Por que o Ceará criou uma Política para Migrantes, Refugiados e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas?
Estado recebeu mais de 37 mil migrantes internacionais desde 2000, mas ainda é uma porta de saída para atividades criminosas
Migrar e escolher um novo local para viver é um dos direitos humanos. Porém, esse processo pode ser complexo e demanda estrutura de acolhimento e garantia de direitos a essas pessoas, seja por desejo próprio, em situação de refúgio ou apátridas (sem nacionalidade reconhecida por nenhum país). Nesse cenário, o Ceará atualizou a política estadual para atender a esses perfis.
O Decreto nº 36.824, de 2 de setembro de 2025, foi publicado no Diário Oficial do Estado (DOE-CE) e estabelece a Política Estadual para Migrantes, Refugiados, Apátridas e o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Ela é uma evolução de um Programa anterior, criado em 2011.
O novo marco normativo reitera o compromisso do Estado com a proteção de pessoas em situação de mobilidade e vulnerabilidade, prevendo ações coordenadas entre diferentes órgãos públicos e a sociedade civil.
Afinal, o Ceará é um dos principais destinos no Nordeste. No período de 2000 a 2024, o Estado registrou quase 37,3 mil migrantes internacionais, cerca de 22% dos mais de 170 mil contabilizados em toda a região.
Os dados são do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), compilados pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). Só no ano passado, foram cerca de 1,3 mil.
O que a nova Política vai fazer?
Um dos principais problemas que norteia a Política estadual é o tráfico de pessoas, que abrange práticas como:
- recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas mediante ameaça ou uso da força
- rapto, fraude, engano, abuso de autoridade ou exploração de situação de vulnerabilidade
- entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para fins de exploração sexual ou prostituição
- trabalho ou serviços forçados, servidão, escravidão ou práticas análogas
- remoção de órgãos
Como mostrou o Diário do Nordeste no fim de julho, devido às conexões internacionais do hub aeroportuário, o Ceará é uma das principais portas de saída do Brasil de pessoas nessa condição.
Historicamente, segundo a Secretaria dos Direitos Humanos do Ceará (Sedih), as principais vítimas passaram de mulheres traficadas para fins sexuais para profissionais do ramo de tecnologia, atraídos para outros países com a promessa de altos salários.
A execução da Política será da Coordenadoria de Políticas Públicas dos Direitos Humanos, por meio de dois principais instrumentos:
- Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP)
- Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM)
As duas estruturas promoverão atendimentos humanizados, encaminhamentos à rede de assistência, articulação com instituições públicas e privadas, promoção de campanhas educativas, e pesquisas e diagnósticos sobre violações de direitos.
Entre os objetivos, estão:
- a promoção da documentação básica e da regularização migratória
- fortalecimento de parcerias com embaixadas, consulados e órgãos internacionais
- integração com os sistemas de justiça, segurança e proteção social.
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Histórico de atuações
O Ceará já possui uma trajetória de cerca de duas décadas participando de iniciativas de combate à violação dos direitos de migrantes e pessoas traficadas.
Isso porque, entre 2003 e 2004, o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (Unodc) investiu numa parceria com o Governo Federal para iniciar o processo de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, por meio de um projeto piloto que focou em quatro Estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Ceará.
À época, a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) apontou que os dois primeiros possuem os principais aeroportos internacionais do país, enquanto os demais são “locais de origem de grande parte das vítimas desse crime”.
Nessa mobilização, em abril de 2005, foi implantado o Escritório de Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e Assistência à Vítima do Estado do Ceará (EEPTSH), no prédio do Ministério Público Federal (MPF).
Em 2007, já como Núcleo, o equipamento foi transferido para a Secretaria da Justiça e Cidadania (Sejus). Em setembro de 2011, por meio do Decreto n° 30.682, foram instituídos o Programa Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PETP) e o Núcleo de Atendimento às Vítimas.
No mesmo ano, a Sejus inaugurou o Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante (PAAHM) no Aeroporto Internacional Pinto Martins, para atender pessoas inadmitidas e deportadas, vítimas ou não do tráfico de pessoas, nos desembarques e embarques domésticos e internacionais.
Em meados de 2015, por conta de uma crise humanitária envolvendo guerras no Oriente Médio, começaram a surgir demandas por solicitações de refúgio no Estado. Como consequência, em dezembro de 2018, o Programa passa a ser chamado de Programa Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Em 2023, houve a criação da Sedih, que passou a gerir os equipamentos da área. Em 2024, a Pasta inaugurou duas novas unidades do Posto Avançado de Atendimento: na Rodoviária e no Aeroporto de Fortaleza.
Atualmente, o Programa tem uma equipe de atendimento multidisciplinar e é responsável por promover o acolhimento, o apoio a registros migratórios e a orientação de migrantes e refugiados que chegam ao Ceará.
Em 2023, ano com os dados mais recentes disponíveis, ele atendeu 778 pessoas, sendo 37% vindas da Venezuela, 24,5% de Guiné-Bissau, 10% da Colômbia, 8,5% de Cuba e 2,5% da Argentina.
Como reconhecimento aos trabalhos desenvolvidos na área, entre 2020 e 2024, o Estado recebeu cinco vezes consecutivas o Selo MigraCidades, entregue pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência da ONU para as migrações, e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Fortalecimento de Comitê
O decreto de 2025 também consolidou o Comitê Estadual Interinstitucional de Atenção aos Migrantes, Refugiados, Apátridas e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Cemigtrap) como órgão consultivo e deliberativo central sobre o tema.
Vinculado à Sedih, ele será responsável por monitorar, avaliar, propor e coordenar ações em todo o território cearense, a partir de tratados internacionais e políticas nacionais.
O grupo será composto por representantes do poder público e da sociedade civil organizada, tendo alguns selecionados por edital, outros convidados - como membros de Defensorias, Ministérios Públicos, universidades, Polícia Federal, Tribunal de Justiça e Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Além da atuação normativa, o Comitê deverá produzir capacitações, incentivar a criação de comitês regionais, propor ações de visibilidade e garantir o acesso a serviços públicos adequados à realidade dos migrantes, refugiados e apátridas.
Crime subnotificado
Especialistas e órgãos públicos ressaltam que um dos principais desafios do crime de tráfico de pessoas é a subnotificação, já que ele pode ser registrado impropriamente ou porque as vítimas não se reconhecem nessa condição ou temem represálias.
Como o crime e as redes que o promovem são complexas, podem envolver ainda uma série de outras violações, como de direitos trabalhistas, de saúde e educação.
Nessa conjuntura, o decreto cearense busca desenvolver uma rede interinstitucional “visando à execução de ações de prevenção, atenção às vítimas e repressão qualificada”.
Como denunciar tráfico humano?
O Brasil tem vários canais de denúncia para que a sociedade civil contribua para evitar essa forma de crime organizado:
- Disque 100 de Direitos Humanos
- Ligue 180 (Ministério das Mulheres)
- Comunica Crimes (Polícia Federal)
- Sistema Ipê (Ministério do Trabalho e Emprego)
- MPT Pardal (Ministério Público do Trabalho)