Coreia do Sul, Venezuela, Guiné-Bissau e Itália: de onde vêm os migrantes que chegam ao Ceará?
Eimily Terán Zambrano, de 37 anos, trabalhava em uma cafeteria quando uma mulher aproximou-se, ouviu a apresentação do cardápio e perguntou de onde ela vinha. De tantas vezes que foi questionada sobre isso ao longo dos quatro meses que estava no Ceará, a atendente respirou e respondeu: “da Venezuela”. Mas, naquele dia, a cliente falou devagar e ela conseguiu responder sem soltar sequer uma palavra em espanhol.
“Em nenhum momento saiu pelo menos uma palavra meio português, meio espanhol. Foi com sotaque venezuelano, mas consegui falar 100% português”, comemora Eimily, lembrando a situação na qual percebeu que iria conseguir adaptar-se à língua do novo local de moradia. Ela chegou ao Ceará em 2019, ano em que mais de 1,8 mil pessoas nascidas na Venezuela foram registradas no Estado.
Há mais de duas décadas, o Ceará se mantém entre os estados nordestinos que mais recebem migrantes internacionais. No período de 2000 a 2024, cerca de 22% das mais de 170 mil pessoas registradas no Nordeste vieram para o Estado, segundo dados do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra) compilados pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) e analisados pelo Diário do Nordeste.
Considerando todos esses migrantes registrados ao longo dos últimos 24 anos, o principal país de origem é a Coreia do Sul, com 3,3 mil pessoas. Em seguida, aparecem Colômbia (3 mil), Itália (3 mil), Portugal (2,7 mil) e Guiné-Bissau (2,5 mil). Além disso, a maioria era homem (72,6%), que tinham principalmente entre 40 e 64 anos. Entre as mulheres (27,3%), o maior registro foi de jovens de 15 a 24 anos. Mas esse perfil não foi homogêneo ao longo dos anos.
Mudanças na conjuntura internacional e em incentivos para a região tiveram reflexo em quem buscou o Ceará como morada. Se a chegada de sul-coreanos destaca-se entre 2012 e 2016 pela implantação da Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), como mostra o gráfico abaixo, os venezuelanos começam a aparecer com mais frequência a partir de 2018, em consequência da crise política e econômica vivenciada pelo país vizinho.
A presença de migrantes de países africanos também ganha destaque nos anos seguintes à criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em 2010, que atraiu pessoas procedentes da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
A partir de hoje, o Diário do Nordeste veicula a série de reportagens Destino Ceará, com três dias de conteúdos que levantam um debate sobre os principais países de origem dos migrantes que chegam ao Estado, o potencial de contribuição dessas pessoas para a cultura e a economia locais e quais políticas públicas contemplam a inserção delas na sociedade cearense.
Entre os estrangeiros que vêm para o Brasil, a Lei de Migração considera:
- Imigrante: quem vem ao Brasil para trabalhar ou residir e se estabelece temporária ou definitivamente no País;
- Residente fronteiriço: pessoa nacional de país limítrofe ou apátrida que conserva a sua residência habitual em município fronteiriço de país vizinho;
- Visitante: aqueles que vêm ao Brasil para estadas de curta duração, sem pretensão de se estabelecer temporária ou definitivamente no território nacional;
- Apátrida: pessoa que não seja considerada como nacional por nenhum Estado, segundo a sua legislação, ou assim reconhecida pelo Estado brasileiro.
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DESTINO ATRATIVO
Migrar de um país para o outro é um movimento intrinsecamente ligado à história humana e à constituição de diferentes nações, como a brasileira. São diversos os motivos que levam à tomada dessa decisão, desde oportunidades de estudo, emprego ou negócios até a necessidade de encontrar melhores condições de subsistência.
Nos últimos 24 anos, é possível perceber essas diversas motivações entre as pessoas que vêm para o Ceará. Doutora em Geografia, a professora Denise Bomtempo é pesquisadora da Universidade Estadual do Ceará (UECE) desde 2013 e aponta a diferença do perfil migratório daquele período para os dias atuais.
