Migrantes fogem de crises, enfrentam preconceitos e conseguem espaço no mercado e na cultura do CE
Nos últimos 24 anos, o Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra), da Polícia Federal, contabilizou mais de 37,2 mil pessoas vindas de outros países no Ceará — entre permanentes, temporários e outras classificações. Médicos, professores, enfermeiros, economistas, fotógrafos, motoristas, biólogos, artistas, atletas, jornalistas, pescadores, mecânicos, estudantes, aposentados: são cidadãos de várias idades, vindos de diferentes continentes e com uma vasta bagagem cultural e profissional.
Também são diversos os motivos que os trazem para cá, da vinda voluntária para estudar ou trabalhar, e até a migração forçada devido a crises na terra natal. Quando chegam no novo destino, muitos se deparam com dificuldades para conseguir emprego e com preconceito por parte da população local.
Mas a população que chega ao Estado pode contribuir para a sociedade em diferentes âmbitos: da realização de pequenos e grandes investimentos — na indústria, no ramo imobiliário, no comércio e em outras áreas — até a assimilação de uma nova cultura, um novo idioma e novos hábitos alimentares, aponta Silvana Nunes de Queiroz, professora da Universidade Regional do Cariri (URCA) e coordenadora do Observatório das Migrações no Estado do Ceará (OMEC).
Na segunda reportagem da série Destino Ceará, o Diário do Nordeste aborda algumas das dificuldades que migrantes enfrentam para se inserir na sociedade e no mercado e conta histórias de um venezuelano e uma alemã que há anos vivem e trabalham no Estado.
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RECOMEÇOS
Além de se depararem com casos de xenofobia e com dificuldades de comunicação, uma demanda de pessoas migrantes em todo o território nacional — e no Ceará não é diferente — é a validação de diplomas de ensino superior. “Quando encontram ocupações são em trabalhos precários que, muitas vezes, não condizem com a sua formação, auferindo menores rendimentos”, afirma Silvana Nunes de Queiroz.
O venezuelano Diogenes Jesús Diaz, 43, foi um dos que passaram por essa situação, devido à crise econômica no país onde vivia. Formado em Administração, ele chegou ao Brasil pelo estado de Roraima há mais de 7 anos, e lá, inicialmente, teve dificuldade para conseguir um trabalho formal.
“A migração venezuelana foi muito grande e o povo de lá não tinha como oferecer emprego para todo mundo. Então, tinha algumas pessoas que não conseguiram uma vaga. E a gente fazia serviço de capinar, de pintar, independentemente da formação de cada um”, lembra. Em seguida, Diógenes seguiu para Manaus (AM), onde conseguiu assinar a carteira para trabalhar como auxiliar de depósito.
Mas um amigo que já estava em Fortaleza sugeriu que ele viesse para a capital cearense. “Peguei um barco com minha família, minha mulher estava grávida. Viajamos quatro dias até chegar em Belém e viemos para cá de ônibus”, lembra. Na Venezuela, Diógenes acumulava experiência no trabalho em hotel de luxo, bagagem que considera útil na atual morada.
Era um hotel cinco estrelas que recebia muitos turistas, principalmente esportistas. Tinha muito gringo e foi um jeito de praticar o inglês com os clientes. Aprendi a dar um serviço de qualidade para um público seleto, pessoal exigente pra caramba. Acho que isso também foi importante para eu poder arrumar uma vaga de emprego aqui (em Fortaleza) e trabalhei em um hotel de grande porte.
No Ceará, Diógenes encontrou um bom local para atuar no turismo, e hoje trabalha no Mercado Central vendendo pacotes de viagem, passeios e hospedagem. O atendimento é feito em três idiomas: português, espanhol e inglês. “Aqui me amarrei, estou apaixonado pelo estado. Muito acolhedor, muito lindo. (…) Gosto muito do Ceará, principalmente do cearense. Consegui conquistar muitos bons amigos aqui.”
“UMA SOCIEDADE MAIS HUMANA”
A professora Silvana Nunes de Queiroz aponta que o Ceará se destaca no cenário migratório com fluxos oriundos de países europeus e latino-americanos, principalmente a partir da primeira década do século XXI. Também há um número significativo de migrantes oriundos de países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), principalmente para estudo e inserção de trabalhadores qualificados.
“A chegada de aposentados é outro destaque, que muitas vezes migram para investir no setor de turismo ou adquirirem uma segunda residência para morar de maneira permanente, devido ao custo de vida mais barato, ou para passar o inverno português/europeu no Ceará”, contextualiza a docente.
