irê, agora é titular da inédita Secretaria dos Povos Indígenas (Sepince) do Governo do Ceará. E Pequena, superando a enfermidade, permanece com o “grito final” na comunidade.

“Nós como mulheres, tendo mulheres caciques, somos mais valorizadas. Ela sofreu preconceito do próprio marido, dentro de casa, porque ele não queria aceitar. Eu me sinto muito orgulhosa”, reflete Carline.

Legenda: Delimitação da terra é sinalizada com placas do Ministério da Justiça
Foto: Kid Jr

Festas típicas

O povo Jenipapo-Kanindé tem uma relação tão forte com a terra que seus principais festejos mesclam espiritualidade com etapas do processo demarcatório.

A Festa do Marco Vivo, celebrada em 9 de abril, começou em 1999, quando foi concluído o primeiro processo da demarcação, que é a delimitação: ali foram conhecidos os 1.734 hectares. 

Um dia antes, um grupo vai à mata e corta o tronco da imburana, uma das plantas nativas desse povo. Já no dia, ele é colocado no centro do ritual, que ocorre no Cajueiro Sagrado próximo à casa da cacique Pequena, regado a comidas típicas como batata doce, macaxeira, peixe e tapioca

“Enfeitamos o tronco, fazemos o ritual, cantamos o toré, e no final da festa, temos o desfile do índio Jenipapo-Kanindé, aquele que é o mais elegante, com todos os traços e vestes”, descreve Carline.

Ao fim da tarde, um dos pontos extremos do mapa da delimitação é escolhido, e nele os indígenas plantam a imburana, que renascerá como um dos marcos de demarcação daquela terra. 

Mais recente é a Festa do Mocororó, no dia 4 de novembro, iniciada em 2017, quando a demarcação foi finalmente autorizada pela Justiça. Como cajueiros abundam naquelas terras, muitas famílias se especializaram na fabricação do mocororó, feito da fermentação de cajus azedos.

“Todo mundo bebe. Tem até a competição de quem toma um litro mais rápido, mesmo sendo alcoólico se beber em muita quantidade. É o dia todinho comemorando”, diz a diretora.

Raízes fincadas

Como os rituais atestam, a comunhão dos Jenipapo-Kanindé com a natureza é profunda. A Lagoa da Encantada simboliza a Mãe D’Água e, por isso, tem seu conteúdo e entorno totalmente preservados e defendidos contra a exploração de empresas que querem extrair água para a indústria.

O toré cantado e dançado às segundas-feiras, na escola, muitas vezes é puxado pelos próprios alunos como forma de trazer boas energias para a semana, de acordo com o professor Fábio Alves. É a ancestralidade materializada em ato.

“Hoje, estamos no céu, mas ainda temos muito o que conquistar”, reflete a diretora Carline Alves. “Sou muito feliz em estar à frente da escola e reafirmar nossa cultura com nossos pequenos: eles são nosso futuro”.

Durante a entrevista, sentados num banco de madeira, pergunto à cacique Pequena o que significa o nome da etnia. Ela introduz que jenipapo é uma planta da qual se aproveita tudo. Seus frutos são gostosos e podem ser usados para fazer vinho, geleia e suco. Já a madeira é bem resistente. Ela dá uma pausa e solta:

— Significa que somos um povo forte. 

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