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Além disso, os dados consultados pela reportagem também refletem esse movimento citado pela docente, que é coordenadora do programa de extensão “Vidas Cruzadas: Migração, Saberes e Práticas”.
Ela explica que houve uma crescente na chegada de migrantes ao Ceará até 2014, tanto daqueles que vieram realizar pequenos e médios investimentos até as grandes corporações. Também passaram a vir pessoas em busca de trabalho, por exemplo, na área da construção civil e no turismo.
A partir de 2017, países latino-americanos aparecem entre as principais nações de origem dos migrantes registrados no Estado. Inicialmente, a Colômbia surge em primeiro lugar, posto que depois passa a ser ocupado pela Venezuela. Muitas vezes essas pessoas vêm para o Brasil devido a crises econômicas e sociais e chegam em situação de vulnerabilidade.
A emergência do Ceará como um ponto de migração internacional não está desassociada do contexto migratório mundial. “Hoje, cada vez mais os países do considerado norte global impõem restrições à entrada de pessoas. Eles intensificam ações de punição para aqueles que são ‘indesejados’. E quem são os indesejados? Pessoas que já chegam com situações de vulnerabilidades múltiplas, sobretudo do conjunto do sul global”, afirma Denise Bomtempo.
É nesse cenário que os migrantes buscam países com uma centralidade regional no sul global, como o Brasil e o México — este último, muitas vezes, como ponto de transição para quem quer chegar aos Estados Unidos. “Como é uma das fronteiras mais militarizadas no mundo, o Brasil acaba sendo um país de possibilidade para que essas pessoas permaneçam e deem continuidade à sua vida”, complementa a professora.
A mudança nesse perfil dos migrantes que vivem em Fortaleza também é citada por Idalina Pellegrini, irmã scalabriniana que atua na coordenação da Pastoral dos Migrantes. Esse serviço da Arquidiocese de Fortaleza existe desde 1995, quando Dom Aloísio Lorscheider solicitou o trabalho da congregação no acolhimento a migrantes para a Capital.
O migrante tem os mesmos direitos (que os demais cidadãos) e, às vezes, as pessoas não reconhecem. Acham que porque são migrantes, porque são refugiados, podem fazer qualquer coisa. (…) Como irmãs scalabrinianas, nosso trabalho humanitário é ser essa presença de defesa dos direitos humanos.
Naquele início, ela lembra que o atendimento era feito a migrantes que se deslocavam de outros municípios do Ceará. Foi a partir de 2009 que as irmãs scalabrinianas começaram a atuar com a migração Internacional, com a chegada de migrantes de países africanos — que vieram, muitas vezes, para estudar no Estado.
“Em 2018, retornei (para Fortaleza) e começou a questão da Venezuela. Começamos a acolher migrantes venezuelanos, de Cuba, Colômbia. Temos os indígenas Warao, que são migrantes venezuelanos das florestas que se tornaram itinerantes pela situação de pobreza”, recorda Idalina. Mas também há aquelas pessoas em situações delicadas, como vítimas de redes criminosas. “São várias realidades que atendemos”, complementa.
ADAPTAÇÃO NO CEARÁ
De acordo com as informações do OBMigra, mais de 5,4 mil pessoas originárias de países africanos foram registradas no Ceará entre 2000 e 2024. Os dados apontam 179 em 2012. Foi naquele ano, no dia 29 de novembro, que Nené Inturé, de 33 anos, chegou de Guiné-Bissau para estudar Enfermagem na Unilab.
Chamada de Verinha desde pequena, ela fala sobre os desafios que todo migrante passa durante a adaptação no novo país. “Todos os países que vêm para a Unilab são lusófonos, tem como língua oficial o português. Mas temos a questão dos sotaques, porque sabemos que o português brasileiro é diferente de qualquer outro. Já começamos esse processo de adaptação com os professores, na sala de aula. É árduo, mas a gente consegue. Eles dão todo suporte”, diz.