Denise Bomtempo, professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e coordenadora do programa de extensão universitária “Vidas Cruzadas: Migração, Saberes e Prática”, defende que toda e qualquer estratégia política precisa considerar as questões migratórias, uma vez que essa população faz parte da sociedade. “Nosso desafio é mostrar que o migrante, a pessoa em situação de migração, tem potencialidades múltiplas. Ela não é problema”, defende a docente.
A Defensoria Pública do Estado do Ceará acompanha casos de migrantes internacionais que chegam ao estado, para atuar na garantia de direitos dessas pessoas. Entre eles estão os estrangeiros que vêm para estudar. “O que percebemos é que eles acabam ficando e contribuindo de maneira significativa na perspectiva profissional, de capacitação e formação de outras pessoas, e na visão que trazem da pluralidade, que é o mundo globalizado de hoje”, afirma a defensora pública Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas.
Existe essa riqueza da troca cultural, o potencial humano, social e econômico. Há quem diga que o processo de migração traz um incremento também da economia local, porque à medida que essas pessoas vêm e são inseridas, muitas vezes elas trazem outros membros da família. E fazer com que o Ceará tenha uma visão mais globalizada é importante até na perspectiva de enriquecimento e inserção do Ceará em um cenário mundial.
A defensora também aponta que a chegada de mão de obra especializada traz, além de diversidade cultural e crescimento econômico, transferência de conhecimento. “Dizemos que é a transferência do saber e do conhecer. É uma experiência importantíssima no fortalecimento da sociedade. Também são importantes as questões relacionadas à dignidade, à cidadania e à construção de uma sociedade mais humana”, afirma.
ALÉM-MAR
Há três décadas, Rosina Popp Torres, 60, mora em Fortaleza. Alemã, ela cursou Literatura na Universidade de Siegen — onde tinha estudado português — e resolveu buscar oportunidades de trabalho no Brasil e na Austrália. Aceita nas duas opções, ela escolheu vir para o Ceará.
Desde então, foi em Fortaleza que ela desenvolveu toda a vida profissional, conquistando respeito na área de atuação, conheceu o marido, teve uma filha, Frida, e fincou raízes. Nesses 30 anos, ela também já foi visitada diversas vezes pelos familiares que continuam na Alemanha.
Rosina estagiou na Casa de Cultura Alemã, da Universidade Federal do Ceará (UFC), e trabalhou por 12 anos na Fundação Konrad Adenauer, instituição alemã que tinha escritório na Capital. Hoje, dá aulas de sua língua materna, toca clarinete na Banda Sinfônica da UFC e atua, há 22 anos, como produtora cultural, trabalhando com bandas locais, como a Marimbanda.
Eu adoro música. A música brasileira é uma coisa fantástica. Ela é tão diversa e criativa, é muito linda. Então, vou muito a shows quando tenho tempo.
“Eu adoro que aqui as pessoas conversam umas com as outras. Se você está esperando um ônibus, elas conversam com você. Se você chega no ônibus com um pacote pesado e não tem lugar, perguntam se você quer colocar o pacote no colo delas. Isso é mais difícil na minha terra. E (aqui) as pessoas parecem estar mais à vontade”, diz Rosina, ao elencar coisas positivas de Fortaleza.
Mas ela já pensou em voltar para a Alemanha, devido à sensação de insegurança. “O medo que sentimos aqui limita muito”, diz. Também já se deparou com situações em que foi mandada “para casa” ou quando algo deu errado, o mal-entendido era por ela “ser gringa”. Além disso, há os laços que ainda mantém com o outro continente.
“Minha filha se mudou para lá. Minha mãe está lá e está ficando cada vez mais velha, não sei por quanto tempo ainda tenho oportunidade de conviver com ela. Meus irmãos estão lá e (também a) minha sobrinha, que teve uma filha agora. É mais uma criança da minha família que não vejo crescer. Isso é muito difícil. Não é fácil e maravilhoso aqui”, conta.
Apesar de ver pontos negativos, como o machismo na sociedade e a carga de trabalho necessária para pagar as contas do mês — questão que atinge brasileiros e estrangeiros —, são o clima e o litoral que aproximam Rosina do Brasil. “Muitas vezes, quando vou para minha casa de praia, olho para o mar e encontro uma paz. Fico em paz com esse país”, diz.