Fome, despejo e abandono atingem indígenas venezuelanos no CE
Com registros de presença migratória desde 2019 no Estado, estima-se a presença de cerca de 120 venezuelanos, de 26 famílias Warao, vivendo em situação de extrema vulnerabilidade social em quatro hospedarias de Fortaleza
Foi perguntando por comida que Ariana, 18, recebeu a reportagem do Diário do Nordeste naquela terça-feira. Não adiantava mais negar a existência do que a atormenta todo dia: a fome. A última refeição havia acontecido na noite anterior. Uma arepa, espécie de pão feito à base de farinha de trigo, água e sal, assada em uma frigideira. Estava aflita. A pequena Maria, de um ano e meio, não parava de chorar. Só queria comer.
Decepcionada por se tratar da equipe jornalística, e não de doadores de cestas básicas, saiu imediatamente em direção ao único ponto de luz presente no corredor escuro, que contempla a maioria dos quartos do albergue que serve de morada para dez famílias de refugiados venezuelanos no Centro de Fortaleza. Tratam-se de indígenas Warao, presentes na Capital desde maio de 2019. A etnia é a segunda mais populosa da Venezuela, com mais de 49 mil pessoas. Também é a mais antiga, com registros de pelo menos oito mil anos.
Saga Warao é uma reportagem seriada do Diário do Nordeste
Atualmente, cerca de 120 venezuelanos, de 26 famílias Warao, estão vivendo em situação de extrema vulnerabilidade social em quatro hospedarias de Fortaleza, sendo três no Centro e uma na Maraponga.
Desde o início deste ano, a reportagem vem acompanhando a situação desses refugiados. Nenhum fala português, sendo o dialeto indígena a principal forma de comunicação.
Os mais jovens até falam espanhol, mas com níveis diferentes de fluência. A maioria é tímida, não conseguindo ultrapassar duas frases numa conversa. O vínculo tornou-se necessário.
Famílias Warao estão vivendo em situação de extrema vulnerabilidade social em quatro hospedarias de Fortaleza
Em maio, mais uma leva de refugiados chegou ao território cearense. No albergue onde Ariana mora, quatro famílias ainda estavam em processo de adaptação. A jovem havia saído para comunicar a nossa presença. A voz alta dos novos moradores denunciava o incômodo de querer aparecer para os desconhecidos. Embora explicando que aquilo poderia acarretar na visibilidade da situação, não conseguiu entrar num acordo. Irredutíveis, ficaram dentro dos quartos até a nossa saída.
Ariana ainda estava grávida, quando chegou há quase dois anos em Fortaleza. Desde o início, vem convivendo com a fome. Emagreceu dez quilos. Conta nos dedos as vezes que fez três refeições num dia. Não abre mão de alimentar a filha. Maria é prioridade.
Mesmo com a vida que leva aqui, deixa claro que ainda é melhor que no país de origem. Nascida no estado de Sucre, região nordeste da república bolivariana, adorava comer peixe e caranguejo nas águas que desembocavam no mar do Caribe. Em 2016, quando houve o agravamento da crise na Venezuela, se deparou com desabastecimento de produtos básicos e com a violência agravada pela presença da indústria petrolífera e de mineradores na região. Além disso, faltava material para trabalhar na agricultura, aumentando ainda mais a situação de vulnerabilidade. Nos caños, palavra utilizada para identificar as comunidades, a família de Ariana cultivava banana, palmito e macaxeira.
De acordo com o painel de informações sobre populações indígenas da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), 9.625 indígenas da Venezuela foram registrados no Brasil, sendo 4,6 mil crianças e adolescentes. As etnias Warao e Pemon são a maioria, seguidas pelas E’ñepa, Kariña e Wayúu. Há indígenas refugiados e migrantes vivendo em todos os estados brasileiros desde 2020.
Ariana assumiu a dianteira. Em busca por proteção, convenceu a mãe e o irmão a saírem em direção ao Brasil. Pelo que via na televisão e pelo que escutava de outros Warao que já haviam migrado, escolheu o que era o território mais parecido com o de onde nasceu. Cada um pagou, à época, R$180. Até chegar ao Ceará, passou por Roraima, Amazonas, Pará, Maranhão e Piauí, num percurso que durou cerca de um mês, com trajetos feitos de barco e ônibus.
Com Maria no colo, a jovem tenta acalmar a criança. Andando de um lado para outro do albergue, peleja uma solução para que a filha esqueça a fome por alguns minutos. Já cansada, senta no chão próximo à pia, enche um balde com água, e tomam banho como forma de amenizar o sofrimento. Naquele dia, não pôde sair para pedir nas ruas porque a pequena parece estar doente. A barriga inchada evidencia alguma enfermidade. Além disso, manchas se espalhavam por todo o corpo da menina que não parava de coçar. Outras seis crianças vivem no local. Todas abaixo do peso e da altura média que deveriam estar na sua idade. Sofrem com a baixa ingestão de proteínas e vitaminas.
De acordo com o Ministério da Saúde, 345 indígenas morreram por desnutrição no Brasil nos últimos quatro anos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que 30% de crianças venezuelanas de até cinco anos sofrem com o problema.
A esperança de Ariana estava na chegada do grupo de venezuelanos que havia saído ainda no início daquela manhã.
