Caía a tarde, quando este jornalista cruzava a pé o largo do Socorro, em Juazeiro do Norte, o espaço que fica entre o Memorial Padre Cícero e a capela onde ele está sepultado.
Caminhava na esperança de encontrar alguém na casa onde viveu Joaquim dos Santos Rodrigues, o Seu Lunga, comerciante e poeta que morreu há uma década, aos 87 anos.
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Após fotografar a estátua que fica na frente da residência representando o ilustre morador, eu tocava a campainha, quando ouvi:
"O que você quer aí? Não tem ninguém em casa." Era a pensionista Socorro Figueiredo, vizinha de parede. "Aí dentro, só está o carro velho que ele deixou. Ninguém mais."
Dona Socorro conviveu com a família por mais de 20 anos. Aceitou falar comigo, desde que não fosse gravada. E revelou que, apesar da fama de ignorante para o resto do Brasil, ali, naquele trecho de casas geminadas, Seu Lunga era só gentileza com os vizinhos.
"Quando voltava do descanso no sítio, distribuía frutas. Manga, cajarana, seriguela. Agradava todos aqui. Ele só não gostava de pergunta besta."
Antes de me despedir de dona Socorro, consegui fotografá-la, mesmo que de longe. Ela não quis sentar ao lado da estátua.
"Deus me livre: para sonhar com ele à noite", brincou.
Solidária com o meu trabalho, ela me explicou como iria a pé até a caçula de Seu Lunga, que mora ali perto. E lá fui eu atravessar de novo o largo do Socorro.
No calçadão, encontrei outra homenagem: um grafite em que Seu Lunga aparece com o inseparável chapéu, asas de anjo e o dedo em riste.
Estaria no céu dando respostas diretas a perguntas mal formuladas?
Como um típico morador de Juazeiro do Norte, era vocacionado para o comércio. Durante anos, manteve um ponto onde negociava mercadorias, uma espécie de ferro-velho misturado com bodega. E foi esse cotidiano que o fez famoso.
Naquela loja da rua Santa Luzia, havia muitas coisas à venda. E faltava paciência para perguntas óbvias de clientes e curiosos.
"Se botei um ponto comercial, é para vender", respondia quando questionavam se doaria um objeto aparentemente velho demais para ser exposto.
"Eu vendo o que tem. Não vendo o que não tem", também costumava dizer.
E por aí surgiram muitas frases, entre originais e atribuídas pela fama, graças à capacidade de ser preciso nas palavras sem nunca alterar a voz. Um jeito que lhe deu fama nacional.
"As pessoas vinham a Juazeiro do Norte primeiro pelo Padre Cícero, depois por causa dele", conta Lucélia Rodrigues, 60 anos, professora aposentada, filha mais nova de Seu Lunga e dona Carmelita, também já falecida.
Sentada no sofá de casa, enquanto reclamava do calor de novembro, conta que cuidou do pai e da mãe quando ficaram idosos.
"Ele tinha essa fama de ignorante, mas na verdade foi um pai que incentivou demais que nós todos estudássemos. E agradeço muito a ele. O estudo é a melhor herança que se deixa para um filho."
Seu Lunga e dona Carmelita tiveram 13. 9 filhas estão vivas. Assim como dona Lucélia, a maioria também fez faculdade.
"Como é que eu sou ignorante se eu sei as quatro operações. Sei ler e escrever", dizia Seu Lunga, conforme o relato da caçula.
Não só lia e escrevia como também compunha versos:
"Queria ser um pássaro
Para no mundo voar
Eu ia para serra
E depois podia voltar
Mas ia cair em teus braços
Para também consolar"
Romântico, gentil, Seu Lunga tinha outras características que só os mais chegados conheceram. Uma delas era o cuidado com a saúde.
"Os homens têm preconceito de fazer o toque. E papai, com problema de próstata, não tinha esse preconceito. Todos os anos, se o médico pedisse, ele fazia o exame do toque. A ignorância é o que se vê hoje, com os homens que têm preconceito."
Seu Lunga morreu de câncer no esôfago, não na próstata. Viveu quase 90 anos. Além da educação, a maior lição que teria deixado aos filhos foi o respeito pelos mais velhos.
"Bastava olhar. A gente já ficava quieto. Muito diferente de como é hoje. Eu fui educadora e sei como é", diz dona Lucélia.