De mudança de nome a emprego, qual a ‘visibilidade’ de que pessoas transexuais e travestis precisam

Quando até o direito à vida é negado com frequência, luta por demandas básicas dita a rotina

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: Caio trabalha desde a adolescência, e já vivenciou transfobia nos ambientes de trabalho
Foto: Divulgação/DPGE

Ser chamado pelo nome, receber o mesmo salário que um colega, ter horário para entrar e sair do trabalho, executar as funções pelas quais é pago, ter tempo de descanso. Essa série de direitos básicos é óbvia para muitos, mas rara para transexuais e travestis no Ceará.

As buscas por autoafirmação, por respeito e por um registro civil que mostre nome e gênero corretos são só as etapas iniciais de um longo – e às vezes infinito – caminho até as garantias fundamentais. Entre elas, a de trabalhar, demanda que se sobressai no 29 de janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans.

Caio Rocha, 23, por exemplo, trabalha desde os 16 anos, mas só há 6 meses resgatou a dignidade tomada dele pelo mercado quando saiu de casa adolescente e precisou se virar em empregos em bares e restaurantes. “Era onde mais aceitavam pessoas trans.”

Eles têm essa disponibilidade porque são locais em que ninguém quer trabalhar mais, por causa das condições. Mas lá ninguém respeita seu gênero não – nem patrões nem clientes.
Caio Rocha
Zelador e artista de rua

Em um dos locais, Caio relembra uma situação constante: “às vezes, eu via que até meu salário vinha menos, e eu trabalhava bem mais, acumulava funções”. A rotina de chegar em casa pela madrugada fazia a vida se resumir ao “trampo”. Não sobrava tempo nem para sonhar.

O ciclo se rompeu em agosto do ano passado, quando Caio passou a trabalhar como zelador da sede da Defensoria Pública Geral do Estado (DPGE) – órgão por meio do qual também conseguiu a retificação do registro civil, que tentava efetivar desde 2019.

No Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da DPGE, a principal demanda de pessoas transexuais e de travestis é pela retificação de nome e gênero no registro civil. Em cinco anos, o número de procedimentos aumentou mais de 23 vezes.

“É importante pra gente mesmo se reconhecer. Não é nem só pra mostrar pra outras pessoas e parar de ouvir ‘Como era teu nome antes?’ ‘Deixa eu ver teu documento!’ Mas é uma conquista: o momento que a gente recebe a certidão com o nosso nome mesmo, é um renascimento. É estar se construindo”, emociona-se Caio.

A defensora pública Lia Felismino, assessora de relacionamento institucional do órgão, reforça que “a retificação é o primeiro ato, é o direito de existir, mas não termina em si, porque a pessoa precisa ser inserida no mercado, e a transfobia ainda limita muito isso”.

Ela acrescenta que além dos pedidos de alteração do registro civil, casos de transfobia por desrespeito ao nome social, à livre utilização de banheiros e até ao acesso à saúde são desrespeitados também chegam em forma de demandas à Justiça.

No próximo dia 2, a DPGE vai lançar uma política institucional para que seja priorizada a contratação de pessoas transexuais e travestis – bem como a permanência saudável delas no ambiente de trabalho.

Atualmente, 5 pessoas trans, entre elas o Caio, compõem o quadro de funcionários da sede do órgão.

“É importante tornar públicas as histórias delas, dar visibilidade para que outras instituições tenham como modelo a contratação dessas pessoas. Que a existência delas seja algo visível: e que não sejam só vistas, mas incluídas, contratadas”, conclui Lia.

Para retificar posicionamentos

Até agora, Caio só tem o nome certo na certidão de nascimento, e topa em burocracias para emitir as demais documentações. “São muitas demandas pra você conseguir uma coisa que é seu direito”, critica.

"Uma pessoa trans não se ‘transiciona’ do dia pra noite não. A transição nunca termina, é todo dia. Pra ter um reconhecimento na própria família, me chamarem pelo nome… É uma transição coletiva, meus pais estão se transicionando também, reconhecendo o filho deles."

Ter uma família, aliás, é outro direito negado a pessoas trans e travestis. Sem emprego – e muitas vezes sem afeto –, construir um lar se torna meta distante. Para Caio, felizmente, os planos estão dia a dia mais próximos do concreto.

Foto: Divulgação/DPGE

“Me sinto digno de estar trabalhando de carteira assinada, num local que me respeita. Isso tá me ajudando a conquistar muitos sonhos passados, como minha carteira de motorista. Já tô pensando em fazer faculdade, comprar minha moto. E construir minha família”, projeta o jovem.

Quero ter um filho, uma companheira. Tudo isso é uma construção. Hoje, estou me descobrindo como outra pessoa, com outros sonhos, que estou conseguindo botar pra fora do papel, que eu não tinha condições antes.
Caio Rocha
Zelador e artista de rua

‘Não é a visibilidade, mas a dignidade trans’

“Olha aí pro lado. Quantas pessoas trans trabalham com você? Quantas professoras trans você já teve? Quantos psicólogos trans você já viu?” As perguntas inquietam, incomodam – e alertam. Saem da boca de Pedra Silva, 25, artista, arte-educadora e pesquisadora, que ainda se esgueira entre papeladas para conseguir retificar os documentos.

Com auxílio de um mutirão da Defensoria Pública, Pedra conseguiu o novo registro de nascimento, o que considera “um pequeno primeiro passo”. “O documento mais rápido é o RG, mas tem todos os outros. Por trás das burocracias, há as instituições – e elas são feitas de pessoas cis e, muitas vezes, transfóbicas”, desabafa.

Legenda: Pedra Preciosa de Oliveira da Silva - nome e sobrenomes estão, hoje, registrados no documento oficial da jovem
Foto: Arquivo pessoal

Sobre esta data, então, a artista resume: “é preciso entender que não é só a visibilidade, mas a dignidade trans que buscamos. Nossas identidades são colocadas como recentes, mas nossos corpos estão aqui há muito tempo, apagados.”

“Antes de tudo, precisamos de políticas públicas para que nós, pessoas trans, possamos entrar no mercado de trabalho. Por vezes, a gente até consegue um emprego, mas convive com o medo e a discriminação das pessoas”, pontua Pedra.

A gente é a chacota, o alívio cômico dos memes, a p*ta da rua em que os outros jogam pedra. Pensar nossas causas é perguntar à sociedade brasileira se ela está disposta a largar o osso, a fazer processos de formação, sair dos grandes cargos e ofertar mais vagas a pessoas trans.
Pedra Silva
Arte-educadora e pesquisadora

A jovem reconhece que, apesar de ser uma mulher trans preta, teve “acesso a universidade, escola particular, amor e companhia da família”, recursos que a colocam como ponto fora da curva numa sociedade que ainda marginaliza a transgeneridade.

Foto: Arquivo pessoal

“Dentro das instituições onde trabalho como artista, sou colocada como troféu. É isso que a sociedade branca e patriarcal faz. Mas se tem um espaço com 10 professores e eu sou a única preta, não tenho como ter trocas com alguém de forma plena”, pontua Pedra.

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É por isso que, “numa fábula criada” dentro da própria cabeça, ela desenha um mundo com salas de aula e outras esferas lideradas por docentes transexuais e travestis. Pela representatividade.

“Se a gente está no mercado de trabalho, está no espaço da visibilidade; e se a gente está sendo vista, está sendo comentada e gerando uma ampliação de olhar.”

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