Pescadores youtubers compartilham dia a dia de aventuras no litoral do CE com milhares de seguidores
“Guerreiros do Mar” mostram desafios de pescarias com informação e bom humor
Empurrar cedo a jangada para a água, procurar onde os peixes estão concentrados e resolver pescarias difíceis fazem parte do dia a dia dos “Guerreiros do Mar”. Os irmãos pescadores naturais do Iguape, praia do litoral leste do Ceará, se tornaram youtubers há quase quatro anos e compartilham verdadeiras aventuras em alto-mar para quase 70 mil seguidores.
O Diário do Nordeste botou o pé na areia da praia de Aquiraz para conferir a chegada dos Guerreiros em sua jangada, com um isopor cheio de peixes apurados no dia, para esta 6ª reportagem da série “Mar de Leva e Traz”, em que são entrelaçadas as memórias e os diferentes usos do litoral.
O especial multimídia integra o projeto Praia é Vida, promovido pelo Sistema Verdes Mares com foco na valorização e na sustentabilidade desse meio indispensável para múltiplas formas de vida.
Imagine por um momento estar no meio do mar, com ondas azuis por todos os lados, a distâncias que variam de 15km - a máxima onde o sinal de internet chega - a mais de 50km da terra firme. Esse é o cenário diário “na vida real do pescador artesanal profissional”, como frisam os irmãos em todo início de vídeo.
Gilmárcio Rocha, 35, e Jocimar Rocha, 37, iniciaram a vida no mar ainda adolescentes, por admiração ao pai. Na realidade, eles são a 4ª geração de uma família de pescadores, mas o exemplo do seu Francisco, mais conhecido como “Chico da Nália”, inspirou não só os dois, mas todos os 5 filhos.
“Por a gente ver ele saindo, começamos a ter aquela paixão de praticar. Nossa mãe queria que a gente estudasse. Ele ficava mais neutro, mas acho que hoje tem orgulho que a gente deu sequência à profissão dele”, revela Gilmárcio.
Por volta dos 15 ou 16 anos, após treinarem com o pai e um tio, os irmãos decidiram que era hora de guiar o barco sozinhos. “Meu tio chamou até meu pai de doido”, lembra Jocimar, “mas não foi ele que botou na nossa cabeça, foi a gente que quis ir”. Francisco pescava lagosta enquanto os filhos acenavam no mar.
Os mais experientes ensinaram-lhes a “governar” o barco, a encontrar os pesqueiros e a voltar em segurança. Além disso, os meninos precisaram lidar com um ano de enjoos pelo balançar da água. Vinte anos depois, Jocimar é direto: “hoje em dia é a mesma coisa que tá aqui na areia”.
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‘Não somos famosos’
O canal zarpou em 2019, depois de Jocimar “contaminar” o irmão com a ideia. É que o mais velho consumia conteúdo da página “Pesca e Adrenalina”, de Fortaleza, e sugeriu um diário de bordo semelhante. Como o mais novo guardava o desejo de compartilhar seu trabalho, decidiram concretizar a iniciativa.
No primeiro dia de gravações, choveu! Por isso, Gilmárcio decidiu mostrar o funcionamento de uma jangada ainda em terra. Na hora de postar, não sabia que nome colocar. Então, lembrou de uma expressão dada pela presidente da Colônia Z9 de Aquiraz, Cláudia Fonseca. Assim ia ao ar o “Guerreiros do Mar”.
Os elogios começaram a aparecer à medida em que novos seguidores se inscreviam. Cada milhar era comemorado, de acordo com Jocimar, mas a ficha só caiu mesmo quando o canal atingiu 20 mil pessoas. O sucesso no mundo virtual também começou a repercutir na realidade, como eles provaram em visitas a outras praias.
Uma vez fui pra Guajiru, no Trairi. Quando cheguei, parecia que tinha chegado o Silvio Santos. Na Lagoinha, em Paraipaba, cansei de tirar foto com o pessoal. Mas aqui mesmo, no Iguape, a galera não tá nem aí. Só fora daqui sinto o peso.
E nem os irmãos querem ser tratados de forma diferente. Jocimar é claro: eles são pescadores, não youtubers. “Gosto do respeito dos próprios pescadores daqui, mas a gente diz: nós somos iguais, a diferença é que nosso trabalho é mostrado”.
Pele queimada de sol
A rotina dos irmãos começa por volta de 3h30. Ainda na madrugada, Gilmárcio começa a responder os comentários de seguidores nas redes sociais. Depois de se arrumar, ele espera uma van que o leva até perto da praia, pois mora a 7km do mar, no distrito da Tapera. Jocimar o espera em casa com uma garrafa de café e bolo, tapioca ou bolachas.
Geralmente às 5h, empurram cuidadosamente a jangada Lara Kelly para a água. O nome é uma homenagem do avô Francisco a uma das netas, que nasceu à época em que ele construía a embarcação (hoje, Lara tem 16), e mantém a tradição de batizar essas estruturas com nomes femininos.
