Pacientes com câncer esperam até 4 meses e não conseguem iniciar tratamento pelo SUS no Ceará

Prazo é o dobro do previsto em lei federal; entidades e gestores apontam queda dos encaminhamentos às unidades de saúde públicas

Escrito por Theyse Viana e Gabriela Custódio , ceara@svm.com.br
Legenda: Quimio e radioterapia são dois dos principais procedimentos para tratamento de pacientes
Foto: Fabiane de Paula

Já são quatro meses desde que Maria Helena Leite, 39, tocou o seio e sentiu um nódulo. Entre consultas, exames e biópsia, veio o diagnóstico: câncer de mama. Ontem (19), a cearense de Madalena, no Sertão Central, completou 60 dias na fila para iniciar o tratamento – e segue sem previsão de conseguir.

De acordo com a Lei nº 12.732, de 2012, 60 dias são o tempo máximo que um paciente deve esperar até fazer cirurgia ou iniciar quimio ou radioterapia no Sistema Único de Saúde (SUS). O dispositivo, porém, tem sido descumprido.

Pessoas com câncer, entidades de acolhimento e até gestores de hospitais de referência apontam que a rede de assistência à oncologia em Fortaleza e no Ceará “vive uma situação grave”, com pacientes esperando até 6 meses na fila para iniciar terapias.

A situação foi denunciada ao Ministério Público do Ceará (MPCE) e ao Ministério da Saúde (MS) em ofícios enviados pela Rede Cearense de Combate ao Câncer de Mama (Rede Mama), em junho; e pelo movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), no dia 13 deste mês.

“O doutor botou pra eu fazer o tratamento no Crio, mas não tem vaga. Liguei pra ele porque eu tava sentindo muita dor e febre, e ele se espantou quando eu disse que ainda não tava fazendo”, conta Helena, que toma analgésicos para amenizar as dores no seio inchado.

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O Crio citado por ela é o Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio), em Fortaleza, uma das principais portas de entrada para pacientes com câncer no Estado – e que suspendeu o acolhimento de pessoas enviadas pelo SUS, no último dia 11.

“O Crio não possui recursos suficientes aportados pela Prefeitura de Fortaleza e não possui recursos por parte do Estado para manter os atendimentos. Ademais, houve uma redução de 20% no repasse das verbas municipais, situação que culminou no caos vivido neste momento”, pontuou o TJCC no ofício enviado ao Ministério da Saúde.

Fila de espera

Outra paciente que aguarda na fila para iniciar tratamento no Crio é a dona de casa Vera Lúcia Barros, 52, moradora de Itaiçaba, no Litoral Leste. Em fevereiro, após 2 anos ouvindo que as alterações em exames “não eram nada de mais”, ela foi diagnosticada com câncer de mama.

“Fui pra Policlínica de Aracati, e o médico pediu a biópsia. Disse logo que eu fizesse particular, porque pelo SUS ia demorar muito. Juntei filhos e amigos e fiz tudo. Deu câncer e o médico orientou que eu começasse a quimio o mais rápido possível”, relembra.

Tenho que fazer 5 sessões de quimioterapia, cirurgia e depois radioterapia. No começo de junho, coloquei o nome na fila do Crio e tô esperando. Eu e muitas. Meu tumor já tem cerca de 2 cm, tomo paracetamol pra aliviar a dor todo dia.
Vera Lúcia
52 anos

Além do Crio, a falha no acesso é percebida também no Instituto do Câncer do Ceará (ICC), onde “há uma redução progressiva, desde 2018, do número de atendimentos encaminhados pelo SUS”, como destaca o médico Reginaldo Costa, diretor clínico da unidade.

“Isso traz grande preocupação, porque contrasta com toda a estatística mundial, que relata aumento dos casos de câncer – e não seria diferente pro Ceará e pra Fortaleza. Sendo o ICC a principal instituição de tratamento de câncer, chama atenção a redução expressiva”, diz.

“Hoje, o ICC atende um terço do que atendia em 2018, sem que tenha havido nenhuma mudança de infraestrutura. O que observamos é a não chegada dos pacientes. Antes de discussão em torno de repasses, existe a discussão sobre o encaminhamento de pacientes via Central de Regulação”, complementa Reginaldo.

Foto: Fabiane de Paula

Daniele Castelo Branco, gestora da Associação Nossa Casa e coordenadora da Rede Mama, afirma que o problema na rede de atendimento oncológico no Ceará “é estrutural”, mas se agravou desde outubro de 2022, após mudanças no financiamento da área.

“Começamos a perceber que as pacientes estavam tendo mais dificuldade de serem encaminhadas pela Regulação pro tratamento, principalmente as do interior do Estado. O retrato que a gente tem é de pessoas na fila há mais de 6 meses, aguardando entre fazer o diagnóstico e iniciar o tratamento”, lamenta.

600
pacientes por mês, em média, deixaram de ser atendidos com o fechamento da porta de entrada do Crio, segundo Daniele. A unidade não retornou nossos contatos para se manifestar sobre o assunto.

Gestora de uma casa de acolhimento a pacientes que vêm do interior cearense para se tratar na capital, Daniele relata que “a capacidade é pra acolher 40 pessoas, mas desde outubro só tem 15 a 20 pessoas na casa”.

“Tenho vaga lá, o que é inédito. O comum é ter fila de espera. Vemos claramente que o paciente não tá conseguindo chegar. Nesse cenário, a lei está sendo descumprida pelas próprias secretarias de saúde. Não é que o serviço não tenha vaga, ele não tem é recurso financeiro”, pondera.