Verinha também lembra a recepção por parte da Universidade para os estudantes que chegam ao País e o apoio oferecido para a permanência deles, com residência, auxílio financeiro e bolsas de pesquisa. Durante o curso de Enfermagem, ela diz que não enfrentou dificuldade para conseguir estágio. Mas a realidade é diferente após o encerramento do vínculo institucional.
Acho que o processo de terminar e conseguir emprego como migrante estrangeiro, principalmente de país africano, é muito mais difícil do que quando você ainda está na universidade. Você se vê praticamente só.
O objetivo de Verinha era terminar a faculdade e voltar para Guiné-Bissau. Porém, após a conclusão, no final de 2017, a conjuntura política no país impediu o retorno. Com isso, ela veio para Fortaleza em busca de oportunidades e precisou passar por uma nova adaptação. Ela cursou pós-graduação em Neonatologia e, inicialmente, precisou trabalhar como cuidadora e garçonete por não conseguir emprego na área da Enfermagem. Foi nessa época que a Pastoral dos Migrantes “fez a ponte” para a colocação no mercado até surgir uma vaga na área de formação.
“Quase todos os estudantes e migrantes participam voluntariamente da Pastoral, para dar apoio aos que estão chegando. Você também passou por esse processo de adaptação, aí vai lá e orienta, ajuda. E as irmãs trabalham incansavelmente”, conta. Eimily Terán Zambrano, citada no início desta reportagem, também é voluntária e auxilia outros venezuelanos que vivem em Fortaleza.
Além de todas essas questões, há ainda o racismo e o preconceito. “Você precisa todo dia comprovar que tem potencial. (…) Vai chegar gente que acha que você não merece estar ali, que de alguma forma você está tirando o lugar de alguém”, lamenta.
Já ocorreu inclusive de pacientes dizerem que não queriam ser tocados por ela ou a chamarem de nomes pejorativos. Nesses casos, ela relata ter recebido suporte do hospital, da Secretaria de Saúde do Estado e da Pastoral dos Migrantes.
Mas Verinha conta também situações gratificantes que vivenciou nessas mesmas instituições, como nas vezes em que chegou a atuar como enfermeira coordenadora. “Percebi que ali as pessoas não enxergaram apenas a minha cor ou a minha nacionalidade, mas focaram no meu potencial.”
MOTIVOS PARA FICAR
Historicamente, a migração interna foi marcada pela saída de pessoas rumo ao Sudeste, assim como a população estrangeira concentrou-se especialmente no estado e na cidade de São Paulo. Esse movimento, porém, passou por mudanças à medida que aumentaram os investimentos públicos e privados nas regiões Norte e Nordeste.
“Isso alterou não somente a condição de vida da população interna, mas permitiu também que alguns setores se desenvolvessem — principalmente a indústria, os serviços e atividades da agricultura. Portanto, acendeu o mercado de trabalho ou mercado de possibilidades para investimentos, o que também atraiu essa população migrante”, explica a pesquisadora.
Hoje, cidades como Fortaleza, Recife, Salvador e Natal — que têm na sua dinâmica econômica atividades como turismo, indústria, comércio e serviços de maneira geral — atraem essa população de outras regiões do País e passam a ser centro de oportunidades também para pessoas que chegam no território brasileiro.
No Ceará, especificamente, Denise Bomtempo destaca que a posição geográfica e o menor custo de vida são aspectos que também se tornam atrativos para migrantes latino-americanos, como os venezuelanos. Mas ela destaca que isso não seria suficiente para eles ficarem no Estado se não houvesse uma rede de apoio por parte de agentes locais envolvidos com a migração, como os governos federal, estadual e municipal, as universidades e iniciativas como a Pastoral dos Migrantes.
“Tem muito ainda a avançar. Por exemplo, todas as secretarias e órgãos públicos entenderem que toda pessoa migrante tem direitos iguais aos das pessoas naturais do País. Mas percebemos que existe sempre a possibilidade do diálogo desses agentes para conversar e verificar o melhor caminho que possa atingir e melhorar a vida dessas pessoas”, avalia.