“O mar depende do tempo e de vento”, explica Gilmárcio. “Tem dia que a gente sai daqui e é uma maravilha, você vai e volta sentado. Em outros, é uma muvuca doida, é temporal, é vento forte”.
Até o primeiro ponto de parada, são cerca de duas horas navegando. A pescaria começa pela busca de iscas, normalmente sardinhas. Só com o cesto abastecido de peixes menores é possível procurar os alvos de grande porte, como cavalas, serras e guarajubas, num verdadeiro exercício de paciência.
Como a espera depende de sorte, com o avançar das horas, o sol começa a variar de aliado, ao permitir a visualização dos cardumes, para carrasco. “Ele incomoda quando não tem vento. Na calmaria, a gente tem que tomar banho no mar. A tábua da jangada fica que nem brasa”, diz o narrador dos vídeos.
Dedos calejados pela linha
Nessa profissão, é o peixe que manda. Quanto mais longe estiverem, mais longe os Guerreiros se arriscam para capturá-los. E nada de rede. Eles são adeptos da pesca com linha e anzol porque, segundo Jocimar, esse método “tem mais adrenalina e mais emoção”. “Na rede, o peixe vem morto; no anzol, você tem que domar”, completa o irmão.
Cansar os maiores exige disposição e muita força. Para ilustrar, Jocimar conta um causo ocorrido há alguns anos e que, garante, não é história de pescador.
Certo dia, ainda durante a pesca da sardinha, apareceu um camurupim, peixe que pode chegar a mais de 2 metros de comprimento. Por volta de 7h, Gilmárcio ferrou o exemplar que, em sua estimativa, devia pesar mais de 100kg. “13h ele ainda tava trabalhando”, conta o irmão, que deu suporte à ação.
Por não usar dedeira, espécie de proteção feita de borracha, os dedos do pescador ficaram em carne viva com os sucessivos puxões do camurupim. Mas, depois de tanto tempo, a “fera” começou a ceder, e a conquista já era comemorada.
Quis o destino que um serra, peixe com média de 50cm e 4kg, se intrometesse na luta e mordesse a linha de náilon, libertando o peixe maior.
“Caiu cada um pra um lado da jangada”, diz Jocimar. “A gente ficou meia hora se olhando. O camurupim tava só pelo peso dele, carregado, e o serra veio só fazer o mal”, brinca.
Depois da grande frustração, os Guerreiros acreditam ter sido recompensados. É que na pescaria do dia seguinte, um novo camurupim, este de uns 80kg, caiu no anzol.
Olhos vermelhos pela maresia
A rotina pesada também encontra dias de marasmo, quando não há peixes e a água fica espelhada de tão calma. Para voltar à terra sem vento, eles utilizam um pequeno motor comprado há dois anos, mas já passaram muito perrengue só com os braços.
“Há uns 3 anos, a gente conseguiu pegar uma guarajuba. Na hora de ir embora, nada de vento. Tivemos que vir remando 15 km, revezando. Saímos 12h30, chegamos 18h, muito cansados. A gente tinha que correr contra o tempo pra não ficar noite”, lembra Gilmárcio.
O retorno, aliás, não depende de GPS. Segundo os Guerreiros, a experiência os faz saber exatamente para onde voltar. Assim que chegam à praia e guardam a jangada, já pesam os pescados frescos numa balança portátil e distribuem entre os negociadores. Depois, é hora de voltar para casa e descansar.
Quando o sol raia, vem tudo de novo. Força, sol, maresia. Os corpos dos pescadores ficam expostos a diversos riscos a longo prazo, e eles estão conscientes disso.
“Não usamos óculos, a luz incomoda. Pescador se mazela demais, não é segredo, sabemos que faz um mal gigantesco. Eu particularmente tinha opção de deixar o mar e partir pra outra profissão, mas faço o que eu faço por amor”, justifica Gilmárcio.
O livro de histórias do mar
Os Guerreiros se empolgam falando do trabalho, mas sabem que ele tem uma data de validade. Em breve, acreditam, a pesca artesanal será extinta porque não há sucessores naturais para a atividade. São raros os meninos que se interessam por desvendar os caminhos do mar.
A pesca de jangada vai se acabar daqui a uns 40 a 50 anos. Acho que esse nosso trabalho no Youtube, futuramente, vai servir é como memorial. Vai virar um livro de histórias.
Enquanto isso, eles seguem sua sina de desbravadores cuja vida foi desenhada pelo balanço das ondas. “Poucos têm esse privilégio de ver o sol nascer no mar”, exemplifica Jocimar.
“Às vezes, você sai de casa com problemas pessoais, tem aquela visão e aquilo te renova. Nossa vida é toda resolvida no mar. Se me tirar do mar, é que nem tirar o peixe de dentro d’água”, finaliza o Guerreiro mais novo.