Jovem de 24 anos é primeiro quilombola cearense médico pela UFC; ‘sou fruto de políticas’
Diogo Augusto se formou no curso de Medicina neste semestre.
Se houver uma lista de todos os médicos formados pela Universidade Federal do Ceará (UFC) desde a criação do curso, em 1948, ela, certamente, tem mais de 9 mil nomes – mas só neste ano, quase oito décadas depois, o de um quilombola cearense passou a constar entre eles.
Diogo Augusto de Araújo dos Santos, de 24 anos, foi o primeiro remanescente de quilombo do Ceará a se formar em Medicina pela UFC, a federal de um estado onde um em cada quatro quilombolas adultos é analfabeto. O próprio pai de Diogo já integrou o número.
O jovem da Comunidade Quilombola Serra da Rajada, no distrito de Tucunduba, em Caucaia, rebobinou na cabeça o filme da própria história, no dia 8 deste mês, ao assinar a ata de colação de grau, cinco anos depois de conquistar uma vaga pela Lei de Cotas. No peito, dois sentimentos tão opostos quanto imensos.
Por mais que eu esteja feliz de ser o primeiro médico quilombola, eu também fico indignado por ser o primeiro médico quilombola. Por que meu pai precisou compor as estatísticas de analfabetismo? Por que não foi médico como os dos meus colegas?”
A indignação, porém, não o adoece – é combustível que “move a abrir portas pra outras pessoas”. “Em nível nacional também somos pouquíssimos. Esse processo de genocídio dos quilombolas perpassa por nos afastar de qualquer espaço de poder e relevância”, reflete.
Segundo dados do IBGE, 26,4% dos quilombolas cearenses com 15 anos ou mais de idade são analfabetos. É quase o dobro da taxa de analfabetismo da população em geral, de 14,1%. Quase 24 mil quilombolas vivem no Ceará, que tem a 10ª maior população desse grupo no Brasil, conforme o Censo de 2022.
‘Nasce quilombo, cresce favela’
A maior parte dos quilombolas cearenses nem vive mais nos próprios territórios. Diogo e a família, por exemplo, precisaram deixar a própria comunidade, quando ele tinha apenas 5 anos, em busca de direitos básicos como saúde e educação.
“A gente precisa sair pra ter o mínimo de acesso à educação, trabalho e saúde. A gente nasce quilombo e cresce favela”, diz, parafraseando o samba-enredo “Um Defeito de Cor”, cantado pela Portela em 2024.
A migração do médico, da mãe e dos irmãos ocorreu após a partida precoce do pai, José Augusto Furtado dos Santos, morto aos 42 anos por “causa mal definida” – não-diagnóstico que ainda atravessa a garganta do filho.
“A taxa de mortes por causas mal definidas é muito maior na população quilombola do que na geral. A gente continua morrendo por causas evitáveis. Tem crianças quilombolas falecendo de diarreia e desnutrição. É absurdo. Isso foi determinante pra eu querer ser médico”, confessa.
A vontade, contudo, tropeçou na realidade. “Na medicina, diferente de alguns dos meus colegas que vêm de famílias de médicos, a gente quilombola não tem muita perspectiva. Eu quis ser bancário, pensei em fazer engenharia, algo que eu pudesse trabalhar mais rápido”, relembra.
Mas Sandra Alves, mãe dele e testemunha do histórico de perdas familiares por falta de assistência médica, foi categórica: “eu queria trabalhar, mas ela disse que eu ia estudar”. “Infelizmente, essa não é a realidade de muitos colegas, que trancaram o curso porque precisavam trabalhar”, reflete o jovem.
Ficar na universidade, assim, talvez tenha sido tão difícil quanto entrar. “Ando sozinho de ônibus desde os 11 anos de idade. Entro na faculdade e tem gente com motorista particular. Foi muitas vezes um lugar solitário estar no curso de Medicina. Você acha que aquilo não é o seu lugar.”
