‘Profissionais com saúde mental abalada’: CAPs de Fortaleza têm equipes incompletas e longa espera
Pacientes ficam meses sem conseguir consultas devido a alta demanda para poucos profissionais de saúde
Quem sofre com algum tipo de transtorno mental ou vício em substâncias químicas encontra dificuldade para conseguir ajuda nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) de Fortaleza, onde existem 16 unidades. Em comum, pacientes e profissionais da saúde apontam a carência de profissionais para atender a alta demanda na cidade.
O Diário do Nordeste percorreu unidades dos Caps nos bairros Bom Jardim, Rodolfo Teófilo e Jardim América, nesta semana, para ver a realidade das estruturas e ouvir a população que procura o serviço de assistência à saúde mental. Além disso, foram procurados sindicatos que representam as categorias e profissionais da saúde atuantes nas unidades.
Os Caps funcionam com equipes multidisciplinares formadas por médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, pediatras e de outras especialidades para atuar com um público vulnerável e com demandas que exigem rapidez. No entanto, de modo geral, as unidades possuem poucos profissionais gerando sobrecarga para o atendimento.
Os Caps em Fortaleza estão divididos em:
- 6 Caps Gerais: para atendimento de pessoas com sofrimentos psíquicos ou transtornos mentais severos e persistentes.
- 7 Caps Álcool e Drogas: específicos para usuários que enfrentam dependência de substâncias psicoativas.
- 3 Caps Infantil: voltados para crianças com sofrimento psíquico ou dependência química.
"Os profissionais da saúde e a população sofrem com as péssimas condições de atendimento e de trabalho, infraestrutura precária, falta de medicamentos essenciais para um bom tratamento, demora para agendamento das consultas e do retorno e o pior: a falta de médicos psiquiatras", lista Maurício Granja, diretor de comunicação do Sindicato dos Médicos do Ceará.
Maurício explica que, em geral, as denúncias recebidas são feitas por profissionais da saúde devido ao desconhecimento da possibilidade da população encaminhar as situações por meio das redes sociais e do contato (85) 9 9252-3566
"Esse tema de denúncia de falta de médicos e de medicamentos é constantemente levado para reuniões com a Secretaria (Municipal) da Saúde. Quase que diariamente nós levamos essas pautas para as mesas de reuniões e agimos para que as situações sejam revertidas", completa.
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Para Naylma Maia, diretora do Sindicato dos Assistentes Sociais do Ceará (Sasec), o cenário no Caps é de completa inadequação para o tratamento adequado da população.
“A situação dos Caps é a seguinte: todos estão com equipes incompletas, existindo uma carência grande por médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, o que prejudica o atendimento à população”, frisa.
Esse contexto, inclusive, tem relação com a defasagem das equipes. “Muitos psiquiatras desistiram do concursos pelas condições de trabalho, o Caps exige que ele trabalhe todos os dias 4 horas e fica praticamente impossível ter dois empregos. Como o salário é baixo, acabam saindo”, contextualiza.
A diretora estima que são necessários, em média, 6 meses para que um paciente consiga o primeiro atendimento. “Os profissionais ficam totalmente sobrecarregados, com a saúde mental afetada porque não tem como dar uma resposta à população e sem ter como dar um atendimento de qualidade”, pontua.
Quem atua na rede
Augusto Lima* é um dos profissionais de saúde mental atuante no Caps e descreve a situação como “funcionamento precário” devido à falta de médicos. “Muita gente fica desassistida de psiquiatras, a gente tem fila de espera para psicologia e nem todo mundo consegue atendimento por esse número insuficiente”, ressalta.
Questionado sobre o tempo médio para conseguir atendimento, o profissional é direto. “Se for com médico, não vai conseguir por enquanto, talvez espere uns 3 meses quando a gente imagina que vai ter alguma contratação”, aponta.
Na unidade onde atua, apenas um psiquiatra e 4 psicólogos estão disponíveis para lidar com cerca de 3 mil prontuários ativos. “A gente tem falta de salas, deveríamos ter uma quantidade maior, e estamos com uma sala interditada porque houve uma reforma e ficou uma infiltração, mas até hoje não foi resolvido”, acrescenta.
