Estudantes de escola pública do CE escrevem cartas para 'mandar boas energias' a mulheres hospitalizadas
O Projeto Interação ficou em segundo lugar na categoria ‘Ensino Médio, área de pesquisa Linguagens, Códigos e suas Tecnologias’, no Ceará Científico 2024
As aulas de redação ministradas na Escola Estadual de Educação Profissional (EEEP) Dr. José Alves da Silveira, de Quixeramobim, foram diferentes em 2024. Para além de exercitar a criatividade e os aspectos formais da língua portuguesa, os estudantes tinham uma nova motivação: prestar solidariedade e emanar boas energias para mulheres hospitalizadas em unidades de saúde.
Foi às vésperas do Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, que a professora Rayane Fernandes propôs que os alunos escrevessem cartas para pacientes internadas no Hospital Regional do Sertão Central (HRSC). Em uma ação promovida pelo Núcleo de Experiência do Paciente (Nexp) do hospital, 80 mulheres receberam as mensagens de esperança.
“Eu foco muito no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e nos vestibulares, mas tento transformar a escrita em um processo de ressignificação do saber, do existir, do pensar e do fazer. ‘O que eu, com minha experiência, posso agregar na vida de outra pessoa ou na minha vida por meio da escrita?’”, diz a professora.
Aquele exercício foi divulgado em sites oficiais do Governo do Ceará e chamou atenção na região. Com isso, a docente resolveu adotá-lo como um projeto para o restante do ano, alinhado ao tema gerador da Secretaria de Educação (Seduc) em 2024 — “Equidade de gênero e proteção às mulheres” — e ao tema norteador do Ceará Científico neste ano — “Mulheres e Ciências: Caminhos para a Equidade de Gênero”.
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Para isso, a professora resgatou e reformulou o Projeto Interação, que havia sido criado em 2023 para trabalhar com a temática das relações étnico-raciais. “Fiz uma pesquisa de campo com todas as turmas para saber quais eram os gêneros textuais que eles mais gostavam, e os que mais apareceram foram a crônica, a carta, o poema, a poesia e a fábula”, conta Rayane.
Para essa nova fase, o grupo de destinatárias também foi ampliado. Desde agosto, mais de 500 alunos de todas as séries da escola escrevem para mulheres que recebem assistência médica no Instituto Luz e Vida, no Hospital Regional Dr. Pontes Neto e no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Quixeramobim, além do Hospital Regional do Sertão Central.
Neste mês de dezembro, as cartas produzidas pelos estudantes serão entregues para pacientes do Instituto do Câncer do Ceará (ICC), em Fortaleza.
COMO FUNCIONA O PROJETO INTERAÇÃO
Com o objetivo de incentivar a formação de leitores e promover práticas de letramento literário e a equidade de gênero na sociedade, o Projeto Interação envolve quatro processos: leitura, escrita, correção e reescrita.
“Na leitura, eu trabalho a teoria com eles. ‘O que é uma poesia? Qual a estrutura de uma poesia? Qual a estrutura de uma fábula? Qual a estrutura de uma crônica? Qual público-alvo da crônica? Isso é fundamental”, diz a professora, explicando que o processo também envolve o consumo de produções artísticas — como filmes e músicas — e discussões.
Com os textos prontos, a docente avalia questões de gramática, pontuação, coerência e coesão, preservando ao máximo a mensagem dos alunos. “Aquele sentimento, aquela maneira que meu aluno emana, joga para o universo, é a maneira dele”, diz. Em seguida, se for necessário, o aluno reescreve o texto que será enviado aos hospitais.
Quero a emoção de alguém que está escrevendo, se expressando e mandando boas energias para quem está lá (no hospital). Algumas têm perspectiva, outras não têm. Algumas estão em processo de tratamento e sabem que na próxima semana vão sair, algumas nem sabem quando vão sair. Então, para mim, o mais importante dentro dessa ação era o quanto de sentimento eu podia direcionar.