De frente para a porta que dava acesso ao quintal, enquanto Maria enfiava quase todo o corpo no balde, a jovem escutou a voz dos indígenas. Eram Cristian, 28, a esposa Alejandra, 28, e o pequeno Gabriel, 2. O casal trazia três sacolas de compras. Ali estava o almoço.
Próxima ao esgoto, Alejandra começa a misturar os poucos ingredientes que trouxe em uma bacia de plástico, enquanto o esposo usa querosene para cozinhar a lenha. Impaciente, a mulher entrega uma colher com farinha de trigo pura para cessar o choro de Gabriel. O almoço foi dividido com todo o grupo e com Jacaré, um cachorro vira-lata que era tão castigado pela fome quanto eles.
O pedir nas ruas
De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), a prática de pedir dinheiro nas ruas é a principal fonte de recursos para as famílias Warao no Brasil. No relatório “Os Warao no Brasil: contribuições da antropologia para a proteção de indígenas refugiados e migrantes”, produzido pela Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), traz detalhes desse costume que vem desde a Venezuela.
Na década de 1990, os indígenas vivenciaram uma epidemia de cólera. À época, começaram o deslocamento pelas rodovias do país natal para pedir ajuda ao governo. Sem que eles pedissem, receberam comida, roupas e dinheiro de quem passava. “As mulheres perceberam o sentimento de solidariedade que despertaram nas outras pessoas, sobretudo quando acompanhadas por seus filhos”, explica o documento.
Desde então, os deslocamentos dentro da Venezuela aumentaram. Do ponto de vista tradicional, as mulheres não pedem esmolas, mas coletam dinheiro, o que não significa, contudo, que o ato de pedir dinheiro nas ruas constitua um traço cultural tradicional desse povo. Conforme a ACNUR, trata-se de uma estratégia adaptativa desenvolvida no contexto urbano.
Ela é vista como trabalho e não é compreendida pelos indígenas como uma prática depreciativa, constrangedora ou indigna. Por conta da situação político-econômica do país, essa dinâmica se repetiu no Brasil
‘Que Deus te abençoe’
Na Grande Fortaleza é comum ver famílias Warao em cruzamentos pedindo dinheiro. Todos com as mesmas características, usando roupas que remetem à cultura do povo e placas destacando a nacionalidade. No final do texto, sempre a mesma frase: “que Deus te abençoe!”.
Simon, 29, lembra que na Venezuela fez um pouco de tudo. Trabalhou na construção civil e como motorista, antes de vir para o Brasil. Foi um dos primeiros a chegar ao Ceará, há quatro anos. Confessa que o pior já passou, que consegue viver com mais tranquilidade junto da esposa Yesica, 24, e dos filhos David, 6, e Jesica, 8.
O sol ainda nem apareceu, quando a família acorda para trabalhar. Enquanto Simon prepara o café da manhã, Yesica veste as crianças. A logística foi definida na noite anterior. Às 6h, a jornada começa. De ônibus, saem do bairro Maraponga ao terminal de Parangaba. De lá, embarcam para o Conjunto Industrial, já em Maracanaú, na Grande Fortaleza. Até o ponto escolhido para coleta, caminham durante quinze minutos.
Simon entende que estar em um local sem outras pessoas traz segurança para ele e a família. O ponto é estratégico, por contar com pessoas mais ‘generosas’. O venezuelano já é conhecido por quem trabalha na região. Fez alguns amigos. Em uma das fábricas, ali perto, consegue água gelada para matar a sede e aliviar o calor da família.
Sentada à sombra dos muros, Yesica separa o material para começar a confecção de colares e pulseiras típicas de seu povo. A tradição, herdada da avó, pretende repassar para a filha. Após finalização, cada peça custa R$30. Simon aproveita o fluxo na via e fica responsável pela negociação. A venda de apenas um acessório basta para que o dia seja bem-sucedido.
O cuidado de mãe permanece presente. Yesica estende uma espécie de lençol para que as crianças brinquem. Não tira os olhos dos filhos. David e Jesica estão de férias. Os cadernos dividem espaço com os brinquedos no balde. Para o dia de trabalho, levou biscoitos, frutas e suco para que os pequenos não sintam fome. A família não sai para as ruas nos finais de semana.
O valor arrecadado, diariamente, na rua, serve para pagar o aluguel, comprar alimentação e enviar para parentes que ainda estão no país de origem. Já conseguiu trazer alguns. Do outro lado do cruzamento, mãe, irmãs e sobrinhos de Yesica fazem a mesma atividade. Tímidos e por não falarem espanhol, não aceitaram conversar com a reportagem. Trabalhar de outra forma parece quase impossível pela barreira linguística. A ACNUR aponta que cerca de 37% da população indígena refugiada e migrante no Brasil tem necessidades específicas de proteção.
Deslocamento pelo metrô
Yolenda, 34, utiliza o metrô para se deslocar pela Capital. A rotina quase sempre é a mesma. Pega o primeiro trem na estação José de Alencar, no Centro, e parte para o Mondubim, na periferia de Fortaleza. Busca sempre o revezamento das companhias. Ao lado de Terry, 10, Soraida, 16, e da pequena Yimi, de oito meses, saíram para trabalhar em um dos sinais da região. Aquela manhã rendeu. Conseguiram duas cestas básicas. A reportagem ainda falava com Yolenda, quando a venezuelana fez sinal de partida. Precisava continuar o fluxo.
Saga Warao continua nesta sexta-feira, 11.