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Existe uma articulação com um fórum de trabalhadores e conselhos locais para reunir reivindicações à Prefeitura de Fortaleza. A principal delas é o aumento da capacidade de atendimento.
“O número de Caps deveria acompanhar o aumento da população, as regionais foram subdivididas em 12, mas a saúde permanece na regionalização antiga e o nosso serviço acaba ficando sobrecarregado. Precisa de uma urgente ampliação”, frisa.
Falta de atendimento
A movimentação era intensa no Centro de Atenção Psicossocial Bom Jardim Caps II com filas na parte externa, em frente à recepção e dentro da unidade. Apesar disso, as pessoas aguardavam de forma organizada por volta de 9h da última segunda-feira (18).
Por lá, a reportagem conversou com Júnior Silva*, de 29 anos, que foi sozinho procurar atendimento de saúde mental pela primeira vez na vida e saiu rapidamente do local. Numa conversa rápida, em frente à unidade, foram poucas as palavras para explicar o motivo da busca por ajuda.
"Estresse”, resumiu. “Quando fico assim quebro tudo em casa", acrescentou após um instante em silêncio. Os olhos marejaram quando resolveu contar uma situação de violência ocorrida no último fim de semana e que, talvez, tenha sido decisiva para buscar ajuda.
Ao passar pela equipe de acolhimento do Caps, Júnior foi orientado a procurar o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, na Messejana, por ser um atendimento de emergência. Ao sair, enquanto contava sobre a própria situação, sentou na calçada. "Vou pra casa", disse ao finalizar e sair de moto.
Cláudia Freitas*, com algumas receitas debaixo do braço, também permaneceu pouco tempo na unidade. “Sou acompanhada há quatro anos, mas tem falta de médico. Minha filha veio em agosto e só conseguiu vaga para abril (do ano que vem)”, contou.
No mesmo local, uma senhora também contou que recebeu a orientação de retornar à tarde para passar pelo acolhimento inicial e dar o encaminhamento para a primeira consulta.
Impactos para o cotidiano
Janice Alves*, de 78 anos, convive com os sintomas da depressão há 15 anos. Entre momentos diferentes do tratamento, há uma década encontra apoio no Caps Geral da Borges de Melo.
"Tem um ano que eu saí (do tratamento) e agora é pra começar novamente, mas dessa vez ainda estou pelejando para marcar com o médico e conseguir meus remédios, mas não consegui", contou sobre a quarta vez em que procurou a unidade para agendar a consulta.
A reportagem chegou por volta de 7h no Caps Geral da Regional IV quando a movimentação era bem tranquila. Ao perguntar sobre o movimento para os vendedores ambulantes ao redor, a resposta é que há um certo descrédito da população em conseguir vaga.
"É muito difícil, mas eu tenho fé Naquele lá de cima e peço muita força. Eu pego um remédio aqui e outro acolá e vou caminhando. A gente tem que ter força, né?", refletiu a idosa que recorre à automedicação diante da falta de ajuda especialista.
"É uma tristeza tão grande no meu coração, eu não quero sair de casa, é muito pesada. Eu perdi um filho e já passei muita coisa na vida. Tem tudo isso, é muito sofrimento", completou sobre a situação.
Já Ana Paula* busca atendimento para o esposo de 61 anos devido à Doença de Parkinson e à depressão há um ano. Após um longo período de espera pelo agendamento do retorno, descobriu que ele não seria visto pelo médico.
"Foi cancelada a consulta dele e agora nós estamos aguardando o agendamento. Foi demorado quando ele marcou pela primeira vez, levou uns 4 meses pra ele ser atendido, mas foi desmarcado", lamentou.
Dentro de casa, assistir a situação do companheiro há 35 anos é desafiador. "Ele está o tempo inteiro chorando", descreveu. Nesse período, já percebeu a tentativa do homem de tirar a própria vida. "É muito complicado ver ele assim, mas eu posso fazer o quê além de cuidar, né?", questionou Paula.
A saída, como aponta, é conseguir um tratamento adequado com menores intervalos entre as consultas. “Ele precisa ser acompanhado sempre, porque eu não vejo melhora no caso dele."