RECONHECIMENTOS
O Projeto Interação obteve êxito ao longo das etapas escolar e regional do Ceará Científico 2024 e, com isso, os alunos participaram da etapa estadual, que ocorreu em Fortaleza entre 11 e 13 de dezembro.
Nela, a iniciativa conquistou o segundo lugar na categoria ‘Ensino Médio, área de pesquisa Linguagens, Códigos e suas Tecnologias’. O itinerário científico anual da Seduc conta com as seguintes fases:
- Etapa escolar: Os projetos são desenvolvidos e apresentados na escola de forma curricular e por afinidade dos estudantes pela temática a ser pesquisada. Os trabalhos que se destacam na etapa escolar seguem para a etapa Regional.
- Etapa Regional: É desenvolvida por cada Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação (Crede) e pela Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza (Sefor). Os trabalhos que se destacam em cada Regional seguem para a etapa Estadual.
- Etapa Estadual: Realizada em Fortaleza, reúne os projetos escolares destaque de toda a rede pública estadual, distribuídos em oito categorias. As exposições são visitadas por mais de 2 mil pessoas a cada ano. Projetos escolares premiados na etapa Estadual recebem financiamento para representar o Ceará em eventos nacionais e internacionais.
‘ALÉM DE UM PROJETO ESCOLAR’
Orientado por Rayane Fernandes, o projeto conta com a liderança dos estudantes Pedro Lucas Carmo e Robson Diêgo Costa Gustavo, ambos do 2º ano do Ensino Médio, do Curso Técnico em Nutrição e Dietética da EEEP Dr. José Alves da Silveira.
Para Pedro Lucas, o Interação é mais do que um projeto escolar e científico e representa a união entre a aprendizagem e o cuidado com as pessoas. “Penso que, principalmente na nossa geração, uma coisa que falta é a solidariedade, é pensar no próximo, e acho que o Interação é sobre isso”, diz.
Ao citar a importância que o projeto tem para a própria vida, o estudante conta que, no início, teve receio de não dar certo, mas, quando viu a repercussão da primeira iniciativa, percebeu que tinham acertado na escolha do público-alvo e que a iniciativa seria bem-sucedida.
Não é fácil ter um projeto de quase um ano. O Interação veio em um momento da minha vida que eu não sabia que precisava ter um projeto tão amplo, tão importante e tão especial.
Robson Diêgo refere-se ao projeto como “uma mina de ouro em meio a muitas rochas”, devido aos resultados percebidos em meio à atual falta de interesse pelo hábito de ler e escrever. “A gente obteve êxito nos nossos resultados. Nós recompomos aprendizagens e recebemos muitos retornos positivos dos estudantes da escola”, diz.
Entre os efeitos da iniciativa, Robson Diêgo cita a felicidade das mulheres ao receberem as cartas. E destaca uma situação “que ninguém estava esperando”, quando pacientes oncológicas assistidas pelo Instituto Luz e Vida enviaram cartas de volta para os alunos.
Esse nome ‘Interação’ foi feito justamente porque era uma iniciativa dos estudantes em relação a um público. Mas ele se potencializou, ele se firmou como interação justamente porque se tornou uma troca muito emocionante. Eu vivi vendo minha irmã sendo internada nos hospitais de Fortaleza por causa de uma doença e infelizmente não tinha uma pessoa para estar mandando uma cartinha para ela, mesmo jovem. Isso muda tudo.
Além das mulheres hospitalizadas, Rayane explica que já foram feitas cartas para outros públicos, como mulheres gestantes, mulheres garis, mototaxistas, locutores de rádio, entre outros. Ela também narra outro episódio, quando a comunidade escolar perdeu um professor e os estudantes uniram-se para escrever cartas para os familiares.
“Não posso transformar todos os problemas do mundo, mas, de repente, com aquela pequena ação, posso levar esperança, empatia e amizade para outras pessoas. O Interação não é mais só um projeto, é a minha vida. É aquilo que, de repente, eu queria escutar, que eu queria sentir”, diz a professora.