Se o ingresso veio pela Lei de Cotas como homem negro, a permanência só foi possível com as várias políticas públicas de assistência estudantil.
“O RU (restaurante universitário) me garantiu segurança alimentar, porque eu não tinha dinheiro pra comprar comida todo dia. A Bolsa Permanência, que só em 2022 a UFC passou a oferecer, foi fundamental pra eu me formar. Sou filho de políticas públicas.”
Médico da comunidade
O registro de Diogo Augusto de Araújo dos Santos no Conselho Regional de Medicina (CRM) chegou às mãos no dia da nossa entrevista, 12 de dezembro, quatro dias após a colação de grau. O local de trabalho dos sonhos, porém, já estava definido há tempos.
“Nunca deixei de ter vínculo com a minha comunidade. Vou começar num posto de saúde na zona rural de Caucaia, na região das Porteiras, que é quilombola. Se consegui me formar foi pela força do meu avô, da ancestralidade da minha família, que me fez não desistir”, sentencia o jovem médico.
Apesar da vocação irremediável pela saúde coletiva e pela pesquisa, que motivam o sonho de Diogo de ser médico sanitarista e “doutor em saúde coletiva”, o coração segue outro rumo: “minha grande paixão na clínica, na prática médica, é a psiquiatria”.
Temos muitas lideranças adoecidas, porque lutar pelo direito à terra no Brasil é muito perigoso. Quero fazer a residência médica em psiquiatria, fiz a prova agora. Quero estudar a saúde mental quilombola e políticas públicas em saúde.”
Retribuir o que recebeu dos ancestrais em forma de ciência e tentar melhorar a vida dos seus, agora como médico, é uma missão que corre no DNA de Diogo, exigindo um exercício importante e indispensável: o de conseguir reconhecer o tamanho da própria alegria.
“Tô num movimento de comemorar mais minhas conquistas. A gente, que tem origem pobre, se cobra muito. Parece que só estamos fazendo nossa obrigação. Quando assinei a ata, ouvi o discurso do reitor, veio um filme na minha cabeça de tudo o que passei com a minha mãe e meus irmãos. É uma grande conquista de fato.”
Cada conquista, assim, traz à boca o gosto do inhame e da banana colhidos pelo pai, agricultor analfabeto que estudou até o 3º ano fundamental.
Cada cabeça erguida após um tropeço lembra da determinação da mãe pedagoga, que ensinava a comunidade quilombola a ler e escrever no quintal de casa – onde fundaria, depois, a Escola Quilombola Yara Guerra, hoje municipal.
Cada orgulho lembra os irmãos. A mais nova, formada em Letras e Espanhol pela Universidade Estadual do Ceará. O mais velho, graduado em Direito, bombeiro militar e estudante de Medicina, sonho que viu ser possível através dos olhos de Diogo.
Cada momento, por fim, lembra: “eu sozinho não sou nada, minha conquista não é só minha”.
Quem são os quilombolas
As comunidades quilombolas são grupos étnico-raciais remanescentes das comunidades dos quilombos. Por definição histórica e legal, são considerados quilombolas aqueles com “trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
A identificação dessas pessoas se dá por meio da autodeclaração, na qual consideram as relações com a terra, o parentesco, a ancestralidade, as tradições e as práticas culturais próprias.
O Decreto Federal 4.887, de 2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
O texto determina que deve ser garantido aos quilombolas o direito às “terras ocupadas e utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural”.
“Como parte de uma reparação histórica, a política de regularização fundiária de Territórios Quilombolas é de suma importância para a dignidade e garantia da continuidade desses grupos étnicos”, pontua o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia federal responsável pela titulação.
“Dessa forma, tal caracterização legal abrange não só a assim chamada ocupação efetiva atual, mas também o universo das características culturais, ideológicas, valores e práticas dessas comunidades”, complementa o instituto.