Situação infantil
Também existe uma demanda represada de atenção à saúde mental com relação às crianças, como aponta Ingrid Leite, coordenadora de monitoramento de políticas públicas pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca).
"Só em um ano os três Caps infantis realizou 5.866 atendimentos de crianças de 4 até 17 anos de idade, em 2023. Desse total, 1.014 atendimentos são realizados com crianças de 9 a 10 anos", contextualiza com o repasse de dados feito pela Secretaria Municipal da Saúde. O Cedeca já havia indicado que o adequado seria a ampliação de mais 13 Caps Infantis para atender a demanda de acordo com uma portaria do Ministério da Saúde.
"Em 2021, o Cedeca Ceará realizou um monitoramento na política de saúde com foco nos equipamentos que atendem crianças e adolescentes. Naquele momento, a gente já identificava um sucateamento da rede psicossocial", lembra. Ingrid ressalta que os meninos negros, com cerca de 10 anos, são a maioria entre os pacientes.
Os impactos são devastadores, o Caps já é um equipamento da atenção secundária e uma pessoa que procura um atendimento já tem um transtorno num estado considerado grave. Isso significa que a nossa rede de saúde está sucateada em Fortaleza
População insatisfeita
De acordo com a I Pesquisa de Qualidade dos Serviços Públicos nas Capitais Brasileiras, realizada pela Agenda Pública em parceria com o Instituto de Pesquisa IDEIA, Fortaleza registra o maior nível de insatisfação da população sobre a disponibilidade de médicos na rede municipal de saúde.
A pesquisa ouviu 3 mil pessoas nas dez maiores capitais brasileiras sobre percepções e opiniões quanto aos serviços públicos municipais, e mostrou que 7 a cada 10 usuários se dizem "insatisfeitos" ou "muito insatisfeitos" com o número de médicos à disposição.
Para Álvaro Madeira Neto, médico sanitarista e gestor em saúde, as queixas sobre a quantidade de médicos refletem a falta de investimentos suficientes em saúde e as "condições de trabalho precárias", que dificultam a permanência dos profissionais nos postos de atuação.
“Muitas vezes, pelo vínculo não ser pleno, via concurso público, e sim por cooperativas ou ordem de serviço, há uma dificuldade maior em se fixar o médico e os profissionais que contribuam efetivamente para a melhoria da saúde da cidade”, analisa Álvaro.
O que diz a Prefeitura de Fortaleza
Em resposta à reportagem, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informou por meio de nota que os Centros de Atenção Psicossocial (Caps Gerais), localizados nos bairros Bom Jardim e Jardim América, "seguem realizando atendimento normalmente. De agosto a outubro deste ano, foram realizados 3.875 atendimentos no Caps do Bom Jardim e 3.522 no Caps do Jardim América, incluindo consultas médicas, atendimentos psicológicos, terapias e outras atividades", detalhou.
Sobre a situação do Caps Geral da Regional IV, a pasta informou que houve requalificação em janeiro de 2024, com intervenções voltadas à melhoria das instalações. "Já em relação ao Caps Álcool e Outras Drogas (Caps AD) do bairro Cristo Redentor, a SMS enviará uma equipe técnica para avaliar as necessidades da unidade", acrescentou a Secretaria.
Na Regional V, o Caps AD conta, nesta sexta-feira (22/11), com 21 profissionais atuando para atender às demandas da população, incluindo médico clínico. A SMS reforça que os Caps seguem as diretrizes da Portaria nº 3.088, com equipes multidisciplinares compostas por médicos especializados em saúde mental ou psiquiatria, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, técnicos de enfermagem e outros profissionais qualificados.
Além disso, a SMS destacou a entrega do Centro de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi) na Granja Portugal e a requalificação de unidades nos bairros Rodolfo Teófilo (Caps Infantil, Regional III), Amadeu Furtado (Caps AD, Regional III), Jardim América (Caps Geral, Regional IV) e Granja Portugal (Caps AD, Regional V).
*Os nomes dos entrevistados nesta reportagem foram alterados para preservar a identidade dos profissionais, pacientes ou daqueles que buscaram o serviço pela primeira vez.