Falta de recursos

No Ceará, há 9 estabelecimentos habilitados na Alta Complexidade em Oncologia, como lista a resolução nº 16/2023 da Comissão Intergestores Bipartite (CIB):

  • Hospital Geral de Fortaleza (HGF);
  • Hospital Distrital Dr. Fernandes Távora / Centro Regional Integrado de Oncologia (Crio);
  • Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC);
  • Hospital Infantil Albert Sabin (HIAS);
  • Hospital Maternidade São Vicente de Paulo;
  • Hospital Cura Dars;
  • Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza;
  • Hospital Haroldo Juaçaba;
  • Santa Casa de Misericórdia de Sobral.

No documento, assinado pela secretária da Saúde do Ceará, Tânia Mara Coelho, a CIB apresenta um levantamento sobre os custos da assistência oncológica pelo SUS no Estado: em 2022, “o valor do extrapolamento da execução das ações e serviços foi de R$ 95,2 milhões”.

Galeno Taumaturgo, secretário de Saúde de Fortaleza, confirma que o subfinanciamento é o principal e histórico gargalo da assistência. “Temos um déficit anual de quase R$ 60 milhões. Oncologia é prioridade, mas estamos passando muito do valor”, estima.

Fortaleza recebe R$ 100 milhões anuais para o serviço, repassados pelo Ministério da Saúde, mas custeia, em média, R$ 160 milhões. Além disso, metade dos pacientes atendidos na cidade são do interior – e das 9 estruturas de atendimento, 7 estão na capital.

O Ceará amarga, aliás, um déficit de nove estabelecimentos de oncologia públicos: deveria ter 18, um para cada 500 mil habitantes, como determina a portaria nº 140, de 2014, do Ministério da Saúde.

Sayonara Cidade, vice-presidente do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems) e secretária de Saúde de Baturité, explica que esses parâmetros estabelecidos pela legislação, baseados em critérios populacionais, não dão conta das necessidades específicas das regiões e precisam ser flexibilizados.

A vice-presidente do Conasems defende que esses parâmetros deem lugar a critérios baseados na necessidade de serviço, dentro do plano integrado de regionalização, para atender aos locais onde existem vazios assistenciais.

"Estamos, nesse momento, com o Ministério, estudando as minutas de portaria que estão sendo pactuadas, (entre o) Conasems e o CONASS (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), para flexibilização desse parâmetro. Com isso, vamos conseguir expandir esse número de serviços"
Sayonara Cidade
Vice-presidente do Conselho Nacional de Secretarias municipais de Saúde (Conasems) e secretária de Saúde de Baturité

Sayonara também aponta que houve um "aumento exponencial" no número de pessoas sendo diagnosticadas com câncer no Estado. De acordo com ela, isso se deve à melhoria dos serviços de média complexidade.

Porém, esse paciente que está sendo diagnosticado mais rapidamente no serviço de saúde de média complexidade não consegue entrar no serviço especializado para tratar a doença.

"É aí onde nós estamos tendo a dificuldade, porque o número de serviço (para tratamento) não expandiu, não acompanhou essa evolução que houve no Ceará", complementa.

A reportagem também questionou a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) e o Crio sobre quais os motivos para a deficiência no encaminhamento de pacientes às portas de entrada de tratamento; e quais as providências pensadas a curto/médio prazos.

Em nota, a Sesa frisou que "o Hospital Geral de Fortaleza (HGF) é habilitado em alta complexidade em oncologia e atua em diversas especialidades", e destacou a atuação do Instituto de Prevenção do Câncer (IPC) na "prevenção, rastreamento e diagnóstico do câncer de colo do útero e de mama".

A Pasta listou ainda os demais hospitais estaduais e conveniados que compõem a rede de assistência, reforçando que "a rede própria atende pacientes com câncer conforme os perfis que lhe são destinados, como cirurgias e quimioterapia", e que "os demais estabelecimentos de saúde, habilitados pelo MS para serviços de radioterapia, são contratualizados pelo Município para atender a demanda relacionada a esse perfil".

Ainda na nota, a secretaria ratifica que "está em reestruturação do Plano Estadual de Atenção à Oncologia, a fim de tornar públicos os protocolos, critérios e parâmetros de referência das linhas de cuidados no tratamento de câncer, fortalecendo o processo de monitoramento e avaliação dos serviços na Rede de Atenção à Saúde no Ceará".

Já o Crio não retornou até a tarde desta quinta-feira (20), quando a resposta da Sesa foi incluída em atualização desta reportagem.

Providências sobre o cenário

Na próxima quarta-feira (26), o MPCE promoverá uma audiência pública sobre a manutenção e ampliação da rede de atendimento oncológico do Ceará. De acordo com o órgão, foram notificados a participar os representantes da(o):

  • Sesa;
  • SMS de Fortaleza; 
  • Central de Regulação do Estado do Ceará e do município de Fortaleza;
  • Instituto do Câncer do Ceará (ICC); 
  • CRIO;
  • Hospital Geral de Fortaleza (HGF); 
  • Hospital Fernandes Távora; 
  • Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems-CE).

Na última terça-feira (18), o governador Elmano de Freitas anunciou um aporte de R$ 22 milhões em investimentos para o tratamento de pacientes com câncer no Ceará – R$ 10 milhões em convênio com o ICC e R$ 12 milhões em edital a ser aberto para prestadores de serviços hospitalares.

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